BAMIDBAR

Posted on maio 23, 2017

BAMIDBAR

A História Sempre Repetida

Bamidbar retoma a história quando a deixamos no final de Shemot. O povo tinha viajado do Egito para o Monte Sinai. Lá eles receberam a Torá. Ali fizeram o Bezerro de Ouro. Lá eles foram perdoados após o apelo apaixonado de Moisés, e lá fizeram o Mishkan, o Tabernáculo, inaugurado no primeiro dia de Nissan, quase um ano após o êxodo. Agora, um mês depois, no primeiro dia do segundo mês, eles estão prontos para passar para a segunda parte da viagem, do Sinai à Terra Prometida.

No entanto, há um curioso atraso na narrativa. Dez capítulos passam até que os israelitas começam a viajar de fato (Números 10:33). Primeiro há um censo. Então há um relato do arranjo das tribos ao redor do Ohel Moed, a Tenda do Encontro. Há um longo relato dos levitas, suas famílias e respectivos papéis. Então há leis sobre a pureza do campo, a restituição, a sotá – a mulher suspeita de adultério – e o nazireu. Uma longa série de passagens descreve os preparativos finais para a viagem. Só então eles partem. Por que essa longa série de aparentes digressões?

É fácil pensar na Torá como um livro que simplesmente nos relata eventos como eles ocorreram, intercalados com vários mandamentos. Nessa visão, a Torá é história mais lei. Isto é o que aconteceu, essas são as regras que devemos obedecer, e há uma conexão entre elas, às vezes claramente (como no caso das leis acompanhadas do lembrete de que “vocês foram escravos no Egito”), às vezes menos evidente.

Mas a Torá não é mera história com uma sequência de eventos. A Torá trata das verdades que emergem através do tempo. Essa é uma das grandes diferenças entre a antiga Israel e a Grécia antiga. A Grécia antiga buscava a verdade contemplando a natureza e a razão. A natureza deu origem à ciência, a razão à filosofia. A antiga Israel encontrou a verdade na história, nos eventos e no que D-s nos disse para aprendermos com eles. A ciência trata da natureza, o judaísmo é sobre a natureza humana, e há uma grande diferença entre elas. A natureza não sabe nada sobre o livre arbítrio. Os cientistas muitas vezes negam que ele exista. Mas a humanidade é constituída por sua liberdade. Nós somos o que escolhemos ser. Nenhum planeta escolhe ser hospitaleiro para a vida. Nenhum peixe escolhe ser um herói. Nenhum pavão escolhe ser vaidoso. Os seres humanos escolhem. E nesse fato nasce o drama ao qual toda a Torá é um comentário: como a liberdade pode coexistir com a ordem? O drama é ambientado no palco da história, e se desenrola por meio de cinco atos, cada um com múltiplas cenas.

A forma básica da narrativa é aproximadamente a mesma em todos os cinco casos. Primeiro, D-s cria ordem. Então a humanidade cria o caos. Consequências terríveis se seguem. Então D-s começa de novo, profundamente entristecido, mas nunca perdendo Sua fé na única forma de vida em que Ele colocou a Sua imagem e à qual Ele deu o dom singular que fez a humanidade divina, ou seja, a própria liberdade.

O primeiro ato é relatado em Gênesis 1-11. D-s cria um universo ordenado e modela a humanidade do pó da terra em que Ele sopra sua própria respiração. Mas os seres humanos pecam: primeiro Adão e Eva, depois Caim, então a geração do Dilúvio. A terra está cheia de violência. D-s traz um dilúvio e começa outra vez, fazendo uma aliança com Noé. A humanidade pecou novamente fazendo a Torre de Babel (o primeiro ato do imperialismo, como discuti em um estudo anterior). Então D-s começa de novo, buscando alguém que seria um modelo que irá mostrar ao mundo o que é viver em resposta fiel à palavra de D-s. Ele encontra isso em Abraão e Sarah.

O segundo ato é contado em Gênesis 12-50. A nova ordem é baseada na família e fidelidade, amor e confiança. Mas isso também começa a desvendar. Há tensão entre Esaú e Jacob, entre as esposas de Jacob, Leah e Raquel, e entre seus filhos. Dez filhos de Jacob vendem o décimo primeiro, José, à escravidão. Essa é uma ofensa contra a liberdade, e uma catástrofe se segue – não uma inundação, mas uma escassez de alimentos, e como resultado a família de Jacob vai para o exílio no Egito, onde todo o povo se torna escravo. D-s está prestes a começar de novo, não com uma família desta vez, mas com uma nação, que é o que os filhos de Abraão se tornaram agora.

