EMOR

Posted on maio 9, 2017

EMOR

A Dualidade do Tempo Judaico

Ao lado da santidade do lugar e da pessoa está a santidade do tempo, algo que Emor traça em sua lista enganosamente simples de festas e dias santos (Levítico 23: 1-44). O tempo desempenha um papel enorme no judaísmo. A primeira coisa que D-us declarou santo foi um dia: Shabat, no final da criação.

A primeira mitsvá dada ao povo judeu como um todo, antes do Êxodo, foi o mandamento de santificar o tempo, determinando e aplicando o calendário judaico (Êxodo 12: 1-2). Os profetas foram as primeiras pessoas a ver D-us na história, vendo o próprio tempo como a arena do encontro Divino-humano. Praticamente todas as outras religiões e civilizações anteriores e posteriores identificaram D-us, a realidade e a verdade com atemporalidade.

Isaiah Berlin costumava citar Alexander Herzen que disse sobre os eslavos que eles não tinham história, apenas geografia. Os judeus, disse ele, tiveram o inverso: uma grande quantidade de história, mas muito pouca geografia. Muito tempo, mas pouco espaço. Portanto, o tempo no judaísmo é um meio essencial da vida espiritual. Mas há uma característica da abordagem judaica do tempo que recebeu menos atenção do que deveria: a dualidade que percorre toda a sua estrutura temporalTomemos, por exemplo, o calendário como um todo. O Cristianismo usa um calendário solar, o Islã lunar. O judaísmo usa ambos. Nós contamos o tempo tanto pelo ciclo mensal da lua quanto pelo ciclo sazonal do sol.

Então considere o dia. Normalmente os dias têm um início identificável, quer este seja ao cair da noite ou ao alvorecer ou – como no Ocidente – em algum lugar entre um e outro. Para fins de calendário, o dia judaico começa ao anoitecer (“E era noite e era de manhã, um dia”). Mas se olharmos para a estrutura das orações – a oração da manhã instituída por Abraão, tarde por Isac, noite por Jacob – há um sentido em que a adoração do dia começa pela manhã, não na noite anterior.

Os anos também, geralmente, têm um começo fixo – o “ano novo”. No judaísmo, de acordo com a Mishná (Rosh Hashaná 1: 1), não há menos de quatro anos novos. O primeiro dia de Elul é o ano novo para o dízimo dos animais. O décimo quinto de Shevat (o primeiro de acordo com Bet Shammai) é o ano novo para árvores. Estas são datas específicas e subsidiárias, mas as outras duas são mais fundamentais.

De acordo com a Torá, o primeiro mês do ano é Nissan. Este foi o dia em que a terra ficou seca após o Dilúvio (Gênesis 8:13). Foi o dia em que os israelitas receberam seu primeiro mandamento como povo (Ex. 12: 2). Um ano depois, foi o dia em que o Tabernáculo foi oferecido e o serviço dos sacerdotes foi inaugurado (Êxodo 40: 2). Mas a festividade que chamamos de Ano Novo, Rosh Hashaná, cai seis meses depois.

O próprio tempo sagrado vem em duas formas como Emor deixa claro. Há Shabat e há as festividades, e os dois são anunciados separadamente. O shabbat foi santificado por D-us no início dos tempos para todos os tempos. As festas são santificadas pelo povo judeu, a quem foi dada a autoridade e responsabilidade para a fixação do calendário.

Daí a diferença nas bênçãos que dizemos. No Shabat, louvamos a D-us que “santifica o Shabat”. Nas festas, louvamos a D-us que santifica “Israel e os tempos sagrados” – ou seja, é D-us que santifica Israel, mas é Israel que santifica os tempos sagrados, determinando em que dias as festas caem.

Mesmo dentro das festividades há um ciclo duplo. Um deles é formado pelas três festas de peregrinação: Pessach, Shavuot e Sucót. Estes são os dias que representam os principais momentos históricos na aurora do tempo judeu – o Êxodo, a doação da Torá, e os quarenta anos vagando no deserto. São festividades da história.

O outro é formado pelo número sete e o conceito de santidade: o sétimo dia, Shabat; o sétimo mês, Tishrei, com suas três festividades de Rosh Hashaná, Iom Kipur e Sucót; o sétimo ano, Shemita; E o Jubileu marcando a conclusão de sete ciclos de sete anos.

