KI TETSÊ

Posted on agosto 31, 2017

KI TETSÊ

Dois Tipos de Ódio

É uma lei estranha, quase incompreensível, para qualquer tipo de padrão. Aqui está ela na forma que aparece na parashá desta semana:

Lembre-se do que os amalekitas lhes fizeram ao longo do caminho quando vocês saíram do Egito. Quando vocês estavam cansados e desgastados, eles os encontraram em sua jornada e atacaram todos os que estavam atrás; eles não tiveram medo de D-s. Quando o Senhor, seu D-s, lhes der descanso de todos os inimigos ao seu redor na terra que Ele lhes está dando para possuir como herança, vocês devem apagar o nome de Amalek debaixo do céu. Não esqueça (Deuteronômio 25:17-19).

Os israelitas tinham dois inimigos nos dias de Moisés: os egípcios e os amalekitas. Os egípcios escravizaram os israelitas. Eles os transformaram em uma colônia de trabalho forçado. Eles os oprimiram. O faraó ordenou que afogassem toda criança israelita do sexo masculino. Foi uma tentativa de genocídio. Ainda assim, em relação a eles, Moisés ordena:

Não desprezem um egípcio, porque vocês foram estrangeiros em sua terra (Deuteronômio 23:8).

Os amalekitas não fizeram nada além de atacar os israelitas uma vez (1); um ataque que eles repeliram com sucesso (Êxodo 17:13). No entanto, Moisés ordena: “Lembre-se”. “Não se esqueça”. “Apague o nome”. No Êxodo, a Torá diz que “D-s estará em guerra com Amalek por todas as gerações” (Deuteronômio 17:16). Por que a diferença? Por que Moisés diz aos israelitas, na prática, que perdoem os egípcios, mas não os amalekitas?

A resposta é encontrada como um corolário de ensinamento na Mishná, Avot (5:19):

Sempre que o amor depende de uma causa e a causa desaparece, então o amor desaparece também. Mas se o amor não depende de uma causa, então o amor nunca desaparecerá. Qual é o exemplo do amor que dependia de uma causa? Aquele de Amnon por Tamar. E qual o exemplo do amor que não dependia de uma causa? Aquele de David e Jonathan.

Quando o amor é condicional, ele dura enquanto a condição perdura, mas não mais. Amnon amava, ou melhor, desejava Tamar porque ela era proibida para ele. Ela era sua meia-irmã. Uma vez que ele teve seu caso com ela, “Então Amnon a odiou com um ódio intenso. Na verdade, ele a odiou mais do que a amou” (2 Sam. 13:15). Mas quando o amor é incondicional e irracional, ele nunca cessa. Nas palavras de Dylan Thomas: “Embora os amantes se percam, o amor não se perde, e a morte não dominará”.

O mesmo se aplica ao ódio. Quando o ódio é racional, com base em algum medo ou desaprovação que – justificado ou não – tem alguma lógica para a pessoa, então pode ser racionalizado e ter um final. Mas o ódio incondicional e irracional não pode ser racionalizado. Não há nada que se possa fazer para abordá-lo e acabar com ele. Ele persiste.

Essa foi a diferença entre os amalekitas e os egípcios. O ódio e o medo dos egípcios pelos israelitas não eram irracionais. O faraó disse ao seu povo:

‘Os israelitas estão se tornando muito numerosos e fortes para nós. Devemos lidar sabiamente com eles. Caso contrário, eles podem aumentar tanto que, se houver uma guerra, eles se juntarão aos nossos inimigos e irão lutar contra nós, levando-nos para fora da terra’ (Êxodo 1:9-10).

Os egípcios temiam os israelitas porque eles eram numerosos. Eles constituíam uma ameaça potencial para a população nativa. Os historiadores nos dizem que isso não era infundado. O Egito já havia sofrido uma invasão de um povo de fora, os Hiksos, um povo asiático com nomes e crenças canaanitas, que assumiram o Delta do Nilo durante o Segundo Período Intermediário do Egito dos faraós. Ao final eles foram expulsos do Egito e todos os vestígios de sua ocupação foram apagados. Mas a memória persistiu. Não era irracional para os egípcios temer que os hebreus fossem outra população desse tipo. Eles temeram os israelitas porque eram fortes.

(Note que há uma diferença entre “racional” e “justificado”. O medo dos egípcios era, neste caso, certamente injustificado. Os israelitas não queriam assumir o Egito. Ao contrário, eles teriam preferido sair de lá. Nem toda emoção racional é justificada. Não é irracional sentir medo de voar de avião após o relato de um grande desastre aéreo, apesar de estatisticamente ser mais perigoso dirigir um carro do que ser passageiro em um avião. A questão é simplesmente que a emoção racional, mas injustificada, pode, em princípio, ser curada através do raciocínio).

Exatamente o contrário era verdadeiro para os amalekitas. Eles atacaram os israelitas quando estavam “cansados ​​e fracos”. Eles concentraram seu ataque contra aqueles que estavam “ficando para trás”. Aqueles que são fracos e estão ficando para trás ​​não representam perigo. Isso foi ódio foi irracional e sem fundamento.

