BEHUKOTAI

Posted on maio 25, 2022

BEHUKOTAI

A Política da Responsabilidade

O vigésimo sexto capítulo do livro de Vaykrá apresenta, com impressionante clareza, os termos da vida judaica sob a aliança. Por um lado, há uma imagem idílica da bênção do favor divino: Se Israel seguir os decretos de D-s e guardar Seus mandamentos, haverá chuva, a terra dará seus frutos, haverá paz, o povo florescerá, eles terão filhos, e a presença divina estará no meio deles. D-s os libertará.

“Eu quebrei as barras do seu jugo e fiz com que você andasse de cabeça erguida.” Lev. 26:13

O outro lado da equação, porém, é aterrorizante: as maldições que recairão sobre a nação se os israelitas falharem em honrar sua missão como nação santa:

“Mas se você não Me ouvir e não cumprir todos esses mandamentos… Eu porei sobre você um terror repentino, doenças devastadoras e febre, que farão seus olhos desfalecerem e seu espírito definhar. Em vão semearás a sua semente, porque os seus inimigos comerão o seu fruto… E se, apesar de tudo isto, ainda não Me ouvires, Eu castigarei você sete vezes mais pelos seus pecados… Farei o seu céu como ferro, sua terra como o bronze… Eu transformarei suas cidades em ruínas… Eu devastarei a terra… Quanto aos sobreviventes, trarei tanta insegurança em seus corações nas terras de seus inimigos que o som de uma folha soprada pelo vento os fará correr como se fugissem da espada; e eles cairão, embora ninguém os persiga. (Lev. 26:14-36)

Lida na íntegra, esta passagem é mais como literatura do Holocausto do que qualquer outra coisa. As frases repetidas – “Se depois de tudo isso… Se apesar disso… Se apesar de tudo” – vêm como marteladas do destino. É uma passagem devastadora em seu impacto, ainda mais porque muito dela se tornou realidade em vários momentos da história judaica. No entanto, as maldições terminam com a mais profunda promessa de consolo final. Apesar de tudo, D-s não quebrará Sua aliança com o povo judeu. Coletivamente, eles serão eternos. Eles podem sofrer, mas nunca serão destruídos. Eles passarão pelo exílio, mas eventualmente retornarão.

Declarada com o máximo drama, esta é a lógica da aliança. Ao contrário de outras concepções de história ou política, a aliança não vê nada inevitável ou mesmo natural sobre o destino de um povo. Israel não seguirá as leis usuais da ascensão e queda das civilizações. O povo judeu não deveria ver sua existência nacional em termos de cosmologia, escrita na estrutura do universo, imutável e fixa para sempre, como faziam os antigos mesopotâmicos e egípcios. Tampouco deveriam ver sua história como cíclica, uma questão de crescimento e declínio. Em vez disso, seria totalmente dependente de considerações morais. Se Israel permanecesse fiel à sua missão, floresceria. Se se desviasse de sua vocação, sofreria derrota após derrota.

Apenas uma outra nação na história viu consistentemente seu destino em termos semelhantes, ou seja, os Estados Unidos. A influência da Bíblia hebraica na história americana – levada pelos Pilgrim Fathers (primeiros Peregrinos chegados aos Estados unidos em 1620) e reiterada na retórica presidencial desde então – foi decisiva. Aqui está como um escritor descreveu a fé de Abraham Lincoln:

Somos uma nação formada por uma aliança, pela dedicação a um conjunto de princípios e por uma troca de promessas para manter e avançar certos compromissos entre nós e em todo o mundo. Esses princípios e compromissos são o núcleo da identidade americana, a alma do corpo político. Eles tornam a nação americana única, e excepcionalmente valiosa, entre e para as outras nações. Mas o outro lado da concepção contém uma advertência muito parecida com as advertências ditas pelos profetas a Israel: se falharmos em nossas promessas uns aos outros e perdermos os princípios da aliança, então perderemos tudo, pois eles somos nós. [1]

A política pactual é política moral, conduzindo uma conexão elementar entre o destino de uma nação e sua vocação. Esta é a condição de Estado como uma questão não de poder, mas de responsabilidade ética.

Alguém poderia pensar que esse tipo de política roubava a liberdade de uma nação. Spinoza argumentou exatamente isso. “Este, então, era o objetivo da lei cerimonial”, escreveu ele, “que os homens não deveriam fazer nada por sua própria vontade, mas deveriam sempre agir sob autoridade externa, e deveriam continuamente confessar por suas ações e pensamentos que não eram seus próprios senhores”. [2] No entanto, a esse respeito, Spinoza estava errado. A teologia da aliança é enfaticamente uma política de liberdade.

