KEDOSHIM

Posted on maio 11, 2016

KEDOSHIM

Em Busca da Identidade Judaica

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Noutro dia eu estava tendo uma conversa com um intelectual judeu e surgiu a questão, como costuma acontecer, quanto à natureza da identidade judaica. O que nós somos? O que nos torna judeus? Esse tem sido um dos debates persistentes sobre a vida judaica desde o século XIX. Até então, as pessoas de um modo geral sabiam quem e o que eram os judeus. Eles eram os herdeiros de uma nação antiga que, no deserto do Sinai há muito tempo, fizeram um pacto com D-s e, com maior ou menor sucesso, tentaram viver por esse pacto desde então. Eles eram o povo de D-s.

Não é necessário dizer que isso perturba os outros. Os gregos pensavam que eram a raça superior. Eles chamavam os não-gregos de “bárbaros”, uma palavra que tem intenção de se parecer com o som feito por ovelhas. Da mesma forma os romanos pensavam ser melhores que outros. Cristãos e muçulmanos, de diferentes formas, pensavam que eles, não os judeus, eram os verdadeiros escolhidos de D-s. O resultado foram muitos séculos de perseguição. Então, quando os judeus tiveram a chance de se tornar cidadãos de uma nação recém-secular da Europa, aderiram com os braços abertos. Em muitos casos, eles abandonaram sua fé e prática religiosa. Mas eles ainda eram considerados judeus.

Porém, o que isso significa? Não pode significar que eles eram um povo dedicado a D-s, já que muitos deles já não acreditavam em D-s nem agiam como se acreditassem. Então passou a significar uma raça. Benjamin Disraeli, convertido ao cristianismo por seu pai quando ainda criança, pensou em sua identidade nesses termos. Ele uma vez escreveu: “Tudo é raça- não há outra verdade” (1), e disse sobre si mesmo, em resposta a uma provocação feita pelo político irlandês Daniel O’Connell, “Sim, eu sou judeu, e enquanto os antepassados ​​do honrado cavalheiro eram selvagens brutais em uma ilha desconhecida, os meus eram sacerdotes no templo de Salomão”.

O problema foi que a hostilidade aos judeus não cessou, apesar de toda a Europa reivindicar, através do caminho do esclarecimento, da razão, a busca da ciência e da emancipação.

Então, agora poderia deixar de haver a definição pela religião, uma vez que nem judeus nem europeus usaram isso como base da identidade. Assim, os judeus tornaram-se odiados por sua raça, e na década de 1870 uma nova palavra foi criada para expressar isso: antissemitismo. Isso era perigoso.

Enquanto os judeus eram definidos pela religião, os cristãos poderiam trabalhar para convertê-los. Você pode mudar sua religião. Mas você não pode mudar a sua raça. Os antissemitas só poderiam funcionar, portanto, pela expulsão ou extermínio dos judeus.

Desde o Holocausto, se tornou um tabu usar a palavra “raça” na educada sociedade no Ocidente. Ainda assim a identidade judaica secular ainda persistiu, e parece não haver outra maneira de se referir a ela. Então um novo termo passou a ser usado: etnia, o que significa aproximadamente o que “raça” significava no século XIX. A definição do Wikipédia sobre etnia é “uma categoria de pessoas que se identificam umas com os outras com base em experiências ancestrais, sociais, culturais ou nacionais comuns”.

O problema é que a etnia é de onde viemos, e não para onde nós estamos indo. Envolve cultura e gastronomia, um conjunto de memórias significativas para os pais, mas cada vez menos para seus filhos. De qualquer forma, não existe uma etnia judaica: existem etnias no plural. Isso é o que faz judeus sefaradim diferentes de seus primos ashkenazim e judeus sefaradim do Norte da África e do Oriente Médio diferentes daqueles cujas famílias vieram originalmente da Espanha e Portugal.

