KI TISSÁ

Posted on março 15, 2017

KI TISSÁ

O Shabat: Primeiro Ou Último Dia?

No relato imensamente longo e detalhado da criação do Tabernáculo, a Torá conta a história duas vezes: primeiro como instrução Divina (Ex. 25:1-31:17) e depois como implementação humana (35-40). Em ambos os casos, a descrição da construção está acompanhada do mandamento do shabat (31:12-17; 35:1-2).

Há implicações haláchicas e teológicas. Primeiramente, de acordo com a tradição judaica, a justaposição tinha a intenção de estabelecer a regra de que o shabat se sobrepõe à criação do Tabernáculo. O sétimo dia não é só um tempo em que o trabalho secular chega ao fim. Ele também traz descanso do mais sagrado dos trabalhos: fazer uma casa para D-s. Na verdade, a tradição oral definiu “trabalho” – melachá, o que é proibido no shabat – baseada nas trinta e nove atividades envolvidas na construção do santuário.

Em um nível mais metafísico, o santuário espelha – é a contraparte humana da –  criação Divina do universo (para os precisos paralelos linguísticos entre Êxodo e Gênesis ver Covenant and Conversation, Terumá 5763/2003). Assim como a criação Divina culmina no shabat, assim também a criação humana. A santidade do lugar toma a segunda posição em relação à santidade do tempo (sobre isso veja o famoso livro de A. J. Heschel, O Shabat).

Entretanto, há uma diferença marcante entre o relato da instrução de D-s para construir o santuário e a instrução de Moisés para o povo. No primeiro caso, o mandamento do Shabat aparece no final, depois dos detalhes da construção. No segundo, aparece no início, antes dos detalhes. Por quê?

O Talmud, no tratado de Shabat (69b), levanta a seguinte pergunta: o que acontece se você está distante de qualquer habitação humana e esquece que dia é. Como você observa o Shabat? O Talmud oferece duas respostas:

  1. Huna disse: Se alguém está viajando por uma estrada ou no deserto e não sabe quando é o shabat, ele deve contar seis dias [a partir do dia em que ele percebeu que se esqueceu] e observar um shabat. R. Hiya b. Rav disse: ele deve observar um shabat e então contar seis dias de semana. Em que elas diferem? Um sábio sustenta que é como a criação do mundo. O outro sustenta que é como [o caso do] homem.

Do ponto de vista de D-s, o Shabat foi o sétimo dia. Do ponto de vista dos primeiros seres humanos – criados no sexto dia – o Shabat foi o primeiro. O debate é sobre qual perspectiva devemos adotar.

Assim, no nível mais simples, entendemos por que o Shabat vem por último quando D-s está falando sobre o Tabernáculo, e por que ele vem primeiro quando Moisés, um ser humano, faz isso. Para D-s, o Shabat foi o último dia; Para os seres humanos, foi o primeiro. No entanto, há algo mais fundamental em jogo.

Quando se trata da criação Divina, não há nenhuma lacuna entre a intenção e a execução. D-s falou e o mundo surgiu. Em relação a D-s, Isaías diz:

Eu faço conhecido o fim desde o início,

Desde os tempos antigos, o que ainda está por vir.

Eu digo: Meu propósito permanecerá,

E farei tudo o que Eu quiser (Isaías 46:10).

D-s sabe de antemão como serão as coisas. Com os seres humanos é diferente. Muitas vezes, não podemos ver o resultado no início. Um grande romancista pode não saber como a história vai acabar até que ele a tenha escrito; nem um compositor, uma sinfonia; nem um artista, uma pintura. A criatividade está repleta de riscos. Mais ainda quando se trata da história humana. A “lei de consequências não intencionais” nos diz que as revoluções raramente acontecem conforme planejadas. As políticas destinadas a ajudar os pobres podem ter o efeito oposto. Hayek cunhou a frase “a presunção fatal” para o que ele viu como o fracasso quase inevitável da engenharia social – a ideia de que você pode planejar o comportamento humano com antecedência. Não podemos.

Uma alternativa é simplesmente deixar as coisas acontecerem. Esse tipo de resignação, no entanto, não está totalmente de acordo com a visão judaica da história. Os sábios disseram: “Onde quer que você encontre a palavra vayehi [e aconteceu], é sempre um prelúdio de tragédia”. Quando as coisas simplesmente acontecem, elas raramente têm um final feliz.

A outra solução – exclusiva, até onde eu sei, do Judaísmo – é revelar o fim no início. Esse é o significado do Shabat. O Shabat não é simplesmente um dia de descanso. É uma antecipação do “final da história”, a era messiânica. Nele, recuperamos a harmonia perdida do Jardim do Éden. Nós não nos esforçamos para fazer; estamos satisfeitos em ser. Não nos é permitido manipular o mundo; em vez disso, o celebramos como a suprema obra de D-s. Não nos é permitido exercer poder ou domínio sobre outros seres humanos, nem mesmo animais domésticos. Os ricos e os pobres vivem o shabat igualmente, com igual dignidade e liberdade.

Nenhuma utopia jamais foi realizada (a própria palavra “utopia” significa “sem lugar”) – com uma exceção: “o mundo vindouro”. A razão é que nós ensaiamos isso todas as semanas, um dia em sete. O Shabat é um ensaio completo para uma sociedade ideal que ainda não chegou a acontecer, mas que vai ocorrer, porque sabemos o que estamos buscando – porque nós experimentamos isso no início.

Começamos agora a sentir o drama simbólico completo da criação do Tabernáculo. No deserto, muito antes de atravessarem o Jordão e entrarem na terra prometida, D-s ordenou aos israelitas que construíssem um universo em miniatura. Seria um lugar de ordem cuidadosamente calibrado – como o universo é um lugar de ordem cuidadosamente calibrado. Hoje em dia, os cientistas chamam isso de “princípio antrópico”, a descoberta de que as leis da física e da química são finamente ajustadas para o surgimento da vida. Da mesma forma que o Tabernáculo tem que ser exato em sua construção e dimensões. A construção do Tabernáculo foi um protótipo simbólico da construção de uma sociedade. Assim como era um lar terrestre para a presença Divina, assim se tornaria a sociedade se os israelitas honrassem as leis de D-s.

A finalidade última de tal sociedade é a harmonia da existência que ainda não experimentamos, enquanto vivermos num mundo de trabalho e luta, conflito e competição. D-s, entretanto, queria que nós soubéssemos o que estávamos buscando, para que não perdêssemos nosso caminho no deserto do tempo. É por isso que, quando se tratou da execução humana da edificação, o Shabat veio em primeiro lugar; embora em termos globais, o “Shabat da história” (a era messiânica, o mundo vindouro) virá em último lugar. D-s “deu a conhecer o fim no início” – o descanso após o trabalho criativo; a paz que um dia tomará o lugar da luta – para que pudéssemos ter um vislumbre do destino antes de começar a viagem. Somente aqueles que sabem para onde estão viajando chegarão lá, seja rápida ou lentamente.

 

Texto original: “THE SABBATH: FIRST DAY OR LAST?” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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