Esses tempos (com exceção de Sucót que pertence a ambos os ciclos) têm menos a ver com a história do que com o que, por falta de uma palavra melhor, poderíamos chamar metafísica e jurisprudência, verdades finais sobre o universo, a condição humana e as leis, tanto naturais como morais, sob as quais vivemos.

Cada um é sobre a criação (Shabat, um lembrete, Rosh Hashaná o aniversário), soberania divina, justiça e julgamento, juntamente com a condição humana de vida, morte, mortalidade. Então, em Yom Kipur, enfrentamos a justiça e o julgamento. Em Sucót / Shemini Atseret rezamos pela chuva, celebramos a natureza (o arbat haminim – lulav, etrog, hadassim e aravot, é a única mitzvá que fazemos com objetos naturais não processados), e lemos o livro de Kohelet, a meditação mais profunda do Tanach sobre a mortalidade .

Nos sétimos anos e no a no do Jubileu reconhecemos a posse final de D-us sobre a terra de Israel e os filhos de Israel. Por isso, deixamos os escravos libertarem-se, perdoamos dívidas, deixamos a terra descansar e restauramos a maioria dos bens aos seus proprietários originais. Tudo isso não tem a ver com as intervenções de D-us na história, mas com seu papel como Criador e dono do universo.

Uma maneira de ver a diferença entre o primeiro ciclo e o segundo é comparar as orações em Pessach, Shavuot e Sucót com as de Rosh Hashaná e Yom Kipur. A Amidá de Pessach, Shavuot e Sucót começa com a frase “Você nos escolheu de todos os povos.” A ênfase está na particularidade judaica.

Em contraste, a Amidá para Rosh Hashaná e Yom Kipur começa por falar de “tudo o que você fez, tudo que você criou”. A ênfase está na universalidade: sobre o julgamento que afeta toda a criação, tudo que vive.

Até mesmo Sucót tem um impulso marcadamente universalista com seus setenta touros sacrificiais representando as “setenta nações”. De acordo com Zacarias 14, é a festa que um dia será celebrada por todas as nações.

Por que a dualidade? Porque D-us é o D-us da natureza e da cultura. Ele é o D-us de todos em geral, e do povo da aliança em particular. Ele é o Autor tanto da lei científica (causa) quanto da lei  ética-religiosa (mandamento).

Encontramos D-us em ambos os tempos cíclicos, que representam o movimento dos planetas, e o tempo linear-histórico, que representa os eventos e a evolução da nação de que fazemos parte. Essa mesma dualidade dá origem a dois tipos de líderes religiosos: o profeta e o sacerdote, e a consciência diferente do tempo que cada um representa.

Desde os gregos antigos, as pessoas procuraram um único princípio que explicasse tudo, ou o ponto único que Arquimedes procurava para mover o mundo, ou a perspectiva única (o que os filósofos chamam de “a vista de lugar nenhum”) para ver a verdade em toda a sua objetividade.

O judaísmo nos diz que não há tal ponto. A realidade é mais complicada do que isso. Não há sequer um único conceito de tempo. No mínimo, precisamos de duas perspectivas para poder ver a realidade em três dimensões, e isso se aplica tanto ao tempo como ao espaço. O tempo judaico tem dois ritmos ao mesmo tempo.

O judaísmo esta para o espírito como a teoria de complementaridade de Niels Bohr para a física quântica. Na física, a luz é tanto uma onda como uma partícula. No judaísmo, o tempo é histórico e natural. Inesperado, contra-intuitivo, certamente. Mas glorioso em sua recusa a simplificar a rica complexidade do tempo: o relógio tique-taque, a planta em crescimento, o corpo em envelhecimento e a mente cada vez mais profunda.

 

Texto original: “The Duality of Jewish Time” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

PARASHIOT mais recentes

PARASHIOT MAIS RECENTES

METSORA

Existe algo como Lashon Tov? Os Sábios entenderam tsara’at, o tema da parashá desta semana, não como uma doença, mas com...

Leia mais →

TAZRIA

Otelo, WikiLeaks e paredes mofadas Foi a Septuaginta, a antiga tradução grega da Bíblia Hebraica, que traduziu tsara’at,...

Leia mais →

SHEMINI

Espontaneidade: Boa ou Ruim? Shemini conta a trágica história de como a grande inauguração do Tabernáculo, um dia sobre o qua...

Leia mais →

HORÁRIOS DAS REZAS