BERESHIT

Posted on outubro 8, 2015

BERESHIT

A Arte de Ouvir

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Qual foi exatamente o primeiro pecado? O que era a Árvore do Conhecimento do bem e do mal? Este tipo de conhecimento seria algo tão ruim que teve de ser proibido, e só adquirido através do pecado? Saber a diferença entre o bem e o mal não é essencial para o ser humano? Não é uma das mais elevadas formas de conhecimento? Certamente não iria D-s querer que os seres humanos o tivessem? Por que então Ele proíbe comer do fruto que aquela árvore produziu?
Acaso Adão e Eva já não teriam esse conhecimento antes de comer o fruto, precisamente em virtude de ser “à imagem e semelhança de D-s”? Certamente isso estava implícito no fato de que eles foram ordenados por D-s: Frutificai e multiplicai-vos. Tenham domínio sobre a natureza. Não comam da árvore”. Para alguém entender um comando, ele deve saber que é bom obedecer e mal desobedecer. Então eles já tinham, pelo menos potencialmente, o conhecimento do bem e do mal. O que então mudou quando comeram do fruto? Essas perguntas vão tão fundo que ameaçam fazer toda a narrativa incompreensível.
Maimônides entendeu isso. Por isso ele se voltou para esse episódio no início do Guia dos Perplexos (Livro 1, Capítulo 2). Sua resposta, porém, é desconcertante. Antes de comer o fruto, diz ele, os primeiros seres humanos sabiam a diferença entre a verdade e a mentira. O que eles adquiriram ao comer o fruto foi o conhecimento de “coisas geralmente aceitas”. É geralmente aceito que o assassinato é mal e a honestidade é boa. Será que Maimônides quis dizer que a moralidade é mera convenção? Certamente não. O que ele quer dizer é que depois de comer o fruto, o homem e a mulher estavam envergonhados porque estavam nus, e que isso é uma mera questão de convenção social, porque nem todo mundo fica envergonhado com a nudez. Mas como podemos equacionar ‘estar envergonhado porque você está nu’ com “conhecimento do bem e do mal”? Não parece ser esse tipo de coisa de forma alguma. Convenções de vestimentas têm mais a ver com estética do que com ética.
É tudo muito obscuro, ou pelo menos era para mim até que me deparei com um dos momentos mais fascinantes da história da Segunda Guerra Mundial.
Após o ataque a Pearl Harbour em dezembro de 1941, os americanos sabiam que estavam prestes a entrar em uma guerra contra uma nação, o Japão, cuja cultura eles não entendiam. Então eles encarregaram uma das maiores antropólogas do século XX, Ruth Benedict, para explicar a eles sobre os japoneses; o que ela fez. Depois da guerra, ela publicou suas ideias em um livro, O Crisântemo e a Espada. Uma de suas ideias centrais foi a diferença entre as culturas de vergonha e as culturas de culpa. Nas culturas de vergonha o valor mais elevado é a honra. Nas culturas de culpa, é a justiça. Vergonha é o sentimento ruim de que falhamos em viver de acordo com as expectativas que os outros têm de nós. A culpa é o que sentimos quando falhamos em viver à altura de nossas próprias demandas de consciência sobre nós mesmos. A vergonha é dirigida a outro. A culpa é uma orientação interna.
Filósofos, entre eles Bernard Williams, têm apontado que as culturas de vergonha são geralmente visuais. A própria vergonha tem a ver com a maneira que você parece (ou imagina que você parece) aos olhos de outras pessoas. A reação instintiva à vergonha é querer se tornar invisível, ou querer estar em outro lugar. A culpa, pelo contrário, é muito mais interna. Você não pode escapar dela tornando-se invisível ou estando em outro lugar. Sua consciência o acompanha onde quer que você vá, independentemente de ser visto por outros. Culturas de culpa são culturas de ouvir, não de olhar.
Com esse contraste em mente agora podemos entender a história do primeiro pecado. Trata-se de aparência, vergonha, visão e olhar. A serpente diz à mulher: “D-s sabe que no dia em que dele (o fruto) comerdes, seus olhos se abrirão, e sereis como D-s, conhecendo o bem e o mal”. Foi isso, de fato, o que aconteceu: “Os olhos de ambos foram abertos, e eles perceberam que estavam nus”. A Torá enfatizou a aparência da árvore: “A mulher viu que a árvore era boa para comer e desejável aos olhos, e que a árvore era atraente como um meio para ganhar inteligência”. A emoção central na história é a vergonha. Antes de comer o fruto o casal estava “nu, mas não tinha vergonha”. Depois de comer o fruto da arvore eles sentem vergonha e procuram esconder-se. Cada elemento da história – o fruto, a árvore, a nudez, a vergonha – tem o elemento visual típico de uma cultura da vergonha.
Mas no judaísmo acreditamos que D-s é ouvido, não visto. Os primeiros seres humanos “ouviram a voz de D-s se movendo no jardim com o vento do dia”. Respondendo a D-s, o homem diz: “Ouvi a tua voz no jardim e tive medo, porque eu estava nu, então me escondi”. Note a ironia deliberada, e até mesmo bem-humorada do casal. Eles ouviram a voz de D-s no jardim, e “se esconderam de D-s entre as árvores do jardim”. Mas você não pode se esconder de uma voz. Esconder-se é um meio de tentar não ser visto. É uma resposta imediata e intuitiva à vergonha. Mas a Torá é o exemplo supremo de uma cultura de culpa, e não de vergonha, e você não pode escapar da culpa escondendo-se. A culpa não tem nada a ver com a aparência e tudo a ver com a consciência, a voz de D-s no coração humano.
