O Primeiro Populista
A história de Korach tem muito a nos ensinar sobre um dos fenômenos mais perturbadores do nosso tempo: a ascensão do populismo na política contemporânea. Korach era um populista, um dos primeiros da história registrada – e o populismo ressurgiu no Ocidente, como aconteceu na década de 1930, representando um grande perigo para o futuro da liberdade.
O populismo é a política da raiva (1). Ela aparece quando há um descontentamento generalizado com os líderes políticos, quando as pessoas sentem que os chefes das instituições estão trabalhando em seu próprio interesse e não no público em geral, quando há uma perda generalizada de confiança e uma quebra do senso de bem comum.
As pessoas chegam a sentir que a distribuição de bens é injusta: alguns ganham desproporcionalmente e muitos ficam estáticos ou perdidos. Há também a sensação de que o país que eles conheciam lhes foi tirado, seja pelo enfraquecimento dos valores tradicionais ou pela imigração em grande escala.
O descontentamento assume a forma da rejeição das elites políticas e culturais atuais. Políticos populistas afirmam que eles, e somente eles, são a verdadeira voz do povo. Os outros, os líderes existentes, compartilham as recompensas entre si, indiferentes ao sofrimento das massas.
Os populistas levantam ressentimento contra o establishment. Eles são deliberadamente divisionistas conflituosos. Eles prometem uma liderança forte que dará às pessoas de volta o que lhes foi tirado.
Em 2017, o apoio aos partidos populistas em toda a Europa estava em torno de 35%, o nível mais alto desde o final da década de 1930. Os partidos da extrema direita ganharam poder na Polônia e na Hungria e fizeram uma forte exibição na Áustria, França e Holanda. No sul da Europa, em países como a Espanha e a Grécia, o populismo tende a ser de esquerda. Independentemente de que forma, quando o populismo está em ascensão, a tirania está chegando (2). Os Direitos Humanos são dispensados. O público concede poderes excepcionais ao líder forte: assim foi nos anos 1930 com Franco, Hitler e Mussolini. As pessoas estão dispostas a sacrificar sua liberdade pela utopia prometida e a tolerar grandes males contra qualquer bode expiatório que o líder escolha culpar. A rebelião de Korach foi um movimento populista e o próprio Korach um líder populista arquetípico. Ouça com atenção o que ele disse sobre Moisés e Arão: “Vocês foram longe demais! Toda a comunidade é santa, cada um deles, e o Senhor está entre eles. Por que vocês se exaltam acima da assembleia do Senhor?” (Números, 16:3)
Essas são afirmações populistas clássicas. Em primeiro lugar, implica Korach, o estabelecimento (Moisés e Arão) é corrupto. Moisés foi culpado de nepotismo em nomear seu próprio irmão como Sumo Sacerdote. Ele manteve os papéis de liderança dentro de sua família imediata em vez de compartilhá-los mais amplamente.
Em segundo lugar, Korach se apresenta como o campeão do povo. Toda a comunidade, diz ele, é sagrada. Não há nada de especial em vocês, Moisés e Arão. Todos nós já vimos os milagres de D-s e ouvimos a Sua voz. Todos nós ajudamos a construir o Seu Santuário. Korach está posando como o democrata para que ele possa se tornar o autocrata.
Em seguida, ele e seus companheiros rebeldes organizam uma impressionante campanha de notícias falsas – antecipando os eventos de nosso próprio tempo. Podemos inferir isso indiretamente. Quando Moisés diz a D-s: “Não tomei deles jumento nenhum, nem prejudiquei nenhum deles” (Números, 16:15), é claro que ele foi acusado justamente disso: explorar seu ofício para ganho pessoal. Quando ele diz: “É assim que você saberá que o Senhor me enviou para fazer todas essas coisas e que não era uma ideia minha” (Números, 16:28). É igualmente claro que ele foi acusado de representar suas próprias decisões como a vontade e palavra de D-s.
Mais flagrante é a alegação pós-verdade de Datham e Aviram: “Não é suficiente que você nos tenha tirado de uma terra de onde emana leite e mel para nos matar no deserto? E agora você quer dominar sobre nós! ”(Números, 16:13). Este é o discurso mais insensível da Torá. Combina falsa nostalgia pelo Egito (uma “terra que de onde emana leite e mel!”), culpando Moisés pelo relato dos espiões e acusando-o de manter a liderança por seu próprio prestígio pessoal – as três mentiras escandalosas.
