HAAZINU

Posted on outubro 13, 2016

HAAZINU

A Espiritualidade da Música

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Com Haazinu subimos a um dos picos da espiritualidade judaica. Durante um mês Moisés havia ensinado ao povo. Ele lhes havia contado a sua história, seu destino e as leis que faria deles uma sociedade única de pessoas vinculadas pelo pacto um com o outro e com D-s. Ele renovou a aliança e em seguida entregou a liderança ao seu sucessor e discípulo Josué. Seu ato final seria abençoar o povo, tribo por tribo. Mas antes disso, havia mais uma coisa que ele tinha que fazer. Ele teve que resumir sua mensagem profética de maneira que as pessoas sempre lembrassem e fossem inspiradas por ela. Ele sabia que a melhor maneira de fazer isso seria através da música. Então a última coisa que Moisés fez, antes de dar ao povo sua bênção no leito de morte, foi ensinar-lhes uma canção.

Há algo profundamente espiritual sobre a música. Quando a linguagem aspira ao transcendente e a alma anseia por se libertar da atração gravitacional da Terra, ela se articula na canção. A história judaica não é tão lida quanto é cantada. Os rabinos enumeraram dez músicas em momentos-chave na vida da nação. Havia a música dos israelitas no Egito (veja Is. 30:29), a canção do Mar Vermelho (Ex. 15), a canção junto ao poço (Num. 21), e Haazinu, a canção de Moisés ao final de sua vida. Josué cantou uma canção (Josué 10:12-13). Assim fez Débora (J. 5), Haná (1 Sam. 2) e David (2 Sam. 22). Havia a canção de Salomão, Shir ha-Shirim, sobre a qual o Rabi Akiva disse: “Todas as músicas são sagradas, mas o Cântico dos Cânticos é o Sagrado dos Sagrados” (1). A décima canção ainda não foi cantada. É a canção do Messias (2).

Muitos textos bíblicos falam do poder da música para restaurar a alma. Quando Saul estava deprimido, David tocava para ele e seu espírito era restaurado (1 Sam. 16). O próprio David era conhecido como o “doce cantor de Israel” (2 Sam. 23:1). Elishá pedia a um harpista para tocar para que o espírito profético pudesse repousar sobre ele (2 Reis 3:15). Os levitas cantavam no Templo. Todos os dias, no judaísmo, iniciamos nossas orações da manhã com Pesukê de-Zimrá, os “versos da canção” com seu magnífico crescendo, o Salmo 150, no qual os instrumentos e a voz humana se combinam para cantar louvores a D-s.

Os Místicos vão mais longe e falam da canção do universo, o que Pitágoras chamou de “a música das esferas”. Isso é o que o Salmo 19 quer dizer quando diz: “Os céus declaram a glória de D-s; o firmamento anuncia a obra das suas mãos… Não há fala, não há palavras, onde sua voz não seja ouvida. Sua música (3) é carregada por toda a terra; as suas palavras, para o fim do mundo”. Sob o silêncio, audível apenas para o ouvido interno, a criação canta ao seu Criador.

Então, quando oramos, nós não lemos: nós cantamos. Quando nos envolvemos com os textos sagrados, nós não recitamos: cantamos. Cada texto e cada momento tem, no judaísmo, a sua própria melodia específica. Existem diferentes melodias para shacharit, minchá e arvit, as orações da manhã, da tarde e da noite. Existem diferentes melodias e sensações para as orações dos dias da semana, para o Shabat, para as três festas de peregrinação, Pessach, Shavuot e Sucot (que têm musicalmente muito em comum, mas também sintonias distintas para cada uma delas), e para os Yamim Noraim, Rosh Hashaná e Yom Kipur.

Existem diferentes melodias para diferentes textos. Há uma espécie de entonação para a Torá, outra para o haftará dos livros proféticos, e ainda outra para Ketuvim, os escritos, especialmente as cinco Meguilot. Há um canto especial para estudar os textos da Mishná e da Gemará. Assim, através da música por si só, podemos dizer que tipo de dia é e que tipo de texto está sendo usado. Textos e épocas judaicas não são codificados por cores, mas por código de música. O mapa de palavras santas é escrito em melodias e canções.

A música tem um poder extraordinário para evocar emoção. A oração Kal Nidrê, através da qual Yom Kipur se inicia, não é realmente uma oração de jeito algum. É uma fórmula jurídica seca para a anulação dos votos. Há pouca dúvida que é a sua antiga melodia, que é difícil de esquecer, que lhe deu o seu domínio sobre o imaginário judaico. É difícil ouvir essas notas e não sentir que você está na presença de D-s, no Dia do Julgamento, de pé, na companhia de judeus de todos os lugares e de todas as gerações quando se voltam para o céu por perdão. É o santo dos santos da alma judaica (4).

Também não se pode sentar em Tishá Be Av lendo Echá, o livro das Lamentações, com a sua própria e única entonação, e não sentir as lágrimas de judeus através dos séculos que sofreram por sua fé e choraram ao lembrar o que tinham perdido, a dor tão fresca quanto foi no dia em que o Templo foi destruído. Palavras sem música são como um corpo sem alma.

