Posted on janeiro 14, 2016

A Criança Espiritual

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

O escritor norte-americano Bruce Feiler publicou recentemente um livro best-seller intitulado Os segredos de famílias felizes (1). É um trabalho envolvente que utiliza pesquisa largamente retirada de áreas como construção de equipe, resolução de problemas e resolução de conflitos, mostrando como técnicas de gestão também podem ser usadas em casa para ajudar a transformar as famílias em unidades coesas que abrem espaço para o crescimento pessoal.

No final, no entanto, ele ressalta uma questão muito marcante e inesperada: “A única coisa mais importante que você pode fazer para sua família pode ser a mais simples de todas: desenvolver uma forte narrativa familiar”. Ele cita um estudo da Universidade de Emory que relata o fato de quanto mais as crianças sabem sobre a história de sua família, “mais forte será seu senso de controle sobre suas vidas, maior será a sua autoestima, mais irão acreditar no sucesso do funcionamento da sua família” (2).

A narrativa da família conecta crianças com algo maior do que elas mesmos. Isso as ajuda a trazer o sentido de como elas se encaixam no mundo que existia antes delas nascerem. Dá-lhes o ponto de partida de uma identidade, que por sua vez torna-se a base da confiança. Isso permite que as crianças possam dizer: este é quem eu sou. Esta é a história da qual eu faço parte. Estas são as pessoas que vieram antes de mim e de quem sou descendente. Estas são as raízes pela qual cresce o caule que toma a direção do sol.

Em nenhum outro lugar essa questão faz-se mais dramática do que para Moisés na parashá desta semana. A décima praga está prestes a atacar. Moisés sabe que será a última. O faraó não vai simplesmente deixar o povo ir. Ele vai exortá-lo a sair. Então, por ordem de D-s, ele prepara o povo para a liberdade. Mas ele faz isso de uma maneira singular. Ele não fala sobre liberdade. Ele não fala sobre quebrar as correntes da escravidão. Ele nem sequer menciona a árdua jornada que se aproxima. Ele também não estimula seu entusiasmo, dando-lhes um vislumbre do destino, a Terra Prometida, que D-s jurou a Abraão, Isaac e Jacob, a terra de leite e mel.

Ele fala sobre crianças. Três vezes ao longo da parashá ele se volta para o tema:

E quando vossos filhos vos perguntarem: “O que você quer dizer com este rito?”, Você dirá… (Ex. 12:26-27).

E você deve explicar ao seu filho naquele dia: “É por causa do que o Senhor fez por mim, quando fui libertado do Egito” (Ex. 13:8).

E quando, no futuro, o seu filho lhe perguntar, dizendo: “O que isso significa?”, Você deve dizer a ele… (Ex. 13:14).

Isso é maravilhosamente não intuitivo. Ele não fala sobre o amanhã, mas sobre o futuro distante. Ele não comemora o momento da libertação. Ao contrário, ele quer garantir que irá formar parte da memória do povo até o final dos tempos. Ele quer que cada geração passe a história para a próxima. Ele quer que pais judeus se tornem educadores e crianças judias sejam guardiãs do passado para o bem do futuro. Inspirado por D-s, Moisés ensinou aos israelitas a lição que chegou por meio de uma rota diferente para os chineses: Se você planeja para um ano, plante arroz. Se você planeja para uma década, plante uma árvore. Se você planeja para um século, eduque uma criança.

Os judeus tornaram-se famosos ao longo dos tempos por colocar a educação em primeiro lugar. Onde outros construíram castelos e palácios, os judeus construíram escolas e casas de estudo. Daí fluiu todas as conquistas familiares pelas quais temos orgulho coletivo: o fato de que os judeus sabiam seus textos, mesmo em tempos de analfabetismo em massa; o registro de estudos judaicos e intelectuais; a surpreendente enorme representação de judeus entre os formadores da mente moderna; a reputação judaica, às vezes admirada, às vezes temida, por vezes caricaturada, pela agilidade mental, argumentação, debate, e a capacidade de ver todos os lados de um desentendimento.

Mas a questão de Moisés não era simplesmente essa. D-s nunca nos ordenou: Tu deves ganhar um Prêmio Nobel. O que ele queria que ensinássemos aos nossos filhos era uma história. Ele queria que nós ajudássemos nossos filhos a compreender quem eles são, de onde vieram, o que aconteceu com seus antepassados ​​para torná-los pessoas diferentes e em que momentos da sua história moldaram suas vidas e sonhos. Ele queria que nós déssemos aos nossos filhos uma identidade, transformando a história em memória, e a própria memória num senso de responsabilidade. Os judeus não foram convocados para ser uma nação de intelectuais. Eles foram conclamados a ser atores em um drama de redenção, um povo convidado por D-s para trazer bênçãos para o mundo pela forma como ele viveu e santificou a vida.

