LECH LECHÁ

Posted on novembro 9, 2016

LECH LECHÁ

Sendo Pais Judeus

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

O homem mais influente que já viveu, não aparece em qualquer lista que tenho visto dos cem homens mais influentes que já viveu. Ele não governou qualquer império, não comandou qualquer exército, não esteve envolvido em qualquer ato espetacular de heroísmo no campo de batalha, não realizou milagres, não proclamou nenhuma profecia, não liderou qualquer grande multidão de seguidores, e não tinha outros discípulos além de seu próprio filho. No entanto, hoje mais da metade dos 6 bilhões de pessoas vivas sobre a face do planeta se identificam como seus herdeiros.

Seu nome, claro, é Abraão, tido como o fundador da fé pelas três grandes religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Ele se encaixa no estereótipo convencional. Ele não é, como Noé, descrito como único em sua geração. A Torá não nos relata qualquer coisa de sua infância, como faz no caso de Moisés. Nós não sabemos quase nada sobre sua vida passada. Quando D-s o chama, como ocorre no início da parashá desta semana, para deixar a sua terra, o lugar onde nasceu e a casa de seu pai, não temos ideia por que ele foi escolhido.

No entanto, nunca houve uma promessa mais ricamente satisfeita do que as palavras de D-s a ele quando mudou seu nome de Abrão para Abraão:

“Porque eu te fiz pai de muitas nações” (Gen. 17:5).

Existem hoje 56 nações islâmicas, mais de 80 nações cristãs, e o Estado judeu. Verdadeiramente Abraão tornou-se pai de muitas nações. Mas quem e o que era Abraão? Por que ele foi escolhido para esse papel exemplar?

Há três famosos retratos de Abraão. O primeiro é o que nós aprendemos quando crianças. Abraão, sozinho com os ídolos de seu pai, quebra-os com um martelo que ele deixa na mão do maior dos ídolos. Seu pai Terach entra, vê a devastação, pergunta quem fez aquilo e o jovem Abraão responde: “Você não pode ver? O martelo está nas mãos do ídolo maior. Deve ter sido ele”. Terach responde: “Mas um ídolo é meramente de madeira e pedra”. Abraão responde: “Então pai, como você pode adorá-los?” (1) Esse é o Abraão iconoclasta, aquele que quebra imagens, o homem que ainda jovem se rebelou contra o mundo pagão e politeísta de semideuses e demônios, superstição e magia.

O segundo é mais perturbador e enigmático. Compara Abraão, conforme o Midrash, com um homem em uma viagem quando vê um palácio em chamas. Ele pergunta, “É possível que o palácio não tenha um dono?” O dono do palácio olhou para fora e disse: “Eu sou o dono do palácio”. Então Abraão nosso pai disse: “É possível que o mundo careça de um governante?” D-s olhou para fora e lhe disse: “Eu sou o governante, o Soberano do universo” (2).

Essa é uma passagem extraordinária. Abraão vê a ordem da natureza, o design elegante do universo. É como um palácio. Ele deve ter sido feito por alguém para alguém. Mas o palácio está em chamas. Como pode ser isso? Certamente o proprietário deve estar apagando as chamas. Você não deixa um palácio vazio e sem cuidados. No entanto, o dono do palácio chama por ele, como D-s chamou a Abraão, pedindo-lhe para ajudar a combater o fogo.

D-s precisa de nós para lutar contra o instinto destrutivo no coração humano. Esse é Abraão, aquele que luta contra a injustiça, o homem que vê a beleza do universo natural sendo desfigurada pelos sofrimentos infligidos pelo homem sobre o homem.

Finalmente vem uma terceira imagem, desta vez por Moisés Maimônides:

Depois que ele foi desmamado, enquanto ainda uma criança, a mente de Abraão começou a refletir. Dia e noite ele pensava e perguntava: “Como é possível que esta esfera celeste esteja continuamente guiando o mundo sem ninguém para guia-la e fazer com que ela vire, porque não pode ser que ela vire sozinha?” Ele não tinha professor, ninguém para instruí-lo em qualquer coisa. Ele estava cercado, em Ur dos Caldeus, por tolos idólatras. Seu pai e sua mãe e toda a população adoravam ídolos, e ele adorou com eles. Mas sua mente estava constantemente ativa e reflexiva, até que ele atingiu o caminho da verdade, descobriu a linha correta do pensamento, e sabia que há um só D-s, ele que guia as esferas celestes e criou tudo, e que, entre tudo o que existe, não há nenhum D-s além Dele.

Esse é Abraão, o filósofo, antecipando Aristóteles, usando argumentos metafísicos para provar a existência de D-s.

