HAAZINU

Posted on setembro 17, 2017

HAAZINU

Moisés, o Homem

Naquele mesmo dia, o Senhor falou para Moisés: “Suba a este monte dos Abarim, Monte Nebô, que está na terra de Moab, em frente a Jericó, e veja a terra de Canaã, que eu estou dando ao povo de Israel para posse. E morra na montanha que você vai subir e junte-se o seu povo… Pois você verá a terra apenas a distância; você não entrará na terra que eu estou dando ao povo de Israel”.

Com essas palavras desenha-se o encerramento da vida do maior herói que o povo judeu já conheceu:  Moisés, o líder, o libertador, o legislador, o homem que trouxe um grupo de escravos para a liberdade, transformou um grupo turbulento de indivíduos em uma nação, e assim transformou-os em um povo da eternidade.

Foi Moisés que fez a mediação com D-s, fez sinais e maravilhas, deu ao povo suas leis, lutou com eles quando pecaram, lutou por eles ao rezar pelo perdão Divino, deu sua vida a eles e teve seu coração quebrado por eles quando eles repetidamente não conseguiram atender às suas altas expectativas.

Cada era teve sua própria imagem de Moisés. Para os sábios mais inclinados para o lado místico, Moisés foi o homem que ascendeu ao céu quando da entrega da Torá, onde ele teve que lutar com os anjos que se opuseram à ideia de que esse presente precioso fosse dado a meros mortais. D-s disse a Moisés para respondê-los, o que ele fez de forma decisiva. “Acaso os anjos trabalham de forma que precisem de um dia de descanso? Eles têm pais que, por mandamento divino, precisam honrar? Eles têm uma inclinação para o mal de forma que precisem ser informados: “Não cometam adultério?” (Shabat 88a). Moisés, o homem, discute com os anjos.

Outros sábios ainda foram mais radicais. Para eles, Moisés foi Rabenu, “nosso rabino” – não um rei, um líder político ou um militar, mas um erudito e mestre da lei, um papel que eles investiram como tendo uma autoridade surpreendente. Eles foram longe e chegaram a dizer que quando Moisés orou para D-s para perdoar o povo pelo Bezerro de Ouro, D-s respondeu: “Eu não posso, porque Eu já prometi, ‘Aquele que sacrifica a qualquer deus deve ser destruído’” (Êxodo 22:19), e Eu não posso revogar Minha promessa”. Moisés respondeu: “Mestre do universo, você não me ensinou as leis da anulação de promessas? Não se pode anular a sua própria promessa, mas um sábio pode fazê-lo” Moisés então anulou a promessa de D-s (Shemot Rabá 43:4).

Para Philo, filósofo judeu do primeiro século na Alexandria, Moisés era um filósofo-rei do tipo retratado na República de Platão. Ele governa a nação, organiza suas leis, institui seus ritos e conduz-se com dignidade e honra; Ele é sábio, paciente e controlado. Este é, por assim dizer, um Moisés grego, semelhante à famosa escultura de Michelangelo.

Para Maimônides, Moisés era radicalmente diferente de todos os outros profetas de quatro maneiras. Primeiro, outros recebiam suas profecias em sonhos ou visões, enquanto Moisés recebia desperto. Segundo, para os outros D-s falou em parábolas, de forma indireta, mas para Moisés Ele falou direta e lucidamente. Terceiro, os outros profetas ficavam aterrorizados quando D-s aparecia para eles, mas de Moisés está dito: “Assim, o Senhor falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo” (Êxodo 33:11). Quarto, outros profetas precisavam passar por longos preparativos para ouvir a palavra Divina; Moisés falava com D-s sempre que quisesse ou precisasse. Ele estava “sempre preparado, como um dos anjos ministrais” (Leis dos Fundamentos da Torá 7:6).

Ainda assim, o que há de tão comovente sobre a representação de Moisés na Torá é que ele aparece diante de nós como sendo quintessencialmente humano. Nenhuma religião insistiu mais profunda e sistemicamente na absoluta diversidade entre D-s e o homem, o céu e a terra, o infinito e o finito. Outras culturas turvaram o limite, fazendo com que alguns seres humanos parecessem divinos, perfeitos, infalíveis. Existe tal tendência – marginal certamente, mas nunca inteiramente ausente – dentro da própria vida judaica: ver sábios como santos, grandes estudiosos como anjos, desconsiderando suas dúvidas e deficiências, transformando-os em emblemas sobre-humanos de perfeição. O Tanach, no entanto, é maior do que isso. Ele nos diz que D-s, que não é nada menos do que D-s, nunca nos pede para sermos mais do que simplesmente humanos.

Moisés é um ser humano. Nós o vemos desesperar-se e querer morrer. Nós o vemos ficar nervoso. Nós o vemos à beira de perder sua fé no povo que ele foi convocado para liderar. Nós o vemos implorar para ter permissão para atravessar o Jordão e entrar na terra para onde ele passou sua vida como líder viajando. Moisés é o herói daqueles que lutam com o mundo como ele é e com as pessoas como elas são, sabendo que “não é para você completar a tarefa, mas você também não está livre para se afastar dela”.

