KI TAVÔ

Posted on setembro 23, 2016

KI TAVÔ

Nós Somos o Que Lembramos

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Uma razão da religião ter sobrevivido no mundo moderno, apesar de quatro séculos de secularização, é que ela responde a três perguntas que cada ser humano reflexivo vai fazer em algum momento em sua vida: Quem sou eu? Por que estou aqui? Como então vou viver?

Essas perguntas não podem ser respondidas pelas quatro grandes instituições do Ocidente moderno: ciência, tecnologia, economia de mercado e o Estado democrático liberal. A ciência nos diz como, mas não o porquê. A tecnologia nos dá poder, mas não pode nos dizer como usar esse poder. O mercado nos dá opções, mas não nos diz quais escolhas fazer. O Estado democrático liberal, como uma questão de princípio, impede de endossar qualquer modo particular de vida. O resultado é que a cultura contemporânea coloca diante de nós uma gama quase infinita de possibilidades, mas não nos diz quem somos, por que estamos aqui, e como devemos viver.

No entanto, essas são questões fundamentais. A primeira pergunta de Moisés para D-s em seu primeiro encontro na sarça ardente foi “Quem sou eu?” O sentido claro do verso é que foi uma pergunta retórica: Quem sou eu para realizar a tarefa extraordinária de liderar todo um povo para a liberdade? Mas sob o sentido claro havia uma genuína questão de identidade. Moisés havia sido criado por uma princesa egípcia, a filha do Faraó. Quando ele salvou as filhas de Jetró dos pastores midianitas locais, elas voltaram e disseram ao pai, “Um homem egípcio nos livrou”. Moisés parecia e falava como um egípcio.

Ele então se casou com Tziporá, uma das filhas de Jetró, e passou décadas como um pastor midianita. A cronologia não é inteiramente clara, mas já que ele era um homem relativamente jovem quando foi para Midian, e tinha oitenta anos de idade quando começou a liderar os israelitas, ele passou a maior parte de sua vida adulta com o sogro Midianita, cuidando de suas ovelhas. Então quando ele perguntou a D-s: “Quem sou eu?” Nessa pergunta havia uma questão real. Eu sou um egípcio, um midianita ou um judeu?

Por educação ele era um egípcio, pela experiência ele era um midianita. Contudo, o que foi decisivo foi a sua ascendência. Ele era um descendente de Abraão, filho de Amram e Yocheved. E quando ele fez a D-s a sua segunda pergunta, “Quem é Você?” D-s em primeiro lugar lhe disse: “Eu serei o que eu serei”. E então Ele lhe deu uma segunda resposta:

Diz aos filhos de Israel: O Senhor, o D-s de vossos pais, o D-s de Abraão, o D-s de Isaac e o D-s de Jacob, me enviou a vocês. Esse é o Meu Nome para sempre, o Nome com o qual me chamarão de geração em geração.

Aqui também há um duplo sentido. Superficialmente D-s estava dizendo a Moisés o que dizer aos israelitas quando eles perguntarem, “Quem te mandou para nós?” Mas, em um nível mais profundo, a Torá está nos dizendo sobre a natureza da identidade. A resposta para a pergunta “Quem sou eu?” não é simplesmente uma questão de onde eu nasci, onde passei a minha infância ou a minha vida adulta, ou de que país eu sou um cidadão. Também não é respondida em termos do que eu faço para ganhar a vida, ou quais são os meus interesses e paixões. Essas coisas são sobre onde eu estou e o que eu sou, mas não quem eu sou.

A resposta de D-s – Eu sou o D-s de seus pais – sugere algumas proposições fundamentais. Em primeiro lugar, a identidade é exercida através de genealogia. É uma questão de quem os eram meus pais, quem eram meus avós e assim por diante. Isso não é sempre verdade. Há crianças adotadas. Há filhos que fazem um afastamento consciente de seus pais. Mas para a maioria de nós, a identidade reside em descobrir a história de nossos antepassados o que, no caso dos judeus, dadas as deslocações sem precedentes da vida judaica, é quase sempre um conto de viagens, de coragem, de sofrimento ou escape do sofrimento, e pura resistência.

Em segundo lugar, a própria genealogia conta uma história. Imediatamente depois de dizer a Moisés para dizer ao povo que ele tinha sido enviado pelo D-s de Abraão, Isaac e Jacob, D-s continuou:

“Vai, junta os anciãos de Israel e dize-lhes: ‘O Senhor, o D-s de vossos pais, o D-s de Abraão, Isaac e Jacob, apareceu diante de mim e disse: Eu tenho olhado vocês e tenho visto o que foi feito no Egito. E Eu prometi tirá-los de sua miséria no Egito para a terra dos cananeus, hiteus, amoreus, periseus, heveus e jebuseus – terra na qual emana leite e mel’”.

Não era simplesmente o fato de D-s ser o D-s de seus antepassados. Ele também foi o D-s que fez certas promessas: que Ele traria da escravidão para a liberdade, do exílio à Terra Prometida. Os israelitas eram parte de uma narrativa estendida ao longo do tempo. Eles faziam parte de uma história inacabada, e D-s estava prestes a escrever o próximo capítulo.

E ainda mais, quando D-s disse a Moisés que Ele era o D-s dos antepassados ​​dos israelitas, Ele acrescentou: “Este é o meu nome eterno, é assim que Eu sou recordado [zichri] de geração em geração”. D-s estava aqui dizendo que Ele está além do tempo, “Este é o Meu nome eterno”, mas quando se trata da compreensão humana, Ele vive no tempo, “de geração em geração”. A maneira como ele faz isso é através da transmissão da memória: “É assim que Eu serei recordado”. A identidade não é apenas uma questão de quem foram meus pais. É também uma questão do que eles lembraram e passaram para mim. A identidade pessoal é moldada pela memória individual. A identidade de grupo é formada pela memória coletiva (1).

