HUKAT

Posted on julho 14, 2016

HUKAT

Curando o Trauma da Perda

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Levei dois anos para me recuperar da morte de meu pai, de abençoada memória.  Até este dia, quase vinte anos depois, não tenho a certeza do porquê. Ele não morreu de repente ou jovem. Ele estava em seus oitenta anos. Em seus últimos anos ele teve que passar por cinco operações, cada uma das quais minou mais suas forças. Além disso, como rabino, eu tive que oficiar funerais e confortar os enlutados. Eu sabia era essa tristeza.

Os rabinos foram críticos daquele que se lamenta muito durante muito tempo (1). Eles disseram que o próprio D-s diz a respeito de uma pessoa assim, “Você é mais compassivo do que Eu?” Maimônides legisla: “Uma pessoa não deve ficar excessivamente desolado por causa da morte de uma pessoa, como está dito, ‘Não chore nem lamente para o morto nem lastimeis’ (Jer. 22:10). Isso significa, ‘Não chore excessivamente’. Pois a morte é o caminho do mundo, e aquele lamenta excessivamente no caminho do mundo é um tolo” (2). Com raras exceções, o limite externo do pesar na lei Judaica é um ano, não mais.

Mesmo sabendo dessas coisas, não ajuda. Nós não somos sempre donos de nossas emoções. Nem confortar outros te prepara para a sua própria experiência de perda. A lei Judaica regula a conduta exterior, mas não o sentimento interno, e quando ela trata de sentimentos, como os mandamentos para amar e não odiar, a halachá, em geral, traduz isso em termos comportamentais, assumindo que, na linguagem do Sefer haHinuch, que “o coração segue a ação” (3).

Eu senti um buraco negro existencial, um vazio no âmago do ser. Isso enfraqueceu minhas sensações, deixando-me incapaz de dormir ou me concentrar, como se a vida estivesse acontecendo a uma grande distância e como se eu fosse um espectador assistindo a um filme fora de foco e com o som desligado. Essa falta de disposição acabou passando, mas enquanto durou eu fiz alguns dos piores erros da minha vida.

Menciono essas coisas porque elas são o fio condutor da Parashá Hukat. O episódio mais marcante é o momento em que as pessoas se queixam da falta de água. Moisés faz algo errado, e mesmo que D-s envia água de uma rocha, Ele também sentencia Moisés para uma punição quase insuportável: “Porque você não teve fé suficiente em Mim para Me santificar diante dos israelitas, você não trará este povo para a terra que eu dei a vocês”.

Os comentaristas debatem o que exatamente ele fez de errado. Foi porque ele perdeu a paciência com o povo (“Ouçam agora rebeldes”)? Foi por ter batido na rocha em vez de falar com ela? Foi porque ele fez parecer como se não fosse D-s, mas ele e Aarão, que foram os responsáveis pela água (“Podemos trazer água desta rocha para vocês?”)?

O que é mais intrigante ainda é o motivo dele ter perdido o controle naquele momento. Ele havia enfrentado o mesmo problema antes, mas ele nunca tinha perdido seu controle. Em Êxodo 15, os israelitas queixaram-se em Mará que a água não podia ser consumida porque era amarga. Em Êxodo 17, eles se queixaram em Massá-e-Merivá que não havia água. D-s então disse a Moisés para levar seu grupo e bater na rocha, e água jorrou dela. Assim, quando em nossa parashá D-s diz a Moisés: “Leve o grupo… e fale com a rocha”, foi certamente um erro perdoável assumir que D-s queria dizer-lhe também para bater nela. Isso foi o que Ele havia dito da última vez. Moisés estava seguindo o precedente. E se D-s não quis dizer que ele devia bater na rocha, por que Ele lhe ordenou levar o seu pessoal?

O que é ainda mais difícil de entender é a ordem dos acontecimentos. D-s já havia dito a Moisés exatamente o que fazer. Reunir o povo. Fale com a rocha, e água fluirá. Isso foi antes de Moisés fazer o seu discurso destemperado, iniciando, “Ouçam agora rebeldes”. É compreensível se você perde a compostura quando você se depara com um problema que parece insolúvel. Isso tinha acontecido a Moisés antes quando o povo se queixou da falta de carne. Mas não faz sentido algum isso acontecer quando D-s já lhe disse, “Fale com a rocha… Ela vai derramar sua água, e você vai trazer água da rocha para eles, e assim você vai dar à comunidade e ao seu gado água para beber”. Moisés tinha recebido a solução. Por que então ele estava tão agitado sobre o problema?

Somente depois de perder meu pai entendi a passagem. O que tinha acontecido imediatamente antes? O primeiro versículo do capitulo diz: “O povo parou em Kadesh. Lá, Miriam morreu e foi enterrada”. Só então diz que as pessoas não tinham água. Uma antiga tradição explica que o povo tinha sido abençoado até aqui com uma fonte milagrosa de água pelo mérito de Miriam. Quando ela morreu, a água cessou.

No entanto, parece-me que a conexão mais profunda não reside entre a morte de Miriam e a falta de água, mas entre sua morte e a perda de equilíbrio emocional de Moisés. Miriam era sua irmã mais velha. Ela tinha acompanhado o seu destino quando, como um bebê, ele tinha sido colocado em uma cesta e flutuado pelo Nilo. Ela tinha tido a coragem e iniciativa de falar com a filha do Faraó e sugerir que ele fosse amamentado por uma Hebreia, reunindo assim Moisés e sua mãe e garantindo que ele crescesse sabendo quem ele era e a que povo pertencia. Ele devia seu senso de identidade a ela. Sem Miriam, ele nunca teria se tornado a face humana de D-s para os israelitas, legislador, libertador e profeta. Ao perdê-la, ele não perdeu somente sua irmã. Ele perdeu o fundamento humano de sua vida.

