CHAYE SARA

Posted on novembro 18, 2024

CHAYE SARA

O Próximo Capítulo

Uma das características mais marcantes do judaísmo em comparação com, digamos, o cristianismo ou o islamismo, é que é impossível responder à pergunta: Quem é o personagem central do drama da fé? Em ambos os outros monoteísmos abraâmicos a resposta é óbvia. No judaísmo, é tudo menos isso. É Avraham, o fundador da família da aliança? É Yaacov, que deu seu nome Israel ao nosso povo e sua terra? Moisés, o libertador e legislador? David, o maior dos reis de Israel? Salomão, o construtor do Templo e o autor de sua literatura de sabedoria? Isaías, o poeta laureado da esperança? E entre as mulheres há uma riqueza e diversidade semelhantes.

É como se o nascimento do monoteísmo – a unidade intransigente das forças criativas, reveladoras e redentoras em ação no universo – criasse espaço para a diversidade total da condição humana emergir. Então Avraham, cuja vida chega ao fim na Parashá desta semana, é um indivíduo e não um arquétipo. Nem Isaac nem Yaacov – nem ninguém mais, aliás – é como ele. E o que nos impressiona é a pura serenidade do fim de sua vida. Em uma série de vinhetas, nós o vemos, sábio e voltado para o futuro, cuidando do futuro, amarrando as pontas soltas de uma vida de promessas adiadas.

Primeiro, ele faz a primeira aquisição de um lote na terra que lhe foi assegurado que um dia pertencerá a seus descendentes. Então, não deixando nada ao acaso, ele arranja uma esposa para Isaac, o filho que ele sabe que será o herdeiro da aliança.

Surpreendentemente, ele continua cheio de vigor e toma uma nova esposa, com quem tem seis filhos. Então, para evitar qualquer possível disputa sobre sucessão ou herança, ele dá, a todos os seis, presentes e os envia embora antes de morrer. Finalmente, lemos sobre sua morte, a descrição mais serena da morte na Torá:

Então Avraham expirou e morreu em boa velhice, velho e cheio de dias; e foi reunido ao seu povo. (Gênesis 25:8)

É quase tentador esquecer quanta dor ele sofreu em sua vida: a separação dolorosa da “casa de seu pai”, os conflitos e aborrecimentos de seu sobrinho Ló, as duas ocasiões em que ele teve que deixar a terra por causa da fome, ambas as quais o fizeram temer por sua vida; a longa espera por um filho, o conflito entre Sarah e Hagar, e a dupla provação de ter que mandar Ismael embora e aparentemente quase perder Isaac também.

De alguma forma, sentimos em Avraham a beleza e o poder de uma fé que coloca sua confiança em D-s tão totalmente que não há apreensão nem medo. Avraham não é isento de emoção. Sentimos isso em sua angústia pelo deslocamento de Ismael e seu protesto contra a aparente injustiça da destruição de Sodoma. Mas ele se coloca nas mãos de D-s. Ele faz o que lhe cabe fazer e confia em D-s para fazer o que Ele diz que fará. Há algo sublime em sua fé.

No entanto, a Torá – mesmo na Parashá desta semana, após o supremo julgamento da Amarração de Isaac – nos dá um vislumbre do desafio contínuo à sua fé. Sarah morreu. Avraham não tem onde enterrá-la. Vez após vez, D-s lhe prometeu a terra: assim que ele chega em Canaã, lemos: ‘O Senhor apareceu a Abrão e disse: “À sua descendência darei esta terra”’. (Gênesis 12:7)

Então, no próximo capítulo, depois que ele se separou de Ló, D-s diz: “Vá, ande por toda a extensão e largura da terra, porque Eu a estou dando a você”. (Gênesis 13:17) E novamente dois capítulos depois, “Eu sou o Senhor, que te tirei de Ur dos caldeus, para te dar esta terra, para que a possuísses”. (Gênesis 15:7)

E assim por diante, sete vezes no total. No entanto, agora Avraham não possui um centímetro quadrado para enterrar sua esposa. Isso prepara o cenário para um dos encontros mais complexos em Bereishit, no qual Avraham negocia o direito de comprar um campo e uma caverna.

É impossível em um breve espaço fazer justiça aos subtons dessa fascinante troca. Eis como ela abre:

Então Avraham se levantou de diante de seu morto e falou aos heteus, dizendo: “Sou um estrangeiro e um peregrino entre vocês. Vendam-me alguma propriedade para um local de sepultamento aqui para que eu possa enterrar meu morto.” Os heteus responderam a Avraham: “Ouça-nos, meu senhor. Você é um príncipe de D-s entre nós. Enterre seu morto no mais escolhido de nossos túmulos. Nenhum de nós recusará a você seu túmulo para enterrar seu morto.” (Gênesis 23: 3-6)

