BEHALOTECHA

Posted on junho 21, 2016

BEHALOTECHA

Do Desespero à Esperança

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Houve momentos em que uma certa passagem desta parashá, para mim, funcionou como um salva-vidas. Nenhuma posição de liderança é fácil. Liderar judeus é mais difícil ainda. E a liderança espiritual pode ser considerada a mais difícil de todas elas. Os líderes têm uma face pública que é geralmente calma, otimista e relaxada. Mas por trás da fachada podemos todos experimentar as tempestades de emoções na medida que percebemos o quão profundas são as divisões entre as pessoas, como intratáveis são alguns dos problemas, e como é fino o gelo no qual estamos apoiados. Talvez todos nós experimentamos isso em algum momento de nossas vidas, quando sabemos onde estamos e onde queremos estar, mas simplesmente não podemos ver uma rota de cá para lá. Esse é o prelúdio para o desespero.

Sempre que me sinto dessa forma gosto de voltar para o momento lancinante da nossa parashá quando Moisés chegou ao seu ponto mais baixo. A causa precipitante foi aparentemente leve. As pessoas estavam envolvidas em sua atividade favorita: reclamando sobre a comida. Com saudade enganadora, falavam sobre os peixes que comiam no Egito, os pepinos, melões, alhos-poró, cebolas e alhos. Foi-se a memória da escravidão. Tudo o que lembravam era a cozinha. Com isso, compreensivelmente, D-s ficou muito irritado (Num. 11:10). Mas Moisés estava mais do que zangado. Ele sofreu um colapso emocional completo. E disse isso a D-s:

“Por que você trouxe este mal sobre o teu servo? Por que eu não consegui encontrar favor aos seus olhos, de forma que Você colocou o fardo de todo este povo sobre mim? Será que eu criei este povo todo? Eu dei à luz a tudo isso, de forma que Você deve dizer-me, ‘Leve-o no seu colo’, como a babá leva um bebê? … Onde posso encontrar carne para dar a todo este povo quando eles clamam para mim dizendo, Dá-nos carne para comer? Eu não posso carregar todo este povo sozinho. É muito pesado para mim. Se é isso que você está fazendo comigo, então, se tenho achado graça aos teus olhos, mate-me agora, e não me deixe ver todo este mal” (Num. 11:11-15).

Isso para mim é uma alusão ao desespero. Sempre que eu me senti incapaz de continuar, gostava de ler esta passagem e pensar: “Se eu ainda não cheguei a este ponto, eu estou bem”. De alguma forma, o conhecimento de que o maior líder judeu de todos os tempos havia experimentado essa profundidade de escuridão, era encorajador. Isso nos fala que o sentimento de fracasso não significa necessariamente que você falhou. Significa apenas que você ainda não conseguiu. Muito menos significa que você é um fracasso. Pelo contrário, a falha surge para aqueles que assumem riscos; e a vontade de assumir riscos é absolutamente necessária se você procurar, de certa forma, mudar o mundo para melhor.

O que é surpreendente sobre o Tanach é a maneira como documenta essas noites sombrias da alma na vida de alguns dos maiores heróis de espírito. Recordemos as palavras do rei David: “Meu D-s, meu D-s, por que me abandonaste?” (Sal. 22:2). Muitos dos salmos mais poderosos vêm deste mesmo território emocional. “Das profundezas clamo a Ti” (Sal 130:1). “Salva-me, ó D-s, pois as águas atingiram meu pescoço” (Sal. 69:2). “Sou um homem impotente, abandonado entre os mortos… Você me colocou na cova mais profunda, na escuridão, nas profundezas” (Sal. 88:5-7).

O que o Tanach está nos dizendo com essas histórias é profundamente libertador. O Judaísmo não é uma receita para a suavidade ou bem-aventurança. Não é uma garantia de que você será poupado de sofrimento e dor. Não é o que os estoicos procuram, apatheia, uma vida sem ser perturbado pela paixão. Também não é um caminho para o nirvana, acalmando os fogos de sentimento pela extinção do eu. Essas coisas têm uma beleza espiritual própria, e seus pares podem ser encontrados nas vertentes mais místicas do judaísmo. Mas elas não são do mundo dos heróis e heroínas do Tanach.

Por que isso? Porque o judaísmo é uma fé para aqueles que procuram mudar o mundo. Isso é incomum na história da fé. A maioria das religiões aceitam o mundo do jeito que ele é. O judaísmo é um protesto contra o mundo como ele está sendo, em nome do mundo que deveria ser. Ser judeu é procurar fazer a diferença, para mudar vidas para melhor, para curar algumas das cicatrizes do nosso mundo fraturado. Mas as pessoas não gostam de mudanças. É por isso que Moisés, David, Elias e Jeremias acharam que a vida era muito dura.

Podemos dizer precisamente o que trouxe Moisés ao desespero. Ele havia enfrentado um desafio semelhante anteriormente. De volta ao livro do Êxodo, o povo tinha feito a mesma queixa: “Se tivéssemos morrido pela mão do Senhor na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne e comendo pão a fartar…. porque nos trouxe, toda essa multidão, a este deserto para morrer de fome” (Ex. 16:3). Moises, naquela ocasião, não experimentou qualquer crise. As pessoas estavam com fome e precisavam de comida. Isso foi um pedido legítimo.