Além disso, o que é muitas vezes visto como etnia judaica, nem sequer é judaico na origem. É um traço persistente do que os judeus absorveram de uma cultura não-judaica local: vestimenta polonesa, música russa, comida da África do Norte, e o dialeto judeu-alemão conhecido como Yidish, juntamente com sua contraparte espanhol-judaica. A etnia é muitas vezes um conjunto de pensamentos emprestados como judaicos, porque as suas origens foram esquecidas.

O judaísmo não é uma etnia e os judeus não são um grupo étnico. Vá ao Muro das Lamentações em Jerusalém e você vai ver os judeus de todas as cores e culturas sob o sol, Os Beta Israel da Etiópia, os Bene Israel da Índia, judeus Bukharan da Ásia central, judeus iraquianos, berberes, egípcios, curdos e líbios; os Temanim do Iêmen, ao lado de judeus americanos provenientes da Rússia, os judeus da África do Sul a partir de Lituânia e judeus britânicos a partir da língua alemã da Polónia. Sua comida, música, vestimentas, costumes e convenções são todos diferentes. O judaísmo não é uma etnia, mas uma bricolagem de múltiplas etnias.

Além do que, a etnia não se mantem. Se os judeus fossem apenas um grupo étnico, eles iriam experimentar o destino de todos esses grupos, que é o desaparecimento ao longo do tempo.

Como os netos dos imigrantes irlandeses, poloneses, alemães e noruegueses para a América, eles se fundem no caldeirão. A etnia tem a duração de três gerações, enquanto as crianças podem se lembrar dos avós imigrantes e seus modos diferentes. Então, ela começa a desaparecer, pois não há nenhuma razão para permanência. Se os judeus não tivessem sido mais do que uma etnia, eles teriam morrido há muito tempo, junto com os cananeus, periseus e jebuseus, conhecidos apenas por estudantes da antiguidade, e não teriam deixado nenhuma marca na civilização do Ocidente.

Assim, quando no ano 2000 um instituto de pesquisa judaico-britânico propôs que os judeus na Grã-Bretanha fossem definidos como grupo étnico e não uma comunidade religiosa, um jornalista não-judeu, Andrew Marr, disse o óbvio: “Tudo isso são águas rasas”, escreveu ele, “e quanto mais você batalhar com o tema, mais superficial fica”. Ele continuou:

Os judeus sempre tiveram histórias para o resto de nós. Eles tiveram a sua Bíblia, uma das grandes obras imaginativas do espírito humano. Eles têm sido vítimas do pior que a modernidade pode fazer, um espelho para a loucura ocidental. Acima de tudo eles tiveram a história de sua sobrevivência cultural e genética do Império Romano até os anos 2000, tecendo e prosperando em meio a incompreensíveis e hostis tribos europeias.

Essa história, pós-bíblica, a linguagem através de seus corpos, não através das palavras, envolveu um endurecimento competitivo intenso de gerações que, ao final, resultou numa chama de gênios na Europa e na América. Além da pintura, da dança e música rap de Morris, é difícil pensar em muitas áreas de empreendimento Ocidental onde os judeus não foram desproporcionalmente bem sucedidos. Para os não-judeus, que não acreditam em um povo que está sendo escolhido por D-s, a lição é que gerações de pessoas que vivem com a sua sagacidade e trabalho duro, fora das certezas tradicionais mais confortáveis, semearão Einsteins e Wittgensteins, Trotskys e Seiffs. Cultura é importante… Os judeus realmente têm sido diferentes; eles têm enriquecido o mundo e o desafiado (2).

O próprio Marr não é nem judeu nem um crente religioso, mas sua visão nos aponta na direção da parashá desta semana, que contém uma das frases mais importantes do judaísmo: “Fale para a toda a assembleia de Israel e diga para eles: Seja sagrado porque Eu, o Senhor seu D-s, Sou Sagrado”. Os judeus foram e continuam a ser pessoas convocadas para a santidade.

