HAAZINU

Posted on setembro 25, 2015

HAAZINU

A ARCA DO UNIVERSO MORAL

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Em linguagem majestosa, Moisés começa a cantar, investindo seu testamento final para os israelitas com todo o poder e paixão de seu comando. Ele começa dramaticamente, mas com cuidado, chamando o céu e a terra para testemunhar o que ele está prestes a dizer, soando ironicamente muito parecido com “A qualidade da misericórdia não é tensa”, o discurso de Portia em O Mercador de Veneza.
Ouça, ó céus, e Eu falarei; ouve, a terra, as palavras da minha boca.
Deixe minhas palavras descerem como o orvalho, como chuva abundante sobre a tenra grama (Deut. 32:1-2).
Mas este é um mero prelúdio para a mensagem central que Moisés quer transmitir. É a conhecida ideia de tziduk ha-din, exigindo a justiça de D-s. A forma como Moisés coloca é a seguinte:

Ele é a Rocha; suas obras são perfeitas,
E todos os seus caminhos são justos.
Um D-s fiel, que não erra,
Justo e correto Ele é (Deut. 32:4).

Essa é uma doutrina fundamental para o Judaísmo e sua compreensão do mal e do sofrimento no mundo – uma doutrina difícil, mas necessária. D-s é justo. Por que, então, coisas ruins acontecem?

Ele é corrupto? Não – o defeito está em seus filhos,
uma geração corrompida e perversa (Deut. 32:5).

D-s retribui o bem com o bem, o mal com o mal. Quando coisas ruins acontecem a nós é porque temos sido culpados de fazer coisas ruins a nós mesmos. A culpa não está em nossas estrelas, mas em nós mesmos.
Movendo-se para o modo profético, Moisés prevê o que ele já havia previsto, mesmo antes de terem atravessado o Jordão e entrado na terra. Ao longo do livro de Deuteronômio ele vem alertando sobre o perigo que na sua terra, uma vez que as dificuldades do deserto e as batalhas foram esquecidas, o povo vai se sentir confortável e complacente. Eles vão atribuir suas realizações a si mesmos e eles vão desviar de sua fé. Quando isso acontece, eles vão trazer desgraça sobre si:

Yeshurun engordou e golpeou,
Tornou-se gordo, grosseiro, bruto,
Eles abandonaram o D-s que os criou,
E desprezaram a Rocha, seu Salvador…
Abandonaram a Rocha, que foi pai para vocês,
E esqueceu o D-s que vos deu à luz. (Deut. 32:15-18).

