EKEV

Posted on julho 31, 2018

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Ouça, Ouça Realmente!

Cerca de 20 anos atrás, com a ajuda da Fundação Ashdown, iniciei uma conferência na Universidade Hebraica, em Jerusalém, sobre o futuro do povo judeu. Eu temia as profundas divisões entre secular e ultra-ortodoxo em Israel, entre as várias denominações na Diáspora, e entre Israel e a Diáspora.

Era uma brilhante variedade de mentes brilhantes da cultura judaica: acadêmicos de 16 países diferentes representando todos as matizes da identidade judaica. Havia professores de Harvard, Yale e Princeton, bem como da maioria das universidades de Israel. Foi um sucesso brilhante, ao mesmo tempo, um fracasso total.

Na metade do segundo dia, eu me virei para a minha esposa Elaine e disse: “A fala é brilhante. A escuta é inexistente”. Eventualmente eu não aguentava mais. “Vamos sair”, eu disse a ela. Eu não podia lidar com apresentações mais qualificadas de mentes que eram parti pris, lúcidas, coerentes, mas totalmente fechadas para ideias que estavam fora do raio de seus preconceitos. Longe de ser um conjunto de soluções para as divisões dentro do judaísmo, a conferência sintetizou perfeitamente o problema.

Decidimos viajar para o sul até Arad, para conhecer pela primeira vez o grande (e muito secular) romancista Amos Oz. Eu mencionei isso para um amigo. Ele estremeceu. “O que,” ​​ele perguntou, “você espera conseguir? Você realmente quer convertê-lo? ” “Não”, respondi, “quero fazer algo muito mais importante. Eu quero ouvi-lo”.

E assim foi. Por duas horas nos sentamos no escritório de Amos, ladeado de livros, na beira do deserto, e ouvimos. Daquela reunião veio, acredito, uma amizade genuína. Ele continuou secular. Eu permaneci religioso. Mas algo mágico, transformador, aconteceu mesmo assim. Nós ouvimos um ao outro.

Eu não posso falar por Amos, mas posso por mim mesmo. Senti a presença de uma mente profunda, um sentimento de intelecto, um mestre da linguagem – Amos é uma das poucas pessoas que conheço incapazes de proferir uma frase chata – e alguém que lutou à sua própria maneira com o que significa ser um judeu. Desde então, tenho tido um diálogo público com ele e outro com sua filha Fania Oz-Salzberger. Mas começou com um ato de escuta sustentada e focada.

Shemá é uma das palavras-chave do livro de Devarim, onde aparece nada menos que 92 vezes. É, de fato, uma das palavras-chave do judaísmo como um todo. É fundamental para as duas passagens que formam os dois primeiros parágrafos da oração que chamamos de Shemá(1), uma na parashá da semana passada, a outra nesta semana .

E mais: é intraduzível. Significa muitas coisas: ouvir, escutar, prestar atenção, compreender, internalizar e responder. É o hebraico bíblico mais próximo que chega a um verbo que significa “obedecer”.

Em geral, quando você encontra uma palavra em qualquer idioma que não pode ser traduzida em seu próprio idioma, você está próximo do aspecto pulsante dessa cultura. Para entender uma palavra intraduzível, você precisa estar preparado para sair da sua zona de conforto e entrar em uma mentalidade significativamente diferente da sua.

No nível mais básico, Shemá representa aquele aspecto do judaísmo que foi mais radical em seus dias: que D-s não pode ser visto. Ele só pode ser ouvido. De vez em quando Moisés adverte contra fazer ou adorar qualquer representação física do Divino. É um tema que percorre a Bíblia. Moisés lembra insistentemente ao povo que no Monte Sinai: “O Senhor falou a você do fogo. Você ouviu o som das palavras, mas não viu forma; havia apenas uma voz ”(Deuteronômio 4: 12). Mesmo quando Moisés menciona ver, ele está realmente falando sobre ouvir. Um exemplo clássico ocorre nos versos de abertura da parashá da próxima semana:

Veja [re’eh], estou colocando diante de vocês hoje uma bênção e uma maldição – a bênção se você ouvir [tishme’u] aos mandamentos do Senhor seu D-s que eu estou lhes dando hoje; a maldição se você não ouvir [lo tishme’u] aos mandamentos do Senhor seu D-us. (Deuteronômio 11: 26-28)

Isso afeta nossas metáforas mais básicas do conhecimento. Até hoje, em inglês, virtualmente todas as nossas palavras para entendimento ou intelecto são governadas pela metáfora da visão. Nós falamos de insight, retrospectiva, visão e imaginação. Falamos de pessoas sendo perceptivas, de fazer uma observação, de adotar uma perspectiva. Dizemos: “parece que”. Quando entendemos alguma coisa, dizemos “vejo”(2). Toda essa constelação linguística é o legado dos filósofos da Grécia antiga, o exemplo supremo de toda a história de uma cultura visual.

