DEVARIM

Posted on julho 26, 2017

DEVARIM

O Livro da Aliança

Começando a ler o quinto e último livro da Torá, gostaria de discutir três questões. Primeiro, por que o livro de Devarim tem a estrutura que faz dele uma mistura de história, direito, lembrança e antecipação?

Os sábios sabiam que Devarim tinha uma estrutura clara. Em outros lugares da Torá, alguns rabinos usaram o princípio de Semihut Haparashiot – onde podemos aprender algo do fato de que a passagem Y ocorre imediatamente após a passagem X. Outros, porém, não fizeram isso porque existe uma regra, Ein Mukdam Umu’achar BaTorá, que significa que a Torá nem sempre segue uma sequência cronológica rigorosa. Portanto, nem sempre podemos dar importância ao fato de que as passagens estão na ordem em que estão. No entanto, todos concordam que há uma ordem e estrutura precisas no livro de Devarim (Berahot 21b). Mas qual é a ordem?

Segundo: os sábios originalmente chamavam de Devarim de Mishnê Torá, uma “segunda lei”. Daí o nome latino Deuteronômio, que significa a segunda lei. Mas em que sentido Devarim é uma segunda lei? Algumas das leis que Moisés declarou no livro apareceram antes, outras não. É uma repetição das leis que Moisés recebeu no Sinai e na Tenda da Reunião? É algo novo? Qual é exatamente o significado de Mishnê Torá?

Terceiro: o que o livro está fazendo aqui? Ele representa os discursos que Moisés proferiu no último mês de sua vida para a geração que atravessaria o Jordão e entraria na Terra Prometida. Por que isso está incluído na Torá? Se a Torá é um livro de história, então deveríamos proceder diretamente do final de Bamidbar, na chegada dos israelitas às margens do rio Jordão, ao livro de Josué, quando eles atravessaram o rio e começaram a conquistar a terra. Se a Torá é um livro de lei, então Devarim deveria ser apenas uma coletânea de leis sem toda a reminiscência e profecia histórica que ele contém. Que tipo de livro é Devarim e qual é o seu significado para a Torá como um todo?

Várias descobertas arqueológicas relativamente recentes lançaram novas luzes sobre todas essas questões. São os registros gravados de tratados antigos entre poderes vizinhos. Entre eles estão “Monólito dos Predadores” que comemora a vitória de Eanatum, governante de Lagash no sul da Mesopotâmia, sobre o povo de Umma e o de Naram-Sin, rei de Kish e Akad, com o governante de Elam. Ambos datam do terceiro milênio AEC (antes da era comum), isto é, antes da época de Abraão.

Os tratados são de dois tipos: entre partidos com poder semelhantes (“tratados de paridade”) e aqueles entre um forte (um precursor da ideia moderna de uma superpotência) e um fraco. Esses últimos são conhecidos como “tratados de soberania”, soberania significando o poder dominante em uma região específica.

Um outro nome para tratado é, certamente, brit, ou aliança, e agora vemos seu significado para a compreensão do judaísmo. A aliança era a estrutura básica no antigo Oriente Médio de tratados entre poderes vizinhos. Abraão, por exemplo, faz um brit com Avimelech, rei de Gerar, em Beersheva (Genesis 21:27-32). O mesmo ocorre com Isaac (Gênesis 26:28). Jacob faz isso com Labão (Gênesis 31:44-54).

O que os tratados recentemente descobertos mostram é a forma precisa de pactos antigos. Eles tinham seis partes: (1) Eles se iniciam com um preâmbulo, estabelecendo a identidade da pessoa ou o poder que inicia a aliança. Depois disso vem (2) um prólogo histórico, revisando a história da relação entre as duas partes na aliança. Em seguida, vinham (3) as disposições do próprio pacto, as estipulações, que muitas vezes eram declaradas em duas formas, [a] princípios gerais e [b] disposições detalhadas. Seguia-se com (4) uma disposição para que a aliança fosse guardada em um lugar sagrado e lida regularmente. Em seguida, vinham (5) as sanções associadas à aliança, ou seja, as bênçãos que se seguiriam se fossem cumpridas e as maldições que ocorreriam se fossem quebradas. Por último, havia (6) uma declaração das testemunhas do acordo – geralmente os deuses das nações envolvidas. Todo o livro de Devarim está estruturado como uma aliança estendida, precisamente nessas linhas. É assim que funciona:

 1.preâmbulo1:1-1:5Anuncia lugar, tempo e pessoa que inicia a aliança que segue: Moisés em nome de D-s.
 2.prólogo histórico1:6-4:49Moisés reconta a história que os trouxe para onde estão, principalmente recordando os eventos descritos no livro de Bamidbar.
 3. Estipulações[a] caps. 5-11