Beethoven escreveu sobre o manuscrito do terceiro movimento de sua peça, Quarteto Menor, as palavras Neue Kraft fühlend, “Sentindo uma nova força”. Isso é o que a música expressa e evoca. É a linguagem da emoção reforçada pelo tênue despertar do pensamento. Isso é o que o rei David queria dizer quando cantava a D-s as palavras: “Você transformou minha dor em dança; você removeu minha roupa maltrapilha e me vestiu de alegria, para que meu coração possa cantar para você e não se cale”. Você sente a força do espírito humano que nenhum terror pode destruir.

Em seu livro, Musicophilia, o falecido Oliver Sacks contou a história pungente de Clive Wearing, um eminente musicólogo que foi atingido por uma infecção cerebral devastadora. O resultado foi amnésia aguda. Ele era incapaz de se lembrar de qualquer coisa por mais de alguns segundos. Como sua esposa Deborah disse “Era como se cada momento do dia fosse o primeiro momento do dia”.

Incapaz de juntar experiências, ele capturava um presente sem fim que não tinha conexão com qualquer coisa que tivesse acontecido anteriormente. Um dia sua esposa o encontrou segurando um chocolate em uma mão e repetidamente cobrindo e descobrindo-o com a outra mão, dizendo a cada vez, “veja, é novo”. “É o mesmo chocolate”, disse ela. “Não”, ele respondeu. “Veja. Está diferente”. Ele não tinha passado de jeito algum.

Duas coisas romperam seu isolamento. Um deles foi o seu amor por sua esposa. A outra foi a música. Ele ainda podia cantar, tocar órgão e conduzir um coro com toda a sua habilidade e entusiasmo. O que ocorria com a música, Sacks perguntou, que lhe permitiu, durante a reprodução ou a realização, superar sua amnésia? Ele sugere que, quando se “lembra” uma melodia, lembramos uma nota de cada vez, mas cada nota se refere ao todo. Ele cita o filósofo da música, Victor Zuckerkandl, que escreveu, “Ouvir uma melodia é ouvir, ter ouvido e estar prestes a ouvir, tudo de uma só vez. Cada melodia nos declara que o passado pode estar lá sem ser lembrado, o futuro sem ser conhecido de antemão”. A música é uma forma de perceber a continuidade que às vezes pode romper as desconexões mais avassaladoras em nossa experiência do tempo.

A fé é mais parecida com a música do que com a ciência (5). A ciência analisa, a musica integra. E como a música se conecta nota a nota, assim também a fé conecta episódio a episódio, vida à vida, época à época, em uma melodia intemporal que explode no tempo. D-s é o compositor e libretista. Cada um de nós é chamado a ser uma voz no coro, cantores da canção de D-s. A fé é a capacidade de ouvir a música sob o ruído.

Assim, a música é um sinal de transcendência. O filósofo e músico Roger Scruton escreve que é “um encontro com o sujeito puro, libertado do mundo dos objetos e movendo-se em obediência somente às leis da liberdade” (6).  Ele cita Rilke: “As palavras ainda vão suavemente para fora em direção ao indizível / E a música, sempre nova, de pedras palpitantes / constrói no espaço inútil seu lar piedoso” (7). A história do espírito judaico está escrito em suas canções.

Certa vez assisti um professor explicando às crianças jovens (ainda não eram adolescentes) a diferença entre a posse física e posse espiritual. Ele as fez construírem uma maquete de Jerusalém em papel. Em seguida (isso foi na época dos gravadores com fita cassete), ele colocou uma fita com uma canção sobre Jerusalém que ele ensinou para a classe. No final da sessão ele fez algo muito dramático. Rasgou a maquete e desenrolou a fita. Ele perguntou às crianças: “Ainda temos a maquete?” Elas responderam: Não. “Ainda temos a música?” Elas responderam: Sim.

Perdemos posses físicas, mas não as espirituais. Perdemos o Moises físico. Mas ainda temos a canção.

 

NOTAS:

  • Mishná, Yadayim 3:5.
  • Tanhumá, Beshalach, 10; Midrash Zutá, Shir ha-Shirim, 1:1.
  • Kavam, literalmente “sua linha”, possivelmente significando a reverberação de cordas de um instrumento musical.
  • Beethoven chegou perto nas notas de abertura do sexto movimento de Quarteto Menor Preciso C op. 131, seu trabalho mais sublime e espiritual.
  • Eu disse certa vez ao bem conhecido ateu Richard Dawkins, ao longo de uma conversa pelo rádio, “Richard, religião é musica, e você é um surdo musical”. Ele respondeu, “Sim, sou surdo musical, mas não há música”.
  • Roger Scruton, An Intelligent Person’s Guide to Philosophy, Duckworth, 1996, 151.
  • Rilke, Sonetos para Orfeu, 11

 

Texto original: “THE SPIRITUALITY OF SONG” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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