BESHALACH

Posted on janeiro 18, 2016

BESHALACH

Energia Renovável

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

A primeira tradução da Torá para outra língua – o Grego – ocorreu em torno do século II AEC no Egito durante o reinado de Ptolomeu II. É conhecida como a Septuaginta, em hebraico Hashiv’im, porque foi realizada por uma equipe de setenta estudiosos. O Talmud, no entanto, diz que em vários pontos os sábios envolvidos no projeto traduziram deliberadamente mal determinadas partes dos textos porque acreditavam que uma tradução literal seria simplesmente ininteligível para um público grego. Um desses textos foi: “No sétimo dia D-s terminou todo o trabalho que ele tinha feito”. Em vez disso os tradutores escreveram: “No sexto dia D-s terminou” (1).

O que ocorreu para que pensassem que os gregos não entenderiam? Como surgiu a ideia de que D-s criar o universo em seis dias faz mais sentido do que Ele tê-lo feito em sete? Parece complicado. No entanto, a resposta é simples. Os gregos não conseguiam entender o sétimo dia, o Shabat, como sendo em si mesmo parte da obra da criação. O que há de criativo no fato de descansar? O que vamos conseguir por não fazer coisa alguma, não trabalhar, não inventar? A ideia parece não fazer qualquer sentido.

Na verdade, temos o testemunho independente dos escritores gregos desse período, que entre outras coisas ridicularizavam o Shabat no judaísmo. Eles disseram que os judeus não trabalham um dia em sete porque são preguiçosos. A ideia de que o dia em si pode ter seu próprio valor independente estava, aparentemente, além de sua compreensão. Curiosamente, dentro de um período muito curto de tempo, o império de Alexandre o Grande começou a ruir, assim como havia ocorrido com a antiga cidade-estado de Atenas que deu origem a alguns dos maiores pensadores e escritores da história. Civilizações, como indivíduos, podem sofrer esgotamento. É o que acontece quando você não tem um dia de descanso previsto em sua programação. Como disse Achad ha-Am: mais do que o povo judeu tem mantido o sábado, o sábado tem mantido o povo judeu. Descanse um dia em sete e você não vai se esgotar.

O shabat, que encontramos pela primeira vez na parashá desta semana, é uma das maiores instituições que o mundo já conheceu. Ele mudou a forma como o mundo pensava sobre o tempo. Antes do judaísmo, as pessoas mediam o tempo, quer pelo sol – o calendário solar de 365 dias alinhando-os com as estações do ano – ou pela lua, isto é, pelos meses de aproximadamente 30 dias. A ideia da semana de sete dias – que não tem correspondência na natureza – nasceu na Torá e espalhou-se por todo o mundo através do cristianismo e do islamismo. Ambos pegaram emprestado do judaísmo, marcando a diferença simplesmente por tê-lo definido em um dia diferente. Temos anos por causa do sol, meses por causa da lua, e semanas por causa dos judeus.

O que o Shabat fez e ainda faz é criar espaço dentro de nossas vidas e na sociedade como um todo em que estamos verdadeiramente livres. Livre das pressões do trabalho; livre das demandas dos empregadores sem escrúpulos; livre das sirenes de chamadas, de uma sociedade de consumo, exortando-nos a destinar nosso caminho para a felicidade; livre para sermos nós mesmos na companhia daqueles que amamos. De alguma forma esse dia singular renovou o seu significado geração após geração, apesar da mais profunda transformação econômica e industrial. No tempo de Moisés significava liberdade da escravidão do faraó. No século XIX e início do século XX significava liberdade das condições de trabalho de longas horas por pouca retribuição financeira. Atualmente isso significa liberdade dos e-mails, smartphones e exigências de disponibilidade 24 h / 7 dias.

O que a nossa parashá nos diz é que o Shabat foi um dos primeiros mandamentos que os israelitas receberam ao deixarem o Egito. Tendo se queixado da falta de alimentos, D-s lhes disse que iria enviar-lhes maná do céu, mas não era para recolhê-lo no sétimo dia. Em vez disso, uma porção dupla cairia no sexto dia. É por isso que até hoje temos duas Chalot no Shabat, em memória daquele tempo.