[b] caps. 12-26
[a] disposições gerais: Dez Mandamentos, Shemá, etc. Recapitulação de eventos relacionados com o Pacto feito no Sinai; [b] disposições específicas: os detalhes da lei, com referencia especial de como elas devem aplicadas pelo povo como um todo na terra de Israel.
 4. Depósito e leitura regular27 e 31A lei a ser inscrita na pedra (monólito) no Monte Ebal; a Torá escrita por Moisés e colocada na arca; a ser lida pelo rei para o povo em uma assembleia nacional a cada sete anos.
 5. Sanções: as bênçãos e as maldições28O capítulo 28 estabelece as bênçãos e as maldições; os capítulos 29 e 30 trazem a renovação da aliança, juntamente com uma declaração que mesmo que o povo quebre a aliança e a maldição aconteça, o retorno, a teshuvá, ainda é possível.
6. Testemunhos30:19–32:1“Céu e Terra” (4:26, 30:19, 31:28, 32:1)
“A canção” (31:19)

 

Em outras palavras, além da canção de Moisés e da benção das tribos, com as quais o livro e a vida de Moisés se encerram, todo o livro de Devarim é uma aliança em escala monumental.

Agora vemos a natureza extraordinária do livro. Tomou uma fórmula política antiga e a usou para um propósito totalmente novo.

O que é único sobre a aliança no judaísmo é que, em primeiro lugar, uma das partes é o próprio D-s. Isso já era incompreensível para os vizinhos de Israel e continua extraordinário até hoje. A ideia de que D-s pode se comprometer com os seres humanos, ligando seu destino ao Seu, tornando-os Seus embaixadores – Suas “testemunhas” – para o mundo, ainda é radical e desafiador.

Em segundo lugar, a outra parte da aliança não é, como era no mundo antigo, o rei ou o governante da nação em questão, mas o povo como um todo. Todo israelita, como vimos em Êxodo 19 e 24 e ao longo de Deuteronômio, é parte da aliança e co-responsável com o povo como um todo para que seja mantida.

A partir disso chega a ideia de Kol Israel Arevin Zê Lazê, “todos os judeus são responsáveis ​​uns pelos outros”, bem como a ideia americana surgida muito tempo depois de “Nós, o povo”. Essa transformação significava que todo judeu tinha que conhecer a lei e ensiná-la aos seus filhos. Todo judeu tinha que conhecer a história de seu povo, recitando-a em Pessach e ao trazer as primeiras frutas da estação para Jerusalém.

Essa é a política da aliança, uma forma única de estrutura política que não é baseada na hierarquia de poder, mas em um senso compartilhado de história e destino. É uma política moral, dedicada a criar uma sociedade justa e afável que honre a dignidade de todos, especialmente os oprimidos, os pobres, os impotentes e marginais: a viúva, o órfão e o estrangeiro.

A estrutura do livro agora está clara. Ela segue precisamente a estrutura de um antigo tratado de soberania entre um poder forte, D-s e um fraco, os israelitas. Politicamente, tais tratados eram bem conhecidos no mundo antigo, mas religiosamente isso é único. Significa que D-s tomou uma nação inteira para ser Seus “parceiros na obra da criação”, mostrando a toda a humanidade o que é construir uma sociedade que honra cada indivíduo como uma imagem de D-s.

Agora entendemos o que significa Mishnê Torá. Significa que esse livro é uma “cópia” da aliança entre D-s e o povo feita no Sinai, renovada às margens do jordão e renovada novamente em momentos significativos da história judaica. É o registro escrito do acordo, assim como uma ketubá é um registro escrito das obrigações assumidas por um marido em relação a sua esposa.

Agora também entendemos o lugar de Devarim no Tanach como um todo. É o eixo por onde gira toda a história judaica. Se a geração que deixou o Egito tivesse tido a fé e a coragem para entrar na terra prometida, toda a história judaica se voltaria à revelação no Sinai. O episódio dos espiões, porém, mostrou que aquela geração não tinha o espírito para fazê-lo. Então, o momento crítico veio para a próxima geração, quando Moisés, ao final de sua vida, renovou a aliança com eles como condição para sua herança da terra. Os quatro livros anteriores da Torá levaram a esse momento, e todos os outros livros do Tanach são um comentário para ele – um relato de isso aconteceu ao longo do tempo.

Devarim é o livro da aliança, o ponto central da teologia judaica, e o projeto que ele define é único. Pois objetiva nada menos que a construção de uma sociedade que moralize seus membros, inspire outros, e sirva de modelo do que poderia ser alcançado se a humanidade como um todo adorasse o único D-s que nos criou a todos à Sua imagem.

 

Texto original: “THE BOOK OF THE COVENANT” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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