KI TAVÔ

Posted on setembro 6, 2017

KI TAVÔ

Aliança e Diálogo

Em duas frases na parashá desta semana, a Torá resume toda a relação entre D-s e o povo de Israel:

Vocês afirmaram [he-emarta] neste dia que o Senhor é seu D-s, que vocês andarão nos Seus caminhos, que vocês observarão Suas leis, mandamentos e regras, e que vocês O obedecerão. E o Senhor afirmou [he-emircha] hoje que vocês são, como Ele prometeu, seu povo precioso, que deve observar todos os Seus mandamentos (Deuteronômio 26:17-18).

Aqui, estabelecido com simplicidade desconcertante, está a dupla relação, a reciprocidade, no coração da aliança. É uma ideia tornada famosa sob a forma de dois jingles.

O primeiro, o de William Norman Ewer:
Que estranho
De D-s
Escolher
Os judeus

E o segundo, o revide judaico:
Nem tanto
Tão estranho –
Os Judeus
Escolheram D-s

Entre D-s e o povo existe um vínculo mútuo de amor. Os israelitas se comprometem a ser fiéis a D-s e aos seus mandamentos. D-s se compromete a apreciar o povo como seu tesouro – embora seja D-s de toda a humanidade, ele ocupa um lugar especial no Seu afeto (falando antropomorficamente) para os descendentes daqueles que primeiramente ouviram e atenderam Seu chamado. Isso é todo o Tanach, a Bíblia hebraica. O resto é comentário.

A tradução, acima, é a da Sociedade de Publicação Judaica (SPJ) Tanach. Qualquer tradução, no entanto, tende a ocultar a dificuldade no verbo-chave em ambas as frases: le-ha’amir. O que é estranho é que, por um lado, é uma forma de um dos verbos bíblicos mais comuns de todos, lomar, “dizer”. Por outro, a forma específica usada aqui – o hiphil, ou forma causadora – é única. Em nenhum outro lugar aparece dessa forma na Bíblia, e seu significado é, como resultado, obscuro.

A tradução SPJ lê isso como “afirmado”. Aryeh Kaplan, em The Living Torá, lê isso como “fidelidade declarada”. Robert Alter torna-o: “proclamado”. Outras interpretações incluem “separado para você mesmo” (Rashi), “escolhido” (Septuaginta), “reconhecido” (Saadia Gaon), “elevado” (Radak, Sforno), “noivo” (Malbim), “dado fama para” (Ibn Janach), “trocado todo o resto por” (Chizkuni), “aceitado a singularidade de” (Rashi para Chaguigá 3a), ou “causou D-s a declarar” (Judá Halevi, citado por Ibn Ezra).

Entre as traduções cristãs, a versão do Rei James traz: “Tu tens afirmado o Senhor para ser seu D-s neste dia”. A Nova Versão Internacional lê: “Você declarou neste dia que o Senhor é seu D-s”. A versão traduzida contemporânea traz: “Em resposta, você concordou que o Senhor será seu D-s”.

Qual é o significado desta forma singular do verbo “dizer”? Por que é usada aqui? O uso de linguagem na Torá não é vago, acidental, aproximado, impreciso. Em geral, nos livros Mosaicos, o estilo espelha a substância. A maneira como algo é dito geralmente está conectada ao que está sendo dito. Dessa forma é aqui também.  O que temos diante de nós é uma proposição de consequências de longo alcance para a questão mais fundamental que a humanidade pode se perguntar: qual é a natureza do vínculo entre seres humanos e D-s – ou entre seres humanos, uns aos outros – de modo que possamos dotar nossas vidas com o carisma da graça? A resposta dada pela Torá, tão profunda que precisamos parar e meditar nela, está na linguagem, na fala, nas palavras. Daí o destaque, nesta afirmação definitiva da fé judaica, do verbo que significa “dizer”.

Devemos ao último trabalho de Wittgenstein, desenvolvido mais adiante por J. L. Austin (Como fazer coisas com palavras) e J. R. Searle (Atos de fala), a percepção de que a linguagem tem muitas funções. Desde os dias de Sócrates, os filósofos tenderam a se concentrar em apenas uma função: o uso da linguagem para descrever, ou estabelecer os fatos. Daí as questões-chave da filosofia e posteriormente da ciência: esta afirmação é verdadeira? Corresponde aos fatos? É consistente com outros fatos? Posso ter certeza? Que evidência eu tenho? Que garantia eu tenho por acreditar no que eu acredito? A linguagem é o meio que usamos para descrever o que é.

Mas esse é apenas um dos usos da linguagem, e há muitos outros. Usamo-la para classificar, dividir o mundo em fatias particulares da realidade. Também a usamos para avaliar. “Patriotismo” e “Jingoísmo (excesso de nacionalismo)”, ambos denotam o mesmo fenômeno – lealdade ao seu país – mas com avaliações opostas:

Patriotismo = bom; Jingoísmo = ruim.