O Shabat não teve precedentes só culturalmente. Foi também singular conceitualmente. Ao longo da história as pessoas têm sonhado com um mundo ideal. Chamamos essas visões de utopias, do grego UO que significa “não” e topos que significa “lugar” (2). São chamados assim porque tal sonho nunca se torna realidade, exceto em um caso, qual seja, o Shabat. Shabat é “utopia agora”, porque é nele que criamos, por vinte e cinco horas por semana, um mundo em que não há hierarquias, não há patrões e empregados, não há compradores e vendedores, não há desigualdades de riqueza ou poder, não há produção, não temos o trânsito, não temos barulho da fábrica ou clamor do mercado. É “o ponto imóvel do mundo que gira”, uma pausa entre os movimentos sinfônicos, uma pausa entre os capítulos dos nossos dias, um equivalente no tempo ao campo aberto entre as cidades onde você pode sentir a brisa e ouvir o canto dos pássaros. Shabat é utopia, não como vai ser no final dos tempos, mas sim como um ensaio para esse momento agora em nossa época.

D-s queria que os israelitas começassem o seu ensaio de um dia-em-sete da liberdade quase tão logo eles deixaram o Egito, porque a verdadeira liberdade, do tipo sete dias-em-sete, leva tempo, séculos, milênios. A Torá considerava a escravidão um erro (3), mas não a suprimiu imediatamente, porque as pessoas ainda não estavam prontas para isso. Nem a Grã-Bretanha nem a América a aboliram até o século XIX, e mesmo assim não sem luta. Contudo o resultado foi inevitável já que o Shabat havia sido posto em movimento, porque os escravos que conhecem liberdade um dia em sete, acabarão por se rebelar contra suas correntes.

O espírito humano precisa de tempo para respirar, para inalar, para crescer. A primeira regra na gestão do tempo é distinguir entre as questões que são importantes, e aquelas que são meramente urgentes. Sob pressão, as coisas que são importantes, mas não urgentes, tendem a ser preteridas. No entanto, muitas vezes são as que mais importam para a nossa felicidade e sensação de uma vida bem vivida. O shabat é o tempo dedicado às coisas que são importantes mas não urgentes: família, amigos, comunidade, uma sensação de santidade, a oração em que agradecemos a D-s pelas coisas boas da nossa vida, e leitura da Torá onde se reconta a longa e dramática história de nosso povo e nossa jornada. Shabat é quando celebramos shalom bait – a paz que vem do amor e reside no lar abençoado pela Shechiná, a presença de D-s, que você pode quase sentir na luz das velas, no vinho e no pão especial. Esta não é uma beleza criada por Michelangelo ou Leonardo, mas por cada um de nós: a ilha serena de tempo no meio de um mar, muitas vezes violento, num mundo inquieto.

Certa vez eu fiz parte, juntamente com o Dalai Lama, em um seminário (organizado pelo Instituto Elijah) em Amritsar, norte da Índia, a cidade sagrada dos Sikhs. No decorrer das conversas, transmitida a uma audiência de dois mil alunos sikh, um dos líderes sikh virou-se para os alunos e disse: “O que precisamos é o que os judeus têm: Shabat”. Imaginem vocês, disse ele, toda semana ter um dia dedicado para a família, o lar e os relacionamentos. Ele podia ver sua beleza. Nós podemos viver sua realidade.

Os gregos antigos não conseguiam entender como um dia de descanso poderia ser parte da criação. No entanto, é assim, pois sem descanso para o corpo, paz para a mente, silêncio para a alma, e uma renovação de nossos laços de identidade e de amor, o processo criativo, ao final, murcha e morre. É sofrimento de entropia, o princípio pelo qual todos os sistemas perdem energia ao longo do tempo. O povo judeu não perdeu energia ao longo do tempo, e ele permanece tão vital e criativo como sempre foi. A razão é o Shabat: a maior fonte de energia renovável da humanidade, o dia que nos dá força para continuar criando.

NOTAS:
(1) Talmud da Babilônia Meguilá 9a.
(2) A palavra foi criada por Sir Thomas More em 1516, que a usou como titulo de seu livro com esse nome.
(3) Sobre o erro da escravidão pela perspectivada da Torá, veja a importante análise em R.L. Rabinovitch, Mesilot Bilvavam (Maaliyot, 2015), 38-45. A base do argumento é nova, central tanto para a Torá escrita quanto para a Mishná, que todos os homens compartilham da mesma dignidade ontológica conforme a imagem e semelhança de D-s. Esse foi o contraste mais acentuado possível aos pontos de vista, por exemplo, de Platão e Aristóteles. R. Rabinovitch analisa a visão dos sábios, e de Rambam e Meiri, na frase “Eles serão vossos escravos para sempre” (Lev. 25:46). Observe também as citações que ele traz de Jó 31:13-15. Se eu neguei justiça a qualquer um dos meus servos… quando eles tiveram alguma queixa contra mim, o que vou fazer quando D-s me confrontar? O que vou responder quando chamado a prestar contas? Não foi Ele o mesmo que me formou no ventre que os formou? Não é o mesmo UM que nos formou ambos dentro de nossas mães?”

Texto original: “RENEWABLE ENERGY” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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