Tudo isso é um prelúdio para a notável lei na parashá dessa semana. Ela nos diz que as primícias deviam ser levadas para “o lugar que D-s escolheu”, isto é, Jerusalém. Elas deveriam ser entregues ao sacerdote, e cada um deveria fazer a seguinte declaração:

“Meu pai era um arameu errante, que desceu para o Egito com algumas pessoas e viveu lá e se tornou uma grande, poderosa e populosa nação. Os egípcios nos maltrataram e nos fizeram sofrer, submetendo-nos ao trabalho duro. Então clamamos ao Senhor, o D-s de nossos pais, e o Senhor ouviu a nossa voz e viu o nosso sofrimento, nosso trabalho duro e nossa aflição. O Senhor então nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, com muitas coisas espantosas, com sinais e maravilhas. Ele nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra da qual emana leite e mel. Agora estou trazendo os primeiros frutos da terra que Tu, Senhor, me deu” (Deut. 26:5-10).

Sabemos desta passagem porque, pelo menos desde os tempos do Segundo Templo, ela tem sido parte central da Hagadá, a história que contamos na mesa do Seder. Mas observe que era originalmente para ser dita sobre as primícias levadas, o que não ocorria em Pessach. Normalmente, isso era feito em Shavuot.

O que torna essa lei notável é o seguinte: Seria de se esperar, quando se comemora o solo e seus produtos, que falássemos do D-s da natureza. Mas tal texto não é sobre a natureza. É sobre a história. Trata-se de um ancestral distante, um “errante Arameu”. É a história de nossos antepassados. É uma narrativa que explica por que estou aqui, e por que o povo ao qual pertenço é o que é e onde está. Não havia nada remotamente parecido com isso no mundo antigo, e não há nada parecido com isso hoje. Como Yosef Hayim Yerushalmi disse em seu livro clássico Zachor (2), os judeus foram o primeiro povo a ver D-s na história, o primeiro a dar um significado primordial na história, e o primeiro a fazer da memória um dever religioso.

É por isso que a identidade judaica tem provado ser a mais tenaz que o mundo já conheceu: a única identidade sustentada por uma minoria dispersa por todo o mundo há dois mil anos, que acabou levando judeus de volta à terra e Estado de Israel, transformando o hebraico, a linguagem da Bíblia, novamente em um discurso vivo após um lapso de muitos séculos em que foi utilizada apenas para a poesia e oração. Nós somos o que nós lembramos, e a declaração das primícias era uma forma de garantir que os judeus nunca iriam esquecer.

Nos últimos anos, uma série de livros apareceu nos Estados Unidos perguntando se a história norte-americana ainda está sendo contada, ainda está sendo ensinada às crianças, ainda emoldurando uma história que fala a todos os seus cidadãos, lembrando as gerações sucessivas sobre as batalhas que tiveram que ser combatidas para que existisse um “novo nascimento da liberdade”, e as virtudes necessárias para a liberdade ser mantida (3). A sensação de crise em cada uma dessas obras é palpável e, embora os autores vem de posições muito diferentes no espectro político, suas teses são praticamente as mesmas: Se você esquecer a história, você vai perder a sua identidade. Não existe tal coisa como um equivalente nacional da doença de Alzheimer. Quem somos depende do que nós lembramos e, no caso do Ocidente contemporâneo, uma falha da memória coletiva representa um perigo real e presente para o futuro da liberdade.

Os judeus têm contado a história de quem somos por mais tempo e mais devoção do que qualquer outro povo na face da terra. Isso é o que faz a identidade judaica ser tão rica e vibrante. Em uma época em que a memória de computador e os smartphones têm crescido tão rápido, de kilobytes para megabytes para gigabytes, ao mesmo tempo que a memória humana tornou-se tão abreviada, há uma importante mensagem judaica para a humanidade como um todo. Você não pode delegar memória para máquinas. Você tem que renová-las regularmente e ensiná-las para a próxima geração. Winston Churchill disse: “Quanto mais tempo você pode olhar para trás, mais você pode ver para a frente” (4). Ou, dito de forma ligeiramente diferente: Aqueles que contam a história de seu passado já começaram a construir o futuro dos seus filhos.

 

NOTAS:
1) Os clássicos trabalhos sobre memória de grupo e identidade são: Maurice Halbwachs, On Collective Memory, University of Chicago Press, 1992, e Jacques le Goff, History and Memory, Columbia University Press, 1992.
2) Yosef Hayim Yerushalmi, Zachor: Jewish History and Jewish Memory. University of Washington Press, 1982. Veja também Lionel Kochan, The Jew and His History, London, Macmillan, 1977.
3) Entre os mais importantes deles estão: Charles Murray, Coming Apart, Crown, 2013; Robert Putnam, Our Kids, Simon and Shuster, 2015; Os Guinness, A Free People’s Suicide, IVP, 2012; Eric Metaxas, If You Can Keep It, Viking, 2016; e Yuval Levin, The Fractured Republic, Basic Books, 2016.
4) Chris Wrigley, Winston Churchill: a biographical companion, Santa Barbara, 2002, xxiv.

 

Texto original: “WE ARE WHAT WE REMEMBER” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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