CHAYÊ SARAH

Posted on novembro 4, 2015

CHAYÊ SARAH

Fé no Futuro

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Ele tinha 137 anos de idade. Havia passado por dois eventos traumáticos envolvendo as pessoas mais preciosas para ele no mundo. A primeira envolveu o filho pelo qual ele havia esperado por toda a vida, Isaac. Ele e Sarah haviam perdido a esperança, mas D-s disse a ambos que eles teriam um filho juntos, e seria esse filho quem iria continuar a aliança. Os anos se passaram. Sarah não concebeu. Ela tinha envelhecido, mas D-s ainda insistiu que teriam um filho.
Eventualmente ele chegou. Houve alegria. Sarah disse: “D-s me trouxe o riso, e todo aquele que ouvir sobre isso vai rir comigo”. Então veio o momento terrível quando D-s disse a Abraão: “Toma teu filho, teu único filho, aquele a quem você ama” e o ofereça como um sacrifício. Abraão não debandou, protestou ou se atrasou. Pai e filho viajaram juntos, e só no último momento o comando veio do céu dizendo: “Pare”. Como é que um pai, e mais ainda um filho, sobrevivem a um trauma como esse?
Então veio a dor. Sarah, a amada esposa de Abraão, morreu. Ela tinha sido sua companheira constante, compartilhando com ele a viagem quando eles deixaram para trás tudo o que conheciam, sua terra, o local de nascimento e suas famílias. Duas vezes ela salvou a vida de Abraão, fingindo ser sua irmã.
O que faz um homem de 137 anos – a Torá chama de “idoso e avançado em anos” – depois de tal trauma e tal perda? Não ficaríamos surpresos ao descobrir que ele passou o resto de seus dias rememorando os fatos na tristeza. Ele havia feito o que D-s havia lhe pedido. No entanto, ele dificilmente poderia dizer que as promessas de D-s haviam sido cumpridas. A terra de Canaã foi-lhe prometida por sete vezes, mas quando Sarah morreu, ele não possuía uma porção dela, nem mesmo um lugar onde enterrar sua esposa. D-s lhe havia prometido muitos filhos, uma grande nação, muitas nações, tanto quanto os grãos de areia na praia do mar e as estrelas no céu.
No entanto, ele tinha apenas um filho da aliança, Isaac, a quem ele quase havia perdido, e que ainda não estava casado com a idade de trinta e sete anos. Abraão tinha todos os motivos para se sentar e chorar.
No entanto, ele não fez isso. Em uma das sequências mais extraordinárias de palavras da Torá, sua dor é descrita em apenas cinco palavras em hebraico; em português: “Abraão veio prantear e chorar por Sarah”. Então imediatamente lemos: “E Abraão levantou-se do seu pesar”. A partir de então ele se envolveu em uma enxurrada de atividades com dois objetivos em mente: primeiro comprar um lote de terra onde enterrar Sarah; depois encontrar uma esposa para seu filho. Note-se que esses dois objetivos correspondem exatamente às duas bênçãos divinas: terra e descendentes. Abraão não esperou por D-s para agir. Ele entendeu uma das verdades mais profundas do Judaísmo: que D-s está esperando por nossa ação.
Como Abraão superou o trauma e o sofrimento? Como sobreviver quando quase se perde o filho e perde, de verdade, seu parceiro de vida e ainda conserva a energia para continuar? O que deu a Abraão a sua capacidade de resistência, sua capacidade de sobreviver, seu espírito intacto?
Eu aprendi a resposta das pessoas que se tornaram meus mentores em coragem moral, quais sejam, os sobreviventes do Holocausto que tive o privilégio de conhecer. Eu me perguntava como eles continuaram vivendo, sabendo o que eles sabiam, vendo o que eles tinham visto? Sabemos que os soldados britânicos e americanos que libertaram os campos nunca esqueceram o que testemunharam. Na nova biografia de Henry Kissinger, realizada por Niall Fergusson, ele relata que entrou nos campos como um soldado americano e a visão que seus olhos encontraram transformou sua vida. Se isso era verdade para aqueles que simplesmente viram Bergen-Belsen e os outros campos, quanto mais infinitamente forte seria para aqueles que viveram lá e viram tantos morrerem. No entanto, os sobreviventes que eu conheci tinham a maior tenacidade na posse de suas vidas. Eu queria entender como eles levaram em frente suas vidas.
Finalmente eu descobri. A maioria parte deles não falava sobre o passado, nem mesmo para seus parceiros de casamento ou para seus filhos. Ao invés disso, eles resolveram criar uma nova vida em uma nova terra. Aprenderam a nova língua e os seus costumes. Eles encontraram trabalho. Eles construíram carreiras. Eles se casaram e tiveram filhos. Tendo perdido suas próprias famílias, os sobreviventes tornaram-se uma família uns para os outros. Eles olharam para a frente e não para trás. Primeiro eles construíram um futuro. Só então – às vezes quarenta ou cinquenta anos depois – eles falaram sobre o passado. Isso ocorreu quando eles contaram sua história, primeiro para as suas famílias, em seguida, para o mundo. Primeiro você tem que construir um futuro. Só então você pode lamentar o passado.