O que está acontecendo em Vaykrá 26 é uma aplicação a uma nação como um todo da proposição que D-s expôs aos indivíduos no início da história humana:

O Senhor disse a Caim: “Por que você está com raiva? Por que seu rosto está abatido? Se você agir bem, você não será elevado? Se você deixar de agir bem, o pecado está agachado à porta; ele anseia por você, mas você deve dominá-lo.” (Gn 4:6-7)

A escolha – D-s está dizendo – está em suas mãos. Você é livre para fazer o que quiser. Mas as ações têm consequências. Você não pode comer demais e não fazer exercícios e, ao mesmo tempo, manter-se saudável. Você não pode agir de forma egoísta e ganhar o respeito de outras pessoas. Você não pode permitir que as injustiças prevaleçam e sustentem uma sociedade coesa. Você não pode permitir que os governantes usem o poder para seus próprios fins sem destruir a base de uma ordem social livre e graciosa. Não há nada de místico nessas ideias. São eminentemente inteligíveis. Mas são também, e inescapavelmente, morais.

Eu trouxe você da escravidão para a liberdade – diz D-s – e Eu capacito você a ser livre. Mas Eu não posso e não vou abandonar você. Não vou intervir em suas escolhas, mas vou instruí-lo sobre quais escolhas você deve fazer. Eu vou ensinar a você a constituição da liberdade.

O primeiro e mais importante princípio é este: uma nação não pode adorar a si mesma e sobreviver. Mais cedo ou mais tarde, o poder corromperá aqueles que o exercem. Se a sorte o favorecer e enriquecer, tornar-se-á autoindulgente e eventualmente decadente. Seus cidadãos não terão mais coragem de lutar por sua liberdade, e ela cairá para outro poder mais espartano.

Se houver desigualdades grosseiras, as pessoas não terão o senso do bem comum. Se o governo for arbitrário e não responsável, não conseguirá conquistar a lealdade do povo. Nada disso tira sua liberdade. É simplesmente a paisagem dentro da qual a liberdade deve ser exercida. Você pode escolher este ou aquele caminho, mas nem todos os caminhos levam ao mesmo destino.

Para permanecer livre, uma nação deve adorar algo maior que ela mesma, nada menos que D-s, juntamente com a crença de que todos os seres humanos são criados à Sua imagem. A auto adoração em escala nacional leva ao totalitarismo e à extinção da liberdade. Foi preciso a perda de mais de 100 milhões de vidas no século XX para nos lembrar dessa verdade.

Diante do sofrimento e da perda, há duas perguntas fundamentalmente diferentes que um indivíduo ou nação pode fazer, e elas levam a resultados bem diferentes. A primeira é: “O que eu, ou nós, fizemos de errado?” A segunda é: “Quem fez isso conosco?” Não é exagero dizer que esta é a escolha fundamental que rege os destinos das pessoas.

Esta última leva inevitavelmente ao que é hoje conhecido como a cultura da vítima. Localiza a fonte do mal fora de si mesmo. Outra pessoa é a culpada. Não sou eu ou nós que estamos em falta, mas alguma causa externa. A atração dessa lógica pode ser avassaladora. Gera simpatia. Exige, e muitas vezes evoca, compaixão. É, no entanto, profundamente destrutiva. Leva as pessoas a se verem como objetos, não como sujeitos. Eles são modelados, não realizadores; passivos, não ativos. Os resultados são raiva, ressentimento, fúria e um sentimento ardente de injustiça. Nada disso, no entanto, jamais conduz à liberdade, pois, por sua própria lógica, essa mentalidade abdica da responsabilidade pelas circunstâncias atuais em que se encontra. Culpar os outros é o suicídio da liberdade.

Culpar a si mesmo, ao contrário, é difícil. Significa viver com constante autocrítica. Não é um caminho para a paz de espírito. No entanto, é profundamente empoderador. Implica que, precisamente porque aceitamos a responsabilidade pelas coisas ruins que aconteceram, também temos a capacidade de traçar um rumo diferente no futuro. Dentro dos termos estabelecidos pela aliança, o resultado depende de nós. Essa é a geografia lógica da esperança, e se baseia na escolha que Moisés mais tarde definiria com estas palavras:

Chamo hoje o céu e a terra como testemunhas contra você: pus diante de você a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolha a vida – para que você e seus filhos possam viver. (Deut. 30:19)

Uma das contribuições mais profundas da Torá para a civilização do Ocidente é esta: que o destino das nações não está nas externalidades de riqueza ou poder, destino ou circunstância, mas na responsabilidade moral: a responsabilidade de criar e sustentar uma sociedade que honra a imagem de D-s dentro de cada um de seus cidadãos, ricos e pobres, poderosos ou impotentes.

A política da responsabilidade não é fácil. As maldições do Vaykrá 26 são exatamente o contrário de confortar. No entanto, os profundos consolos com os quais eles terminam não são acidentais, nem são desejos. Eles são testemunho do poder do espírito humano quando convocado para a mais alta vocação. Uma nação que se vê como responsável pelos males que lhe acontecem, é também uma nação que tem um poder inextinguível de recuperação e retorno.

 

NOTAS
[1] John Schaar, Legitimidade e o Estado Moderno, p. 291.
[2] Bento de Spinoza, Tratado Teológico-Político, 2004, cap. 5, pág. 76.

 

Texto original “The Politics of Responsibility” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l

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