Este primeiro uso da palavra Yeshurun na Torá – a partir da raiz Yashar, ereto, de pé – é deliberadamente irônico. Israel soube, em certa época, o que era ser correto, manter-se de pé, mas será desviado por uma combinação de riqueza, segurança e assimilação aos modos de seus vizinhos. Ele vai trair os termos da aliança, e quando isso acontecer ele vai achar que D-s não está mais com ele. Ele vai descobrir que a história é um lobo voraz. Separado da fonte de sua força, ele vai ser dominado por seus inimigos. Tudo o que a nação apreciou certa vez será perdido. É uma mensagem forte e aterradora.
No entanto, Moisés está aqui trazendo ao fim da Torá um tema que tem estado ali desde o início. D-s, criador do universo, fez um mundo que é fundamentalmente bom: a palavra que ecoa sete vezes no primeiro capítulo do Gênesis. São seres humanos, a quem foi concedido o livre arbítrio conforme a imagem e semelhança de D-s, que introduzem o mal no mundo e, em seguida, sofrem as suas consequências. Daí a insistência de Moisés que, quando os problemas e a tragédia aparecem, devemos procurar a causa dentro de nós mesmos, e não culpar a D-s. D-s é justo e correto. O defeito está em nós, Seus filhos.
Essa é talvez a ideia mais difícil no judaísmo. É aberta às mais simples das acusações, as que têm soado em quase todas as gerações. Se D-s é justo, por que coisas ruins acontecem a pessoas boas? Essa não é a pergunta feita pelos céticos, que duvidam, mas pelos próprios heróis da fé. Nós a ouvimos na súplica de Abraão, “O Juiz de toda a terra não fará justiça?” Nós a ouvimos no desafio de Moisés, “Por que você fez mal a este povo?” E a ressoa novamente em Jeremias “Senhor, tu estás sempre certo quando eu disputo com você. No entanto, devo defender minha causa diante de ti: Por que o ímpio prospera tanto? Por que as pessoas más estão tão felizes?” (Jer. 12:1).
É uma discussão que nunca cessou. Continuou através da literatura rabínica. Foi ouvida novamente no Kinot, os lamentos, motivada pela perseguição dos judeus na Idade Média. Ressoa na literatura produzida no despertar da expulsão espanhola, e ecoa ainda quando lembramos o Holocausto.
O Talmud diz que, de todas as perguntas que Moisés fez a D-s, essa foi a única questão a que D-s não deu uma resposta (1). A mais simples e profunda interpretação é dada no Salmo 92, “A canção do dia de shabat”. Embora “os ímpios brotem como a erva”, eles acabarão por ser destruídos. Os justos, pelo contrário, “florescerão como uma palmeira e irão crescer de altura como o cedro no Líbano”. O mal sai vitorioso a curto prazo, mas nunca a longo prazo. Os ímpios são como erva, os justos são como árvore. A grama cresce numa noite, mas uma árvore leva anos para alcançar sua altura completa. A longo prazo, as tiranias são derrotadas. Impérios declinam e caem. Bondade e retidão vencem a batalha final. Como disse Martin Luther King no espírito do Salmo: “O arco do universo moral é longo, mas ele se curva em direção à justiça”.
Este compromisso de ver a justiça na história sob a soberania de D-s é uma difícil crença. No entanto, considere as alternativas. Elas são três. A primeira é dizer que não há nenhum significado na história. Homo hominis lupus est, “O homem é lobo do homem”. Como Tucídides disse em nome dos atenienses: “Os fortes fazem o que querem, os fracos sofrem o que devem”. A história é uma luta darwiniana pela sobrevivência, e a justiça não é mais do que o nome dado à vontade da parte mais forte.
A segunda, sobre a qual eu escrevo no meu novo livro Não em nome de D-s, é o dualismo, a ideia de que o mal não vem de D-s, mas de uma força independente: satanás, o diabo, o anticristo, Lúcifer, o Príncipe das Trevas, e os outros variados nomes dado à força que não é D-s, mas opõe-se a Ele e àqueles que o adoram. Essa ideia, que veio à tona em formas sectárias em cada um dos monoteísmos abraâmicos, assim como em tempos modernos e totalitarismos seculares, é um dos mais perigosos em toda a história. Ele divide a humanidade no bem inabalável e no mal irremediável, dando origem a uma longa história de derramamento de sangue e barbárie do tipo que vemos ser promulgada hoje em muitas partes do mundo em nome da guerra santa contra o maior e o menor satanás. Isso é dualismo, não monoteísmo, e os sábios, que o chamaram shtei reshuyot, “dois poderes ou domínios” (2), tinham razão para rejeitá-lo totalmente.
A terceira, debatida extensamente na literatura rabínica, é dizer que a justiça em última análise, existe no mundo por vir, na vida após a morte. No entanto, embora esse seja um elemento essencial do judaísmo, é impressionante como o judaísmo pouco tenha recorrido a ele, reconhecendo que o impulso central do Tanach está neste mundo e na vida antes da morte. Pois é aqui que devemos trabalhar pela justiça, correção, compaixão, decência, perfeição e redução da pobreza, tanto quanto esteja ao nosso alcance, ao alcance da sociedade e de nossas vidas individuais. O Tanach quase nunca usa essa opção. D-s não diz a Jeremias ou a Jó que a resposta à sua pergunta existe no céu e que eles irão encontrá-la assim que terminar a sua estadia na Terra. A paixão pela justiça, tão característica do judaísmo iria se dissipar inteiramente caso fosse essa a única resposta.
Embora a fé judaica seja difícil, ela teve, através da história, o efeito que nos leva a dizer: se coisas ruins aconteceram, não vamos culpar qualquer pessoa além de nós mesmos, e vamos trabalhar para torná-las melhor. Foi isso que levou os judeus, uma vez após a outra, a sair da tragédia, abalados, com cicatrizes, mancando como Jacob depois de seu encontro com o anjo, mas resolvendo começar de novo, para nos dedicar novamente à nossa missão e fé, a atribuir nossas realizações a D-s e as nossas derrotas a nós mesmos.
Dessa humildade nasce uma força muito importante.
(1) Berachot 7a.
(2) Berachot 33b.

Texto original: “THE ARC OF THE MORAL UNIVERSE” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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