Duas pessoas na Torá olharam para trás. Uma explicitamente, a outra por envolvimento. Noé, o homem mais justo de sua geração, terminou sua vida fazendo vinho e se embebedando. A Torá não diz o porquê, mas podemos imaginar. Ele havia perdido um mundo inteiro. Enquanto ele e sua família estavam à salvo dentro da arca, todos os outros – todos os seus contemporâneos – haviam se afogado. Não é difícil imaginar este homem justo oprimido pela tristeza enquanto repassava em sua mente tudo o que havia acontecido, imaginando se ele poderia ter feito alguma coisa para salvar mais vidas ou evitar a catástrofe.
A esposa de Lot, contra a instrução dos anjos, realmente olhou para trás enquanto as cidades da planície desapareceram sob fogo e enxofre – a ira de D-s. Imediatamente ela foi transformada em uma estátua de sal – descrição gráfica da Torá sobre uma mulher tão oprimida pelo choque e tristeza que ficou incapaz de seguir em frente.
É o pano de fundo dessas duas histórias que nos ajuda a entender Abraão depois da morte de Sarah. Ele estabeleceu o precedente: em primeiro lugar construir o futuro, e só então você pode lamentar o passado. Se você inverter a ordem, você vai ser manter cativo pelo passado. Você não será capaz de seguir em frente. Vai se tornar como a mulher de Lot.
Algo dessa verdade profunda dirigiu o trabalho de um dos mais notáveis sobreviventes do Holocausto, o psicoterapeuta Viktor Frankl. Frankl viveu e superou Auschwitz, dedicando-se a dotar outros prisioneiros com a vontade de viver. Ele conta a história em vários livros, o mais famoso, Em Busca de Sentido. Ele fez isso encontrando para cada um deles uma tarefa que estivesse ‘chamando’ por eles, algo que ainda não tinham feito, mas que só eles poderiam fazer. Com efeito, ele lhes deu um futuro. Isso lhes permitiu sobreviver o presente e direcionar suas mentes para longe do passado.
Frankl viveu seus ensinamentos. Depois da libertação de Auschwitz ele construiu uma escola de psicoterapia chamada Logo terapia, com base na busca humana de significado. Era quase uma inversão da obra de Freud. A psicanálise freudiana havia encorajado as pessoas a pensar sobre o seu passado muito remoto. Frankl ensinou as pessoas a construir um futuro, ou mais precisamente, ouvir o futuro chamando por eles. Como Abraão, Frankl viveu uma vida longa e boa, ganhando reconhecimento mundial e morrendo com 92 anos de idade.
Abraão ouviu o futuro ‘chamando’ por ele. Sarah havia morrido. Isaac era solteiro. Abraão não tinha nem terra, nem netos. Ele não gritou com D-s, cheio de raiva ou angústia. Em vez disso, ele ouviu a voz mansa e delicada dizendo: O próximo passo depende de você. Você deve criar um futuro que eu vou preencher com o Meu espírito. Foi assim que Abraão sobreviveu ao choque e à tristeza. D-s nos livre de experimentar algo assim, mas se tivermos de viver situações similares, é assim que se deve sobreviver.
D-s entra na nossa vida como um ‘chamado’ do futuro. É como se o ouvíssemos nos acenando a partir do horizonte distante do tempo, exortando-nos a fazer uma viagem e empreender uma tarefa que, por caminhos que não podemos compreender plenamente, fomos criados para empreender. Esse é o significado da palavra vocação, literalmente “um chamado”, uma missão, uma tarefa para a qual somos convocados.
Nós não estamos aqui por acidente. Nós estamos aqui porque D-s assim quis, e porque há uma tarefa que estamos destinados a cumprir. Descobrir qual é a tarefa não é fácil, e muitas vezes leva muitos anos e falsos inícios. Mas, para cada um de nós há algo que D-s está chamando para realizar, um futuro ainda não realizado que aguarda a nossa atuação. É a orientação em direção ao futuro que define o judaísmo como uma fé, como eu explico no último capítulo do meu livro, Future Tense.
Grande parte da raiva, ódio e ressentimentos deste mundo são trazidos por pessoas obcecadas pelo passado e que, como a mulher de Lot, são incapazes de seguir em frente. Não há final feliz para esse tipo de história, só mais lágrimas e mais tragédia. O caminho de Abraão, em Chayê Sarah é diferente. Primeiro construa o futuro. Só então você pode lamentar o passado.

Texto original: “FAITH IN THE FUTURE” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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