O que isso significa? Rashi leu a frase no contexto. O capítulo anterior foi sobre relações sexuais proibidas. Assim é o próximo capítulo. Então ele a entende como significando, ‘tome cuidado para não se colocar no caminho da tentação do sexo proibido’. Ramban lê de forma mais ampla. A Torá proíbe certas atividades e permite outras. Quando se diz “Seja sagrado” significa, de acordo com o Ramban, praticar a autocontenção, mesmo no domínio do permitido. Não seja um glutão, mesmo se o que você está comendo é kasher. Não seja um alcoólatra mesmo se o que você está bebendo é vinho kasher. Não seja, em sua famosa frase, um naval bireshut ha-Torá, “um canalha com autorização da Torá”.

Essas são interpretações localizadas. Elas são o que o versículo significa em seu contexto imediato. Mas isso significa claramente algo maior, e o próprio capítulo nos diz o que é. Ser sagrado é amar o próximo e amar o desconhecido. Significa não roubar, mentir ou enganar os outros. Significa não ficar de braços cruzados quando a vida de alguém está em perigo. Significa não xingar o surdo ou colocar uma pedra diante do caminho do cego, isto é, insultar ou tirar vantagem dos outros, mesmo quando eles estão completamente inconscientes do fato – porque D-s não está desatento a isso.

Significa não plantar seu campo com diferentes tipos de sementes, não fazer cruzamentos híbridos no seu gado ou vestir roupas feitas de uma mistura proibida de lã e linho, ou como diríamos hoje em dia, respeitar a integridade do meio ambiente. Significa não se submeter ao que venha ser a idolatria do momento – e cada época tem seus ídolos. Significa ser honesto nos negócios, fazendo justiça, tratando bem seus funcionários, e compartilhando suas bênçãos (naqueles dias, partes da colheita) com os outros.

Significa não odiar as pessoas, não guardar rancor ou se vingar. Se alguém lhe fez mal, não o odeie. Repreenda-o. Deixe-o ter consciência do que ele fez e como isso o feriu; dê-lhe uma chance de pedir desculpas e fazer as pazes, e depois perdoe-o.

Acima de tudo, “ser sagrado” significa, “Tenha a coragem de ser diferente”. Esse é o significado da raiz de kadosh em hebraico. Significa algo distintivo e separado. “Seja sagrado porque Eu, o Senhor seu D-s, Sou Sagrado” é uma das frases mais contra intuitivas em toda a literatura religiosa. Como podemos ser como D-s? Ele é infinito, somos finitos. Ele é eterno, somos mortais. Ele é mais vasto do que o universo, somos um mero pontinho em sua superfície. No entanto, diz a Torá, em um aspecto podemos.

D-s está no mundo, mas não é do mundo. Então, somos chamados a estar no mundo, mas não ser do mundo. Nós não idolatramos a natureza. Nós não seguimos a moda. Não nos comportamos como todos os outros só porque todo mundo faz. Não nos conformamos. Dançamos uma música diferente. Nós não vivemos no presente. Lembramo-nos do passado de nosso povo e ajudamos a construir o futuro de nosso povo. Não é por acaso que a palavra kadosh também têm o significado de casamento, kidushin, porque casar significa ser fiel um ao outro, como o próprio D-s promete ser fiel a nós e nós a ele, mesmo em tempos difíceis.

Ser sagrado significa testemunhar a presença de D-s na nossa vida e na vida de nosso povo. Israel – o povo judeu – é o povo que, por si só, dá testemunho para o Um além de nós mesmos. Ser judeu significa viver na presença consciente do D-s que não podemos ver, mas podemos sentir como a força dentro de nós encorajando-nos a ser mais corajosos, justos e generosos do que nós mesmos. É isso que os rituais do judaísmo significam: ​​lembrar-nos da presença do Divino.

Cada indivíduo na terra tem uma etnia. Mas apenas um povo foi solicitado coletivamente para ser sagrado. Isso, para mim, é o que significa ser judeu.

Notas:
1. Lord George Bentinck: A Political Biography (1852), p. 331.
2. Andrew Marr, The Observer, Sunday May 14, 2000.

 

Texto original: “IN SEARCH OF JEWISH IDENTITY” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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