A Torá insiste que “até hoje ninguém sabe onde está a sua sepultura” (Deuteronômio 34:6), para evitar que seu túmulo fosse transformado em um lugar de peregrinação ou culto. É muito fácil transformar seres humanos, depois de sua morte, em santos e semideuses. É precisamente isso que a Torá se opõe. “Todo ser humano” escreve Maimônides em suas Leis de Arrependimento (5:2), “pode ​​ser tão justo quanto Moisés ou tão perverso quanto Jeroboão”.

Moisés não existe no judaísmo como um objeto de adoração, mas como um modelo a ser aspirado por cada um de nós. Ele é o eterno símbolo de um ser humano que obteve grandeza pelo que ele se esforçou, e não pelo que ele realmente conquistou. Os títulos conferidos a ele na Torá, “o homem Moisés”, “servo de D-s”, “um homem de D-s”, são ainda mais impressionantes pela sua modéstia. Moisés continua a inspirar.

Em 3 de abril de 1968, Martin Luther King proferiu um sermão em uma igreja em Memphis, no Tennessee. No final de seu discurso, ele se voltou para o último dia da vida de Moisés, quando o homem que liderou seu povo à liberdade foi levado por D-s para o topo de uma montanha, do qual ele podia ver à distância a terra para a qual ele não estava destinado a entrar. Isso, disse King, foi como ele se sentiu naquela noite:

Eu só quero fazer a vontade de D-s. E ele me permitiu subir a montanha. E eu olhei de cima. E vi a terra prometida. Eu não posso ir para lá com vocês. Mas eu quero que vocês saibam nesta noite que nós, como povo, chegaremos à terra prometida.

Aquela noite foi a última de sua vida. No dia seguinte ele foi assassinado. No final, o ainda jovem pregador cristão – ele ainda não tinha quarenta anos – que liderou o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos, identificou-se não com uma figura cristã, mas com Moisés.

No final, o poder da história de Moisés é precisamente que afirma a nossa mortalidade. Há muitas explicações sobre por que Moisés não foi autorizado a entrar na Terra Prometida. Eu argumentei que foi simplesmente porque “cada geração tem seus líderes” (Avodá Zará 5a) e a pessoa que tem a capacidade de retirar um povo da escravidão não é necessariamente aquela que possui as habilidades necessárias para levar a próxima geração a seus próprios e diferentes desafios. Não existe uma forma de liderança ideal para todos os tempos e situações.

Franz Kafka deu voz a uma verdade diferente e não menos convincente:

Ele estava no caminho de Canaã durante toda sua vida; é incrível que ele somente poderia ver a terra quando à beira da morte. Essa visão moribunda só pode servir para ilustrar como a vida humana é um momento incompleto; incompleto porque uma vida como essa poderia durar para sempre e ainda não ser nada além de um momento. Moisés não entra em Canaã, não porque sua vida foi curta demais, mas porque é uma vida humana [1].

O que então a história de Moisés nos diz? Que é certo lutar pela justiça, mesmo contra regimes que parecem indestrutíveis. Que D-s está conosco quando assumimos nossa posição contra a opressão. Que devemos ter fé naqueles que lideramos, e quando deixamos de ter fé neles, não podemos mais liderá-los. Essa mudança, embora lenta, é real, e as pessoas são transformadas por altos ideais, embora isso possa levar séculos.

Em uma das suas afirmações mais poderosas sobre Moisés, a Torá afirma que ele tinha “cento e vinte anos de idade quando morreu, e seus olhos não perderam o brilho e sua força era inabalável” (34:8). Eu costumava pensar que estas eram apenas duas frases sequenciais, até que percebi que a primeira era a explicação da segunda. Por que a força de Moisés estava inabalada? Porque seus olhos mantinham o brilho – porque ele nunca perdeu os ideais de sua juventude. Embora ele às vezes tivesse perdido a fé em si mesmo e na sua capacidade de liderar, ele nunca perdeu a fé na causa: em D-s, no serviço, na liberdade, no direito, no bem e no sagrado. Suas palavras no final de sua vida eram tão apaixonadas como tinham sido no início.

Esse é Moisés, o homem que se recusou a “entrar gradualmente naquela noite escura”, o símbolo eterno de como um ser humano, sem nunca deixar de ser humano, pode se tornar um gigante da vida moral. Essa é a grandeza e a humildade de aspirar ser “um ser servo de D-s”.

 

NOTA:
[1] Franz Kafka, Diaries 1914 – 1923, ed. Max Brod, trans. Martin Greenberg e Hannah Arendt, New York, Schocken, 1965, 195-96.

 

Texto original: “MOSES THE MAN” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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