Avraham sinaliza sua relativa impotência. Ele pode ser rico. Ele tem grandes rebanhos e manadas. No entanto, ele não tem o direito legal de possuir terras. Ele é “um estrangeiro e um estranho”. Os hititas, com diplomacia requintada, respondem com aparente generosidade, mas desviam seu pedido. De qualquer forma, eles dizem, enterre seus mortos, mas para isso, você não precisa possuir terras. Nós permitiremos que você a enterre, mas a terra continuará sendo nossa. Mesmo assim, eles não se comprometem. Eles usam uma dupla negativa: “Nenhum de nós recusará…” É o início de um minueto elaborado. Avraham, com uma polidez igual à deles, se recusa a se desviar:

Então Avraham se levantou e se curvou diante do povo da terra, os hititas. Ele lhes disse: “Se vocês estão dispostos a me deixar enterrar meu morto, então me escutem e intercedam com Efrom, filho de Zoar, em meu favor, para que ele me venda a caverna de Machpelá, que lhe pertence e fica no fim do seu campo. Peçam a ele que a venda a mim pelo preço integral como um local de sepultamento entre vocês.” (Gênesis 23: 7-9)

Ele pega o compromisso vago deles e dá uma definição precisa. Se você concorda que eu possa enterrar meus mortos, então você deve concordar que eu deveria ser capaz de comprar a terra na qual fazer isso. E se você diz que ninguém vai me recusar, então certamente você não pode ter objeção em persuadir o homem que é dono do campo que eu desejo comprar.

Efrom, o heteu, estava sentado entre seu povo e respondeu a Avraham na presença de todos os heteus que tinham chegado ao portão de sua cidade. “Não, meu senhor”, disse ele. “Ouça-me; eu lhe dou o campo e a caverna que está nele. Eu a dou a você na presença do meu povo. Enterre seu morto.”

Novamente, uma elaborada demonstração de generosidade que não é nada disso. Três vezes Efrom disse: “Eu te dou”, mas ele não quis dizer isso, e Avraham sabia que ele não quis dizer isso.

Novamente Avraham se curvou diante do povo da terra e disse a Efrom, na presença deles: “Ouça-me, se quiser. Eu pagarei o preço do campo. Aceite-o de mim para que eu possa enterrar meu morto ali.” Efrom respondeu a Avraham: “Ouça-me, meu senhor; a terra vale quatrocentos siclos de prata, mas o que é isso entre mim e você? Enterre seu morto.”

Longe de entregar o campo, Efrom insiste em um preço muito inflacionado, enquanto parece descartá-lo como uma mera ninharia: “O que há entre mim e você?” Avraham imediatamente paga o preço, e o campo finalmente é seu.

O que vemos nesta breve, mas belamente matizada passagem é a pura vulnerabilidade de Avraham. Por mais que os cidadãos locais pareçam lhe prestar deferência, ele está inteiramente à mercê deles. Ele tem que usar toda a sua habilidade de negociação e, no final, deve pagar uma grande quantia por um pequeno pedaço de terra. Tudo parece um caminho impossivelmente longo da visão que D-s pintou para ele de todo o país um dia se tornar um lar para seus descendentes. No entanto, Avraham está contente. O próximo capítulo começa com as palavras:

Avraham já estava velho e avançado em anos, e o Senhor o havia abençoado em todas as coisas.  (Gênesis 24:1)

Essa é a fé de um Avraham. O homem a quem foi prometido tantos filhos quanto as estrelas do céu tem um filho para continuar a aliança. O homem a quem foi prometido a terra “do rio do Egito até o grande rio, o rio Eufrates” [1] adquiriu um campo e um túmulo. Mas isso é o suficiente. A jornada começou. Avraham sabe que “não é para você completar a tarefa”. Ele pode morrer contente.

Uma frase brilha na negociação com os hititas. Eles reconhecem Avraham, o estrangeiro e forasteiro, como “um príncipe de D-s em nosso meio”. O contraste com Ló não poderia ser maior. Lembre-se de que Ló havia abandonado sua distinção. Ele havia feito seu lar em Sodoma. Suas filhas haviam se casado com homens locais. Ele “se sentou no portão” [2] da cidade, o que implica que ele havia se tornado um dos anciãos ou juízes. No entanto, quando ele resistiu às pessoas que tinham a intenção de abusar de seus visitantes, elas disseram: “Este sujeito veio aqui como um estrangeiro e agora quer bancar o juiz!”. (Gênesis 19:9)

Ló, que se assimilou, foi desprezado. Avraham, que lutou e orou por seus vizinhos, mas manteve sua distância e diferença, foi respeitado. Assim foi então. Assim é agora. Não-judeus respeitam judeus que respeitam o judaísmo. Não-judeus desrespeitam judeus que desrespeitam o judaísmo.

Então, no final de sua vida, vemos Avraham, digno, satisfeito, sereno. Existem muitos tipos de heróis no judaísmo, mas poucos tão majestosos quanto o homem que primeiro ouviu o chamado de D-s e começou a jornada que ainda continuamos.

 

NOTAS
[1] Gênesis 15:18
[2] Gênesis 19:1

 

Texto original “The Next Chapter” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l

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