O terceiro ato é o assunto do livro de Shemot. D-s resgata os israelitas do Egito como Ele uma vez salvou Noé do Dilúvio. Como com Noé (e Abraão), D-s faz uma aliança, desta vez no Sinai, e é muito mais extensa do que seus precursores. É um modelo para a ordem social, para toda uma sociedade baseada na lei e na justiça. Mais uma vez, no entanto, os seres humanos criam o caos, fazendo um bezerro de ouro apenas quarenta dias após a grande revelação. D-s ameaça uma catástrofe, a destruição de toda a nação e um novo inicio com Moisés, como Ele havia feito com Noé e Abraão (Êxodo 32:10). Somente o apelo apaixonado de Moisés impede que isso aconteça. D-s então institui uma nova ordem.

O quarto ato começa com um relato desta ordem, que é longa, sem precedentes, estendendo-se de Êxodo 35 através de todo o livro de Vaykrá e dos primeiros dez capítulos de Bamidbar. A natureza dessa nova ordem é que D-s se torna não simplesmente o criador da história e aquele que determina a lei. Ele se torna uma Presença permanente no meio do campo. Daí a construção do Mishkan, que ocupa o último terço de Shemot, e as leis de pureza e santidade, bem como as de amor e justiça, que constituem virtualmente todo Vaykrá. Pureza e santidade são exigidas pelo fato de que D-s se fechou de repente. No Tabernáculo, a Presença Divina tem um lar na terra, e quem se aproxima de D-s deve ser santo e puro. Agora, os israelitas estão prontos para começar a próxima etapa da jornada, mas só depois de uma longa introdução.

Essa longa introdução, no início de Bamidbar, trata de criar um sentido de ordem dentro do campo. Daí o recenseamento e a disposição detalhada das tribos, assim como a extensa contagem dos levitas, a tribo que fazia a intermediação entre o povo e a Presença Divina. Daí também, na parashá da próxima semana, as três leis – indenizações, a sotá e o nazir – direcionadas para as três forças que sempre colocam em risco a ordem social: roubo, adultério e álcool. É como se D-s estivesse dizendo aos israelitas, assim é a ordem. Cada pessoa tem seu lugar dentro da família, da tribo e da nação. Todo mundo foi contado e cada pessoa conta. Preserve e proteja esta ordem, pois sem ela você não pode entrar na terra, lutar suas batalhas e criar uma sociedade justa.

Tragicamente, conforme Bamidbar se desenrola, vemos que os israelitas se tornam seu pior inimigo. Eles reclamam sobre a comida. Miriam e Aarão queixam-se de Moisés. Depois vem a catástrofe, o episódio dos espiões, em que o povo, desmoralizado, mostra que ainda não está pronto para a liberdade. Novamente, como no caso do Bezerro de Ouro, há caos no acampamento. Novamente, D-s ameaça destruir a nação e começar novamente com Moisés (Números 14:12). Novamente, somente a poderosa súplica de Moisés salva o povo. D-s decide mais uma vez começar de novo, desta vez com a próxima geração e um novo líder. O livro de Devarim é o prelúdio de Moisés para o quinto ato, que ocorre nos dias de seu sucessor Josué.

A história judaica é estranha. Uma vez depois da outra o povo judeu se separou – nos dias do Primeiro Templo, quando o reino dividiu-se em dois; no final do Segundo Templo, quando foi conduzido em grupos e seitas rivais; e na idade moderna, no início do século XIX, quando se fragmentou em religioso e secular na Europa Oriental, ortodoxa e outros no Ocidente. Essas divisões ainda não foram curadas.

E assim o povo judeu continua repetindo a história contada cinco vezes na Torá. D-s cria ordem. Os humanos criam o caos. Coisas ruins acontecem, então D-s e Israel começam de novo. A história nunca terminará? De uma forma ou de outra, não é por acaso que Bamidbar costuma preceder Shavuot, aniversário da entrega da Torá no Sinai. D-s nunca se cansa de nos lembrar que o desafio humano central em cada era é se a liberdade pode coexistir com a ordem. Pode, quando os seres humanos escolhem livremente seguir as leis de D-s, dadas de uma maneira à humanidade após o Dilúvio e de outra para Israel depois do êxodo.

A alternativa, antiga e moderna, é a regra do poder, na qual, como disse Tucídides, os fortes fazem o que querem e os fracos sofrem como devem. Isso não é liberdade como a Torá entende, nem é uma receita de amor e justiça. Cada ano, quando nos preparamos para Shavuot, lendo a parashá Bamidbar, ouvimos o chamado de D-s: aqui na Torá e nas suas mitzvot está o caminho para criar uma liberdade que honra a ordem e uma ordem social que honra a liberdade humana. Não há outro caminho.

 

Texto original: “THE EVER-REPEATED STORY” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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