Três imagens de Abraão; talvez três versões do que é ser judeu. A primeira vê judeus como iconoclastas, desafiando os ídolos da época. Até mesmo judeus seculares que se distanciaram do judaísmo estão entre os pensadores modernos mais revolucionários, sendo os mais famosos Spinoza, Marx e Freud. Thorstein Veblen disse num ensaio sobre “a preeminência intelectual dos judeus”, que o judeu se torna “um perturbador da paz intelectual… um andarilho na terra de ninguém dos intelectuais, procurando outro lugar para descansar, mais longe ao longo da estrada, em algum lugar ao longo do horizonte”.

A segunda vê a identidade judaica em termos de tzedek u-mishpat, um compromisso com a sociedade. Albert Einstein falou do “amor quase fanático pela justiça” como uma das “características da tradição judaica, que me faz agradecer por pertencer a ela”.

A terceira nos lembra que os pensadores gregos Theophrastus e Clearchus, discípulos de Aristóteles, falam dos judeus como uma nação de filósofos.

Esses pontos de vista são todos verdadeiros e profundos. Eles compartilham uma única falha. Não há nenhuma evidência para eles na Torá. Joshua fala do pai de Abraão, Terach, como um idólatra (Joshua 24:2), Mas isso não é mencionado em Bereshit. A história do palácio em chamas é talvez baseada no desafio de Abraão para D-s na destruição proposta de Sodoma e as cidades da planície: “Pode ser que o juiz de toda a terra não faz justiça?” Quanto a Abraão-como-Aristóteles, isso está baseado em uma antiga tradição que os filósofos gregos (especialmente Pitágoras) derivam da sabedoria dos judeus, mas isso também está longe de ser sugerido na Torá.

O que então a Torá diz sobre Abraão? A resposta é inesperada e muito comovente. Abraão foi escolhido simplesmente para ser pai. O “Av” no Avram (Abrão) / Avraham (Abraão) significa “Pai”. No único verso em que a Torá explica a escolha de Abraão, diz: Pois eu o escolhi, para que ele vá orientar seus filhos e a sua casa depois dele para manter o caminho do Senhor, fazendo o que é certo e justo, para que o Senhor traga para Abraão o que ele lhe prometeu (Gen. 18:19).

As grandes cenas da vida de Abraão – a espera de uma criança, o nascimento de Ismael, a tensão entre Sarah e Hagar, o nascimento de Isaac, e o episódio do sacrifício de Isaac – são todos sobre o seu papel como um pai (na próxima semana vou escrever sobre o perturbador episódio do sacrifício).

O Judaísmo, mais do que qualquer outra fé, vê a paternidade como o maior desafio de todos. No primeiro dia de Rosh Hashaná – o aniversário da criação – lemos sobre duas mães, Sarah e Hanah e o nascimento de seus filhos, como se dissesse: Toda a vida é um universo. Portanto, se você deseja compreender a criação do universo, pense sobre o nascimento de uma criança.

Abraão, o herói da fé, é simplesmente um pai. Stephen Hawking escreveu uma frase famosa no final de Uma Breve História do Tempo que, se tivéssemos uma Teoria do Campo Unificado, uma “teoria cientifica de tudo”, iriamos “conhecer a mente de D-s”. Acreditamos no contrário. Para conhecer a mente de D-s não precisamos da física teórica. Nós simplesmente precisamos saber o que é ser um pai ou uma mãe. O milagre do parto é o mais próximo que chegamos a compreender do amor-que-traz-nova-vida-no-mundo que é a criatividade de D-s.

Há uma passagem fascinante no livro de Yossi Klein Halevi sobre os cristãos e muçulmanos na terra de Israel, na entrada para o Jardim do Éden. Visitando um convento, a freira Madre Teresa lhe conta:

“Eu observo as famílias que visitam aqui nos fins de semana. Como os pais se comportam em relação aos filhos, falando com eles com paciência e incentivando-os a fazer perguntas inteligentes. É um exemplo para todo o mundo. A força deste povo é o amor dos pais para os filhos. Não apenas as mães, mas também os pais. Uma criança judia tem duas mães”.

O Judaísmo pega o que é natural e o santifica; pega o que é físico e o investe com a espiritualidade; o que é considerado normal e o vê como um milagre. O que Darwin viu como o desejo de reproduzir, o que Richard Dawkins chama de “o gene egoísta”, é para o judaísmo arte religiosa elevada, cheia de drama e beleza. Abraão, o pai, e Sarah, a mãe, são nossos modelos duradouros de paternidade como um presente de D-s e nossa maior vocação.

 

NOTAS:
1) Midrash Bereshit Rabá 38:13
2) Midrash Bereshit Rabá, 39:1

 

Texto original: “ON BEING A JEWISH PARENT” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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