Usamos a linguagem para expressar emoção. Às vezes, usamos simplesmente para estabelecer um relacionamento. Malinowski chamou de comunhão fática, onde o que importa não é o que dizemos, mas o simples fato de que estamos falando um com o outro (Robin Dunbar argumentou recentemente que a fala para os humanos é como “comportamento de auto limpeza” entre os primatas). Também podemos usar a linguagem para questionar, ordenar, formular hipóteses e imaginar. Existem gêneros literários como ficção e poesia que usam a linguagem de formas complexas para estender nosso engajamento imaginativo com a realidade. A mentalidade filosófico-científica que vê a única função significativa da linguagem como descritiva – levada a um extremo no movimento filosófico conhecido como “positivismo lógico” – é uma forma de surdez à rica variedade da fala. Os livros mosaicos contêm um conjunto profundo de reflexões sobre a natureza e o poder da linguagem. Isso tem muito a ver com o fato de que os israelitas dos dias de Moisés estavam no lugar onde, e no momento em que, o primeiro alfabeto apareceu, o script proto-semita do qual todos os alfabetos subsequentes são direta ou indiretamente derivados. O judaísmo marca a primeira transição que aconteceu no mundo de uma cultura oral para uma cultura letrada, em escala nacional. Daí o significado exclusivo que é atribuído à palavra falada e escrita. Descobrimos isso logo no início da Torá. Toma a forma do abandono radical do mito. D-s falou e o mundo surgiu. Não há nenhuma disputa, nenhuma luta, nenhum uso da força para subjugar potências rivais – como existe em todo mito sem exceção. Em vez disso, o verbo chave em Gênesis 1 é simplesmente lemor, “D-s disse [vayomer], que haja… e houve”. A linguagem cria mundos.

Isso, é claro, é a fala Divina – não humana. No entanto, J. L. Austin assinalou que existe uma contrapartida humana. Há certas coisas que podemos criar com palavras quando as usamos de forma especial. Austin chamou esse uso de discurso performativo (mais tecnicamente, atos ilocucionários). Assim, por exemplo, quando um juiz diz: “Este tribunal está agora em sessão”, ele não está descrevendo algo, mas fazendo alguma coisa.

Quando um noivo diz para sua noiva sob a chupá do casamento: “Eis que você está comprometida comigo por este anel de acordo com as leis de Moisés e Israel”, ele não está declarando um fato, mas criando um fato.

O tipo mais básico de expressão performativa é fazer uma promessa. Esse é o uso da linguagem para criar uma obrigação. Algumas promessas são unilaterais (X se compromete a fazer algo por Y), mas outras são mútuas (X e Y se comprometem um com o outro). Algumas são altamente específicas (“Eu prometo pagar-lhe R$ 1.000”), mas outras são abertas (“Eu prometo cuidar de você, seja como for”). O exemplo supremo de uma promessa mútua aberta entre seres humanos é o casamento. O exemplo supremo de uma promessa mútua aberta entre seres humanos e D-s é uma aliança. É o que nossos dois versículos afirmam: que D-s e o povo de Israel se comprometem um com o outro, fazendo uma aliança, uma relação trazida à existência por palavras e sustentada ao honrar essas palavras.

Essa é a proposição mais radical na Bíblia Hebraica. Não há contrapartida real em nenhuma outra religião. O que é supremamente sagrada é a linguagem, quando usada para criar uma ligação moral entre duas partes. Isso significa que a forma suprema de relacionamento é aquela que não depende do poder, da força superior ou da hierarquia dominante-submissa. Numa relação de aliança, ambas as partes respeitam a dignidade da outra. Um pacto existe apenas em virtude do consentimento dado livremente. Isso também significa que, entre o D-s infinito e a humanidade infinitesimal, pode haver relacionamento – porque, através da linguagem, eles podem se comunicar um com o outro.

Os fatos-chave da Torá são que [a] D-s fala e [b] D-s escuta. O uso da linguagem para criar um relacionamento mutuamente vinculante é o que liga D-s e a humanidade. Assim, os dois versículos significam: “Hoje, por meio de uma fala, você fez de D-s o seu D-s, e D-s fez de você o seu povo”. Palavras, linguagem, um ato de dizer, criaram um relacionamento aberto e eternamente vinculante.

Daí o nome que eu dei a esta série de comentários da Torá: Aliança e Diálogo. O judaísmo é uma aliança, um casamento entre D-s e um povo. A Torá é o registro escrito dessa aliança. É o contrato de casamento de Israel como noiva de D-s. Diálogo – falar e ouvir – é o que torna possível a aliança. Daí a dupla forma da Torá: a Torá escrita, através da qual D-s nos fala, e a Torá Oral, através da qual falamos a D-s pela interpretação de Sua Palavra. O judaísmo é o diálogo aberto, mutuamente vinculante entre o céu e a terra.

Apesar da influência profunda do judaísmo em duas religiões posteriores, cristianismo e islã, nenhum dos dois adotou essa ideia (é certo que alguns teólogos cristãos falam de aliança, mas um tipo diferente de aliança, mais unilateral do que recíproca). Não há diálogos entre D-s e os seres humanos no Novo Testamento ou no Alcorão – nenhum que ecoe os diálogos no Tanach entre D-s e Abraão, Moisés, Eliahu, Oséias, Jeremias, Jonas, Habakuk e Jó. O judaísmo, o cristianismo e o islã – a religião do diálogo sagrado, a religião da salvação e a religião da submissão – são três coisas diferentes. O uso da linguagem para criar um vínculo moral de amor entre o infinito e o finito- através de aliança por um lado, e diálogo por outro – é o que torna o judaísmo diferente. Isso é o que está simplesmente estabelecido nesses dois versos: Trazendo um relacionamento à existência através da fala, le-ha’amir, é o que faz de D-s o nosso D-s, e nós, o Seu povo.

 

Texto original: “COVENANT & CONVERSATION” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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