Enlutado, você perde o controle de suas emoções. Você se irrita quando a situação exige calma. Você bate quando deveria falar, e você fala quando deveria ficar em silêncio. Mesmo quando D-s disse a você o que fazer, você só consegue escutar parte do que foi dito. Você ouve as palavras, mas elas não entram totalmente em sua mente. Maimônides faz a pergunta: como foi que Jacob, um profeta, não sabia que seu filho José ainda estava vivo. Ele responde: porque ele estava em um estado de tristeza, e a Shechiná não está presente quando estamos em um estado de tristeza (1). Moisés no episódio da rocha não era tanto um profeta, mas mais um homem que tinha acabado de perder sua irmã. Ele estava inconsolável e não tinha controle. Ele foi o maior dos profetas. Mas ele também era humano, raramente mais do que aqui.

Nossa parashá é sobre mortalidade. Esse é o ponto. D-s é eterno, nós somos efêmeros. Como dizemos na oração Unetanê tokef em Rosh Hashaná e Yom Kipur, somos “um fragmento de cerâmica, uma lâmina de grama, uma flor que desbota, uma sombra, uma nuvem, uma brisa de vento”. Nós somos poeira e para a poeira voltamos, mas D-s é vida para sempre.

Em um nível, Moisés-na-rocha é uma história sobre pecado e punição: “Porque você não teve fé suficiente em Mim para santificar-Me… por isso não trará esta congregação para a terra que dei a vocês”. Podemos não estar certos sobre qual foi exatamente o pecado, ou por que mereceu tão grave punição, mas pelo menos temos uma ideia do território ao qual a história pertence.

No entanto, parece-me que aqui, assim como em tantos outros lugares na Torá, há uma história por baixo da história, e é uma completamente diferente. Hukat trata da morte, perda e luto. Miriam morre. Aarão e Moisés são informados que não viverão para entrar na Terra Prometida. Aarão morre, e o povo pranteia por ele por trinta dias. Juntos eles formaram a maior equipe de liderança que o povo Judeu já conheceu, Moisés o profeta supremo, Aarão o primeiro sumo sacerdote, e Miriam talvez a maior de todos eles (5). O que a parashá está nos dizendo é que para cada um de nós há um Jordão que não iremos atravessar, uma terra prometida que não vamos entrar. “Não é para você completar a tarefa”. Mesmo os maiores são mortais.

É por isso que a parashá começa com o ritual da vaca vermelha, cujas cinzas, misturadas com as cinzas de madeira de cedro, hissopo e lã escarlate, e dissolvidas em “água viva”, são aspergidas sobre aqueles que tenham tido contato com mortos, para que possam entrar no Santuário.

Esse é um dos princípios mais fundamentais do Judaísmo. Morte contamina. Para a maioria das religiões ao longo da história, a vida após a morte provou ser mais real do que a própria vida. É onde vivem os deuses, pensavam os egípcios. É onde nossos antepassados estão vivos, acreditavam os gregos e os romanos e muitas tribos primitivas. É onde você encontra justiça, pensavam muitos cristãos. É onde você encontra o paraíso, pensavam muitos muçulmanos. Como Judeus acreditamos na vida após a morte e na ressurreição dos mortos, mas o Tanach é quase silente sobre esse assunto. “Os mortos não louvam a D-s”, diz o Salmo. D-s é para ser encontrado na vida, esta vida, com todos os seus riscos e perigos, lutos e tristeza. Podemos ser não mais do que “pó e cinzas”, como disse Abrãao, mas a vida mesma é um fluxo interminável, “água viva”, e é isso que o rito da vaca vermelha simboliza.

Com grande sutileza a Torá mistura lei e narrativa – a lei antes da narrativa porque D-s dá a cura antes da doença. Miriam morre. Moisés e Aarão estão sobrecarregados com tristeza. Moisés, por um momento, perde o controle, e ele e Aarão são lembrados que eles também são mortais e irão morrer antes de entrar na terra. Ainda isso é, como disse Maimônides, “o caminho do mundo”. Somos almas corporificadas. Somos carne e sangue. Nós envelhecemos. Perdemos aqueles que amamos. Exteriormente lutamos para manter nossa compostura, mas interiormente choramos. Ainda assim a vida continua, e aquilo que começamos, outros vão continuar.

Aqueles que amamos e perdemos vivem em nós, assim como vamos viver naqueles que amamos. Porque o amor é tão forte quanto a morte (6), e o bem que fazemos nunca morre (7).

NOTAS:
1) Moed Katan 27b.
2) Maimônides, Hilchot Avel 13:11.
3) Sefer haHinuch, mandamento 16.
4) Maimônides, Oito Capítulos, cap. 7, baseado em Pesahim 117a.
5) Há vários midrashim que tratam do tema sobre a fé, coragem e profecia de Miriam.
6) Shir haShirim 8:6.
7) Veja Mishlê 10:2, 11:4.

Texto original: “HEALING THE TRAUMA OF LOSS” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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