Desde então, porém, eles tinham experimentado algo da revelação no Monte Sinai e da construção do Tabernáculo. Eles tinham chegado mais perto de D-s do que qualquer outra nação jamais havia feito anteriormente. Nem estavam morrendo de fome. Sua queixa não era que eles não tinham comida. Eles tinham o maná. Sua reclamação foi que aquilo era maçante: “Agora nós perdemos nosso apetite (literalmente, “a nossa alma está seca”); nunca vemos nada além deste maná!” (Ex. 11:6). Tinham chegado às alturas espirituais, mas permaneceram as mesmas pessoas recalcitrantes, ingratas, as mesmas pessoas mesquinhas que tinha sido anteriormente (2).

Foi isso que fez Moisés sentir que toda a sua missão tinha fracassado e continuaria a falhar. Sua missão era ajudar os israelitas a criar uma sociedade que seria o oposto do Egito, que libertaria em vez de oprimir, iria dignificar e não escravizar. Mas as pessoas não tinham mudado. Pior: elas haviam se refugiado na nostalgia mais absurda que tinham do Egito: memórias de peixes, pepinos, alho e o resto. Moisés tinha descoberto que era mais fácil tirar os israelitas do Egito do que tirar o Egito de dentro dos israelitas. Se as pessoas não tinham mudado até agora, era uma suposição razoável a de que nunca o fariam. Moisés estava olhando para sua própria derrota. Não havia nenhum motivo para continuar.

D-s então o confortou. Primeiro Ele lhe disse para reunir setenta anciãos para compartilhar com ele o peso da liderança. Então Ele lhe disse para não se preocupar com a comida. As pessoas logo teriam carne em abundância. Ela veio na forma de uma enorme avalanche de codornas.

O que é mais impressionante sobre essa história é que, posteriormente, Moisés parecia ser um homem mudado. Josué contou a ele que poderia haver um desafio à sua liderança, e ele respondeu: “Você está com ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor pusesse o seu espírito sobre eles” (Num. 11:29). No capítulo seguinte, quando seu próprio irmão e irmã começam a criticá-lo, ele reage com calma total. Quando D-s pune Miriam, Moisés reza por ela. É precisamente neste ponto do longo relato bíblico da vida de Moisés que a Torá diz: “O homem Moisés era muito humilde, mais do que qualquer outro homem na terra” (Num. 12:3).

A Torá está nos dando um notável relato da psicodinâmica da crise emocional. A primeira coisa que ela está nos dizendo é que é importante, em meio ao desespero, não ficar sozinho. D-s desempenha o papel de Consolador. É Ele que levanta Moises do poço do desespero. Ele fala diretamente às preocupações de Moisés. D-s lhe diz que ele não terá que liderar sozinho no futuro. Haverá outros para ajudá-lo. Então Ele diz para não ficar muito preocupado com a reclamação do povo. Eles logo teriam tanta carne que iriam ficar doentes, e que não iriam reclamar sobre a comida novamente.

O princípio essencial aqui é o que os sábios queriam transmitir quando disseram: “Um prisioneiro não pode libertar-se da prisão”. Ele precisa de alguém para levantá-lo da depressão. É por isso que o judaísmo é tão insistente em não deixar as pessoas sozinhas em tempos de vulnerabilidade máxima. Daí os princípios de visitar os enfermos, confortar os enlutados, incluir os solitários (“o estrangeiro, o órfão e a viúva”) em celebrações festivas, e oferecer hospitalidade – um ato dito ser “maior do que receber a Shechiná”. Precisamente porque a depressão isola as pessoas do contato com outros, e permanecer sozinho intensifica o desespero. Não está claro o que os setenta anciãos realmente fizeram para ajudar Moisés. Mas simplesmente estar ali com ele era parte da cura.

A outra coisa que está nos dizendo é que sobreviver ao desespero é uma experiência de transformação do caráter. É quando a sua autoestima vira pó que de repente você percebe que a vida não se trata de você. Trata-se de outros, e de ideais, e um sentido de missão ou vocação. O que importa é a causa, não a pessoa. Isso é a verdadeira humildade. Como C. S. Lewis disse sabiamente: humildade não é pensar menos sobre si mesmo. Trata-se de pensar em si mesmo menos.

Quando você chegou a este ponto, mesmo se você tiver feito isso através das experiências mais contundentes, você se torna mais forte do que poderia imaginar ser possível. Você aprendeu a não colocar sua autoimagem na questão. Você aprendeu a não pensar em termos de autoimagem de maneira alguma. Isso é o que o Rabino Yohanan quis dizer com: “Grandeza é a humildade”. A grandeza é uma vida voltada para fora, de modo que as questões do sofrimento de outras pessoas importa mais do que a sua própria. A marca de grandeza é a combinação de força e gentileza que está entre as maiores forças de cura na vida humana.

Moisés acreditava que ele era um fracasso. Vale lembrar isso cada vez que pensamos que somos fracassos. Sua jornada do desespero à força de auto apagamento é uma das grandes narrativas psicológicas na Torá, um manual atemporal sobre esperança.

 

NOTAS:
[1] O mesmo ocorreu com Jó, mas Jó não era um profeta, e de acordo com muitos comentaristas, nem mesmo era judeu. O livro de Jó trata sobre outro assunto totalmente diferente, qual seja, ‘Por que coisas ruins acontecem pessoas boas?’ Essa é uma pergunta a respeito de D-s, e não sobre a humanidade.
[2] Note que o texto atribui a denúncia à asafsuf, a ralé, que alguns comentaristas consideram como sendo a “multidão misturada” que se juntou aos israelitas no êxodo.

 

Texto original: “FROM DESPAIR TO HOPE” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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