Ramban estava indubitavelmente correto (3) quando disse que tal desafio à liderança de Moisés teria sido impossível em qualquer outro momento anterior. Apenas no rescaldo do episódio dos espiões, quando as pessoas perceberam que não veriam a Terra Prometida durante sua vida, o descontentamento poderia ser despertado por Korach e seus variados companheiros de viagem. Eles sentiram que não tinham nada a perder. O populismo é a política da decepção, do ressentimento e do medo.
Pela primeira vez em sua vida, Moisés agiu de forma autocrática, colocando D-s, por assim dizer, à prova:
“Assim saberás que o Senhor me enviou para fazer todas essas obras; não foi da minha própria vontade: se essas pessoas morrem de morte natural, ou se um destino natural vem sobre elas, então o Senhor não me enviou. Mas se o Senhor cria algo novo, e o solo abre a sua boca e os engole, com tudo o que lhes pertence, e eles descem vivos ao Sheol, então você deve saber que esses homens têm desprezado o Senhor. ”(Números, 16:28-30).
Este esforço dramático na resolução de conflitos pelo uso da força (neste caso, um milagre) falhou completamente. O solo de fato se abriu e engoliu Korach e seus companheiros rebeldes, mas o povo, apesar de seu terror, não se impressionou. “No dia seguinte, no entanto, toda a congregação dos israelitas se rebelou contra Moisés e contra Arão, dizendo: “Você matou o povo do Senhor” (Números, 17:6) os judeus sempre resistiram aos líderes autocráticos.
O que é ainda mais impressionante é a maneira como os sábios enquadraram o conflito. Em vez de vê-lo como um contraste preto e branco entre rebelião e obediência, eles insistiram na validade do argumento no domínio público. Eles disseram que o que estava errado com Korach e seus companheiros não era que eles discutissem com Moisés e Arão, mas que eles o fizeram “não pelo amor ao Céu”. As escolas de Hillel e Shamai, no entanto, argumentaram em favor do Céu e, assim, seu argumento tinha valor duradouro. (4) O judaísmo, como argumentei em Covenant and Conversation Shemot este ano, é único no fato de que virtualmente todos os seus textos canônicos são antologias de argumentos
O que importa no Judaísmo é por que o argumento foi levado a cabo e como foi conduzido. Um argumento não em prol do Céu é aquele que é empreendido em prol da vitória. Um argumento pelo bem do Céu é empreendido por causa da verdade. Quando o objetivo é a vitória, como no caso de Korach, ambos os lados são diminuídos. Korach morreu e a autoridade de Moisés ficou manchada. Mas quando o objetivo é a verdade, ambos os lados ganham. Ser derrotado pela verdade é a única derrota que é também uma vitória. Como R. Shimon ha-Amsoni disse: “Assim como recebi recompensa pela exposição, então receberei uma recompensa pela retratação.” (5)
Em seu excelente livro, What is Populism?, Jan-Werner Muller argumenta que o melhor indicador da política populista é a deslegitimação de outras vozes. Os populistas afirmam que “eles e somente eles representam o povo”. Qualquer pessoa que discorde deles é “essencialmente ilegítima”. Uma vez no poder, eles silenciam a dissidência. É por isso que o silenciamento de visões impopulares nos campus universitários de hoje, na forma de “espaço seguro”, “alertas de gatilho” e “micro-agressões”, é tão perigoso. Quando a liberdade acadêmica morre, a morte de outras liberdades se segue.
Daí o poder de defesa do judaísmo contra o populismo na forma de sua insistência na legitimidade do “argumento pelo bem do céu”. O judaísmo não silencia a dissensão: ao contrário, a dignifica. Isto foi institucionalizado na era bíblica na forma dos profetas que falaram a verdade ao poder. Na era rabínica, vivia na cultura da argumentação evidente em todas as páginas da Mishná, Gemara e seus comentários. No Estado de Israel contemporâneo, a argumentatividade é parte da própria textura de sua liberdade democrática, no mais forte contraste possível com grande parte do restante do Oriente Médio.
Daí a ideia de mudança de vida: se você procura aprender, crescer, buscar a verdade e encontrar a liberdade, procure lugares que aceitem o argumento e respeitem visões discordantes. Fique longe de pessoas, lugares e partidos políticos que não o fazem. Embora eles afirmem ser amigos do povo, eles são de fato os inimigos da liberdade.
Shabat Shalom.
NOTAS
- O melhor tratamento recente é o pequeno livro de Jan-Werner Muller, What is populism ?, Penguin, 2017. Veja também o importante artigo, Populism: the phenomenon, Bridgewater associates, 22 March 2017.
- Veja, On Tyranny: 20 lições de James do século 20, Bodley Head, 2017.
- Ramban, comenário de Números, 16:1.
- Mishnei Avot 5.20.
Texto original “The First Populist” por Rabbi Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay