HUKAT

Posted on junho 29, 2017

HUKAT

O Erro de Descartes

Em seu recente best-seller, The Social Animal, o colunista do New York Times David Brooks escreve:

Estamos vivendo no meio de uma revolução na consciência. Ao longo dos últimos anos, geneticistas, neurocientistas, psicólogos, sociólogos, economistas, antropólogos e outros fizeram grandes progressos na compreensão dos blocos de construção do florescimento humano. E uma descoberta fundamental de seus trabalhos é que não somos primariamente produtos do nosso pensamento consciente. Nós somos primariamente produtos do pensar que acontece abaixo do nível de consciência (1).

Muita coisa acontece na mente para que possamos estar plenamente conscientes dela. Timothy Wilson, da Universidade da Virgínia, estima que a mente humana pode absorver 11 milhões de pedaços de informações em qualquer momento. Podemos estar conscientes de apenas uma pequena fração disso. A maior parte do que está acontecendo mentalmente está abaixo do limiar da consciência.

Um dos resultados da nova neurociência é que estamos entendendo o papel extremamente importante desempenhado pela emoção na tomada de decisões. O iluminismo francês enfatizou o papel da razão, e considerou a emoção como uma distração e distorção. Agora sabemos cientificamente como isso está errado.

Antonio Damasio, em seu Erro de Descartes, conta a história de um homem que, como resultado de um tumor, sofreu danos nos lobos frontais do cérebro. Ele tinha um QI alto, era bem informado e tinha uma excelente memória. Mas após a cirurgia para remover o tumor, sua vida desmoronou. Ele não conseguia organizar seu tempo. Ele fez investimentos ruins que lhe custaram suas economias. Ele se divorciou de sua esposa, casou-se pela segunda vez e rapidamente se divorciou mais uma vez. Ele ainda podia raciocinar perfeitamente, mas tinha perdido a capacidade de sentir emoção. Como resultado, ele não conseguia fazer escolhas sensatas.

Um outro homem com uma lesão semelhante não conseguia tomar qualquer tipo de decisão. Ao final de uma sessão, Damasio sugeriu duas datas possíveis para a próxima reunião. O homem então tirou um caderno, começou a listar os prós e os contras de cada uma, falou sobre possíveis condições climáticas, potenciais conflitos com outros compromissos e assim por diante, durante meia hora, até que Damasio finalmente o interrompeu, e tomou a decisão por ele. O homem imediatamente disse: “Tudo bem”, e foi embora.

É menos razão do que emoção que está por trás de nossas escolhas, e é preciso inteligência emocional para fazer boas escolhas. O problema é que grande parte de nossa vida emocional está sob a superfície da mente consciente.

Isso, como podemos ver agora, é a lógica dos hukim, os “estatutos” do judaísmo, as leis que parecem não ter sentido em termos de racionalidade. Essas são leis como a proibição de misturar sementes diferentes (kelaim); de vestir roupa com mistura de lã e linho (shaatnez); e de comer leite e carne juntos. A lei da vaca vermelha com a qual nossa parashá começa, é descrita como o hok por excelência: “Este é o estatuto da Torá” (Números 19:2).

Houve muitas interpretações dos hukim ao longo dos tempos. Mas à luz da recente neurociência, podemos sugerir que são leis destinadas a ignorar o córtex pré-frontal, o cérebro racional, e criar padrões instintivos de comportamento para contrapor-se a alguns dos motivadores emocionais obscuros que trabalham na mente humana.

Nós sabemos, por exemplo – Jared Diamond relata isso em seu livro Collapse – que, não importa onde os humanos se estabeleceram ao longo da história, eles deixaram para trás uma trilha de desastre ambiental, eliminando espécies inteiras de animais e pássaros, destruindo florestas, danificando o solo por exploração excessiva, e assim por diante.

As proibições contra o plantio de sementes misturadas, mistura de carne e leite ou lã e linho, e assim por diante, criam um respeito instintivo pela integridade da natureza. Elas estabelecem limites. Inculcam a sensação de que não podemos fazer ao nosso ambiente animal e vegetal tudo o que desejamos. Algumas coisas são proibidas – como o fruto da árvore no meio do Jardim do Éden. Toda a história do Éden, que acontece na aurora da história humana, é uma parábola cuja mensagem podemos entender hoje melhor do que qualquer geração anterior: sem um senso de limites, destruiremos nossa ecologia e descobriremos que perdemos o paraíso.

Quanto ao ritual da vaca vermelha, ele é dirigido ao instinto pré-racional mais destrutivo de todos: o que Sigmund Freud chamou de Thanatos, o instinto de morte. Ele o descreveu como algo “mais primitivo, mais elementar, mais instintivo do que o princípio do prazer que ele supera” (2). Em seu ensaio Civilização e seus Descontentes, ele escreveu que “uma parte do instinto (da morte) é desviada para o mundo externo e vem à luz como um instinto de agressividade”, que ele viu como “o maior impedimento para a civilização”.

O ritual da vaca vermelha é uma declaração poderosa de que o Santo é encontrado na vida, não na morte. Qualquer um que tivesse tido contato com um cadáver precisava de purificação antes de entrar no santuário ou Templo. Os sacerdotes tinham que obedecer regras mais rigorosas, e o Sumo Sacerdote ainda mais.

Isso tornou o judaísmo bíblico altamente notável. Não há culto de adoração de antepassados ​​mortos, e não procura fazer contato com seus espíritos. Provavelmente, foi para evitar que o túmulo de Moisés se tornasse um lugar sagrado que a Torá diz: “até hoje ninguém sabe onde está a sua sepultura” (Deuteronômio 34:6). D-s e o sagrado devem ser encontrados na vida. A morte contamina.

O ponto é que – e isso é o que a neurociência recente deixou eminentemente claro – isso não pode ser alcançado apenas pela razão. Freud estava certo em sugerir que o instinto de morte é poderoso, irracional, e em grande parte inconsciente, ainda que sob certas condições pode ser absolutamente devastador no que leva as pessoas a fazer.

O termo hebraico hok vem em alusão ao verbo “gravar”. Assim como um estatuto é esculpido em pedra, um hábito comportamental é esculpido em profundidade em nossa mente inconsciente e altera nossas respostas instintivas. O resultado é uma personalidade treinada para ver a morte e a santidade como dois estados totalmente opostos – assim como a carne (morte) e o leite (vida) são.

Os Hukim são a maneira do judaísmo nos treinar na inteligência emocional, acima de tudo um condicionamento na associação da santidade com a vida e da impureza com a morte. É fascinante ver como isso foi comprovado pela neurociência moderna. A racionalidade, de vital importância por direito próprio, é apenas metade da história de por que somos como somos. Precisaremos moldar e controlar a outra metade se quisermos ter sucesso em conquistar o instinto de agressão, violência e morte que se espreitam não muito longe da superfície da mente consciente.
NOTAS:
(1) David Brooks, The Social Animal, Random House, 2011, x.
(2) Sigmund Freud, “Além do Princípio do Prazer” em Na metapsicologia, Harmondsworth, Penguin, 1984, p 294.
Texto original: “DESCARTES’ ERROR” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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