O pecado dos primeiros seres humanos no Jardim do Éden foi que eles seguiram seus olhos, não seus ouvidos. Suas ações foram determinadas pelo que viram, a beleza da árvore; não pelo que ouviram, ou seja, a palavra de D-s ordenando-lhes para não comer o fruto da arvore. O resultado foi que eles realmente adquiriram um conhecimento do bem e do mal, mas o tipo errado de conhecimento. Eles adquiriram uma ética de vergonha, não de culpa; da aparência e não da consciência. Eu acredito que isso é o que Maimônides quis dizer com sua distinção entre verdade-e-falsidade e “coisas geralmente aceitas”. A ética da culpa é sobre a voz interior que lhe diz: “Isso é certo, isso é errado”, tão claramente quanto “Isso é verdade; isso é falso”. Mas uma ética de vergonha trata da convenção social. É uma questão de atender ou não as expectativas que os outros têm de você.
Culturas de vergonha são essencialmente códigos de conformidade social. Elas pertencem a grupos onde a socialização assume a forma de internalizar os valores do grupo de tal forma que você sente vergonha – uma forma aguda de constrangimento – quando você rompe alguns deles, sabendo que, se as pessoas vierem a descobrir o que você fez, isso fará você perder sua honra e sua ‘face’.
O Judaísmo não é precisamente esse tipo de moralidade, porque os judeus não se conformam com o que todo mundo faz. Abraão estava disposto, dizem os sábios, a estar de um lado, enquanto todo o resto do mundo estava do outro. Haman diz sobre os judeus, “Seus costumes são diferentes dos de todos os outros povos” (Esther 3:8). Os judeus têm sido frequentemente iconoclastas, desafiando os ídolos das épocas, a sabedoria da massa, o “espírito da época”, o politicamente correto.
Se os judeus tivessem seguido a maioria, teriam desaparecido há muito tempo. Na era bíblica eles eram os únicos monoteístas em um mundo pagão. Para a maioria da era pós-bíblica eles viviam em sociedades em que eles e sua fé foram compartilhados por apenas uma pequena minoria da população. O judaísmo é um protesto vivo contra o instinto de rebanho. A nossa voz é a discordante na conversa da humanidade. Consequentemente a ética do judaísmo não é uma questão de aparências, de honra e vergonha. É uma questão de dar ouvidos à voz de D-s nas profundezas da alma.
O drama de Adão e Eva não é sobre sexo ou maçãs ou pecado original ou sobre “a Queda” – interpretações que o não-judeu ocidental tem dado ao referido drama. Trata-se de algo mais profundo. É sobre o tipo de moralidade que somos “chamados” a viver. Será que nosso comportamento deve ser regulamentado pelo que todo mundo faz, como se a moralidade fosse como política: a vontade da maioria? Será que nosso horizonte emocional deve ser delimitado por honra e vergonha, dois sentimentos profundamente sociais? Será o nosso valor-chave aparência: como parecemos aos outros? Ou é algo completamente diferente, uma vontade de acatar a palavra e a vontade de D-s? Adão e Eva no Éden enfrentaram a escolha humana arquetípica entre o que os seus olhos viam (a árvore e seu fruto) e o que seus ouvidos ouviram (o comando de D-s). Porque escolheram o primeiro, eles sentiram vergonha e não culpa. Essa é uma forma de “conhecimento do bem e do mal” que, de uma perspectiva judaica, é a forma errada.
O judaísmo é uma religião de ouvir, e não de ver. Isso não quer dizer que não existem elementos visuais no judaísmo. Existem, mas eles não são primordiais. Ouvir é a tarefa sagrada. O mandamento mais famoso no judaísmo é o Shemá Israel, “Escuta, Israel”. O que fez Abraão, Moisés e os profetas serem diferentes de seus contemporâneos foi que eles ouviram a voz que para outros era inaudível. Em uma das grandiosas cenas dramáticas da Bíblia, D-s ensina a Elias que Ele não está no furacão, no terremoto ou no fogo, mas na “voz mansa e delicada”.
É preciso treinamento, foco e a capacidade para criar silêncio na alma para aprender a ouvir, seja à D-s ou a um ser humano. A capacidade de ver nos mostra a beleza do mundo criado, mas “a escuta” nos conecta com a alma do outro, e às vezes para a alma do Outro, a D-s como Ele nos fala, nos chama, convocando-nos para a nossa tarefa no mundo.
Se me perguntassem como encontrar D-s, eu diria “aprenda a ouvir”. Ouça a música do universo no chamado dos pássaros, no farfalhar das árvores, no estrondo e no suspiro das ondas. Ouça a poesia da oração, a música dos Salmos. Ouça profundamente àqueles que você ama e que te amam. Ouça as palavras de D-s na Torá e as ouça falar com você. Ouça os debates dos sábios através dos séculos enquanto tentavam ouvir insinuações e inflexões do texto.
Não se preocupe como você ou outras pessoas parecem. O mundo das aparências é um falso mundo de máscaras, disfarces e dissimulações. Ouvir não é fácil. Confesso que considero ouvir extraordinariamente difícil. Mas somente o ouvir atravessa o abismo entre alma e alma, eu e outro, eu e o Divino.
A espiritualidade judaica é a arte de ouvir.

Texto original: “THE ART OF LISTENING” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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