Há algum tempo, juntamente com muitos outros no Ocidente, temos por vezes negligenciado esse elemento profundamente espiritual da educação. Isso é o que faz do recente livro de Lisa Miller The Espiritual Child (3), um lembrete importante sobre uma verdade esquecida. A professora Miller ensina psicologia e educação na Universidade de Columbia e é coeditora da revista Espiritualidade na Prática Clínica. Seu livro não é sobre o Judaísmo ou até mesmo sobre religião como tal, mas especificamente sobre a importância dos pais incentivarem a espiritualidade da criança.

As crianças são naturalmente espirituais. Elas são fascinadas pela vastidão do universo e sobre nosso lugar nele. Elas têm o mesmo sentimento de admiração que encontramos em alguns dos melhores salmos. Elas adoram histórias, canções e rituais. Elas gostam da forma e da estrutura que dão para o tempo, para os relacionamentos e para a vida moral. Certamente os céticos e ateus muitas vezes ridicularizam a religião como sendo uma visão infantil sobre a realidade, mas isso só serve para fortalecer o corolário que a visão de uma criança da realidade é instintivamente, intuitivamente religiosa. Privar uma criança disso, ridicularizando a fé, abandonando o ritual, e concentrando-se no desempenho acadêmico e outras formas de sucesso, você a deixará faminta por alguns dos elementos mais importantes do bem-estar emocional e psicológico.

Como a professora Miller mostra, a evidência da pesquisa é convincente. As crianças que crescem em lares onde a espiritualidade é parte da atmosfera na casa são menos propensas a sucumbir à depressão, abuso de substâncias, agressão e comportamentos de alto risco, inclusive riscos físicos e “uma sexualidade desprovida de intimidade emocional”. A espiritualidade desempenha um papel na resistência, saúde física e mental e cura de uma criança. É uma dimensão fundamental da adolescência e sua intensa busca de identidade e propósito. A adolescência muitas vezes toma a forma de uma busca espiritual. E quando há um vínculo entre gerações através do qual as crianças e os pais vêm a compartilhar um sentimento de conexão com algo maior, uma enorme força interior nasce. Na verdade, a relação pai-filho, especialmente no judaísmo, espelha a relação entre nós e D-s.

É por isso que Moisés tantas vezes enfatiza o papel da pergunta no processo de educação: “Quando seu filho lhe perguntar, dizendo…” – uma característica ritualizada à mesa do Seder na forma do Má Nishtaná. O judaísmo é uma fé de questionamento e argumento, onde mesmo as maiores fazem perguntas sobre D-s, e onde os rabinos da Mishná e do Midrash discordam constantemente. A fé doutrinária rígida que desencoraja perguntas, exigindo obediência cega e submissão, é psicologicamente prejudicial e não prepara uma criança para a complexidade da vida real. E mais, a Torá é cuidadosa, no primeiro parágrafo do Shemá, ao dizer: “Amarás o Senhor, teu D-s…” antes de dizer: “Você deve ensinar estas coisas diligentemente para seus filhos”. A paternidade funciona quando seus filhos veem que você ama o que você quer que eles aprendam.

A longa caminhada para a liberdade, sugere a parashá desta semana, não é apenas uma questão de história, política, e muito menos milagres. Tem a ver com a relação entre pais e filhos. Trata-se de contar a história e transmiti-la através das gerações. Trata-se de um sentimento da presença de D-s em nossas vidas. Trata-se de criar espaço para a transcendência, a fascinação, a gratidão, a humildade, a empatia, o amor, o perdão e a compaixão, ornamentada por ritual, música e oração. Estas ajudam a dar confiança a uma criança, confiança e esperança, juntamente com uma sensação de identidade, pertencimento e de estar à vontade no universo.

Você não pode construir uma sociedade saudável através de famílias que não são emocionalmente saudáveis ​​e crianças cheias de raiva e conflitos. A fé começa nas famílias. A esperança nasce no lar.

NOTAS:
(1) Bruce Feiler, The Secrets of Happy Families, New York, William Morrow, 2013
(2) Ibid., 274. Feiler não cita a fonte, mas veja: Bohanek, Jennifer G., Kelly A. Marin, Robyn Fivush, and Marshall P. Duke. “Family Narrative Interaction and Children’s Sense of Self”. Family Process 45.1 (2006): 39-54.
(3) Miller, Lisa. The Spiritual Child: The New Science on Parenting for Health and Lifelong Thriving, New York, St Martin’s Press, 2015.

Texto original: “THE SPIRITUAL CHILD” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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