O judaísmo, pelo contrário, é uma cultura do ouvido mais que do olho. Como o rabino David Cohen, o discípulo de Rav Kook conhecido como “o nazireu”, aponta em seu livro, Kol ha-Nevuah, o Talmud Babilônico usa consistentemente a metáfora da audição. Então, quando uma prova é trazida, diz Ta shma: “Venha e ouça”. Quando fala de inferência, diz Shema mina: “Ouça isso”. Quando alguém discorda de um argumento, diz Lo shemiyah leih, “ele não podia ouvir”. Quando chega a uma conclusão, diz Mashma: “disso pode ser ouvido”. Maimônides chama a tradição oral, Mipi hashemua, “da boca do que foi ouvido”. Na cultura ocidental, a compreensão é uma forma de ver. No judaísmo é uma forma de escutar.

O que Moisés está nos dizendo em todo Devarim é que D-s não busca obediência cega. O fato de que não há palavra para “obediência” no hebraico bíblico, em uma religião de 613 ordens, é impressionante em si mesmo (o hebraico moderno teve que emprestar um verbo, letzayet, do aramaico). Ele quer que a gente ouça, não apenas com nossos ouvidos, mas com os recursos mais profundos de nossas mentes. Se D-s tivesse simplesmente buscado a obediência, ele teria criado robôs, não seres humanos com vontade própria. De fato, se Ele tivesse simplesmente buscado obediência, Ele teria ficado contente com a companhia dos anjos, que constantemente cantam os louvores de D-s e sempre fazem Sua vontade.

D-s, ao fazer os seres humanos “à Sua imagem”, estava criando a alteridade. E a ponte entre o eu e o outro é a conversa: falar e ouvir. Quando falamos, dizemos aos outros quem e o que somos. Mas quando ouvimos, permitimos que os outros nos digam quem são. Este é o momento supremamente revelador. E se não podemos ouvir outras pessoas, então certamente não podemos ouvir a D-s, cuja alteridade não é relativa, mas absoluta.

Daí a urgência por trás da dupla ênfase de Moisés na parashá desta semana, a linha de abertura do segundo parágrafo do Shemá: “Se você realmente prestar atenção [shamo’a tishme’u] aos meus mandamentos com os quais eu te ordeno hoje, amar o Senhor seu D-s e adorá-lo com todo o seu coração e com toda a sua alma “(Dt 11:13). Uma tradução mais forte poderia ser: “Se você ouvir – e eu quero dizer, realmente ouvir”.

Quase pode-se imaginar os israelitas dizendo a Moisés: “OK. Já basta. Nós ouvimos você ”, e Moisés respondendo: “Não, você não. Você simplesmente não entende o que está acontecendo aqui. O Criador de todo o universo está tendo um interesse pessoal em seu bem-estar e destino: você, a menor de todas as nações e de modo algum a mais justa. Você tem alguma ideia do que isso significa?” Talvez ainda não.

Ouvir outro ser humano, quanto mais D-s, é um ato de nos abrirmos para uma mente radicalmente diferente da nossa. Isso requer coragem. Escutar é tornar-se vulnerável. Minhas certezas mais profundas podem ser abaladas por entrar na mente de alguém que pensa de maneira bem diferente sobre o mundo. Mas é essencial para nossa humanidade. É o antídoto ao narcisismo: a crença de que somos o centro do universo. É também o antídoto para a mentalidade fundamentalista caracterizada pelo falecido professor Bernard Lewis como “Eu estou certo; você está errado; vá para o inferno”(3).

Ouvir é um ato profundamente espiritual. Também pode ser doloroso. É confortável não ter que ouvir, não ser desafiado, não se mover fora da nossa zona de conforto. Hoje em dia, graças aos filtros do Google, aos amigos do Facebook e ao direcionamento preciso de indivíduos tornados possíveis pelas mídias sociais, é fácil viver em uma sala de eco em que só ouvimos as vozes de quem compartilha nossas opiniões. Mas, como eu disse em uma palestra no TED no ano passado, “são as pessoas que não são como nós, que nos fazem crescer”.

Daí a ideia de mudança de vida: Ouvir é o maior presente que podemos dar a outro ser humano. Ser ouvido é saber que alguém me leva a sério. Isso é um ato redentor.

Vinte anos atrás, sentei-me em uma sala de aula em uma universidade em Jerusalém e ouvi uma série de grandes mentes que não se ouviam. Concluí que as divisões no mundo judaico não estavam prestes a se curar, e nunca se curariam até que entendêssemos a profunda verdade espiritual no desafio de Moisés: “Se você ouve – e eu quero dizer, realmente ouve”.

 

NOTAS
(1)Tecnicamente, recitar o Shemá não é um ato de  prece. É um tipo fundamentalmente de ação.-E um ato deTalmud Torah(ver Menahot 99b). Na prece nós falamos com D-us. No estudo nós ouvimos D-us.
(2) Veja George Lakoff  e Mark Johnson, Metaphors We Live By, University of Chicago Press.
(3)Bernard Lewis, “I’m right; you’re wrong; go to hell,” The Atlantic, May 20031980.

 

Texto original: “Listen, Really Listen!” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay

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