Com o ódio racional é possível racionalizar. Além disso, não havia motivo para os egípcios temerem mais os israelitas. Eles se foram. Não eram mais uma ameaça. Mas com o ódio irracional é impossível racionalizar. Não tem motivo, não tem lógica. Portanto, pode não desaparecer jamais. O ódio irracional é tão durável e persistente quanto o amor irracional. O ódio simbolizado por Amalek dura “por todas as gerações”. Tudo o que se pode fazer é lembrar e não esquecer, estar constantemente vigilante e combatê-lo sempre e onde quer que apareça.

Existe igualmente a xenofobia racional: o medo e o ódio do estrangeiro, do estranho, daquele que não é como nós. No estágio caçador-coletor da humanidade, era vital distinguir entre membros de sua tribo e aqueles de outra tribo. Havia competição por comida e território. Não era uma época de liberalismo e tolerância. A outra tribo, tendo a chance, iria provavelmente matá-los ou expulsá-los.

Os gregos antigos eram xenófobos, enxergando todos aqueles que não eram gregos como bárbaros. E ainda assim são muitas populações nativas. Mesmo povos tão tolerantes como os britânicos e os americanos historicamente desconfiavam dos imigrantes, fossem eles judeus, irlandeses, italianos ou porto-riquenhos. O que então acontece é que, dentro de duas ou três gerações, os recém-chegados se adaptam à nova cultura e se integram. Eles são vistos como contribuintes para a economia nacional e agregando riqueza e variedade à sua cultura. Quando uma emoção como o medo dos imigrantes é racional, mas injustificada, finalmente declina e desaparece.

O antissemitismo é diferente da xenofobia. É o caso paradigmático do ódio irracional. Na Idade Média, os judeus foram acusados ​​de envenenar poços, espalhar praga e, em uma das reivindicações mais absurdas de todos os tempos – o Libelo de Sangue – eles foram suspeitos de matar crianças cristãs e usar seu sangue para fazer Matzot para Pessach. Isso era auto evidentemente impossível, mas isso não impediu que as pessoas acreditassem.

O iluminismo europeu, com sua adoração à ciência e à razão, deveria acabar com todo esse ódio. Em vez disso, deu origem a uma nova versão, o antissemitismo racial. No século XIX, os judeus eram odiados porque eram ricos e porque eram pobres; porque eram capitalistas e porque eram comunistas; porque eram exclusivos e permaneciam entre si e porque se infiltravam em todos os lugares; porque eles eram crentes em uma fé antiga e supersticiosa e porque eram cosmopolitas sem raízes que não acreditavam em nada.

O antissemitismo foi a irracionalidade suprema da era da razão.

Isso deu origem a um novo mito, Os Protocolos dos Anciãos de Sião, uma falsificação literária produzida por membros da polícia secreta da Rússia czarista ao final do século XIX. Defendia que os judeus tinham poder sobre toda a Europa – isso na época dos pogroms russos de 1881 e as Leis de Maio antissemitas de 1882, que levaram cerca de três milhões de judeus, impotentes e empobrecidos, a fugir da Rússia para o Ocidente.

A situação em que os judeus se encontravam no final do que deveria ser o século do Iluminismo e da emancipação foi declarada eloquentemente por Theodor Herzl, em 1897:

Nós tentamos sinceramente em todos os lugares fundirmo-nos com as comunidades nacionais em que vivemos, buscando apenas preservar a fé de nossos pais. Não nos é permitido. Em vão somos patriotas leais, às vezes superleais; em vão fazemos os mesmos sacrifícios de vida e de propriedade dos nossos concidadãos; em vão nos esforçamos para aumentar a fama de nossas terras nativas nas artes e ciências, ou a sua riqueza pelo comércio. Em nossas terras nativas, onde vivemos há séculos, ainda somos depreciados como estrangeiros excluídos, muitas vezes por homens cujos antepassados ​​ainda não haviam chegado, enquanto que os suspiros judaicos eram ouvidos há muito tempo no país… Se nos deixassem em paz… Mas acho que não seremos deixados em paz.

Isso foi profundamente chocante para Herzl. Não menos chocante foi o retorno do antissemitismo a partes do Oriente Médio e até mesmo a Europa de hoje, dentro da memória viva do Holocausto. No entanto, a Torá insinua o porquê. O ódio irracional não morre.

Nem toda a hostilidade com os judeus, nem com Israel como um Estado judaico, é irracional, e onde não é, pode ser racionalizada. Mas algumas são irracionais. Algumas dessas hostilidades, mesmo hoje, são uma repetição dos mitos do passado, desde o Libelo de Sangue até os Protocolos. Tudo o que podemos fazer é lembrar e não esquecer, confrontá-las e nos defendermos contra elas.

Amalek não morre. Mas tampouco o povo judeu. Atacado tantas vezes ao longo dos séculos, ainda vive, dando testemunho da vitória do D-s do amor sobre os mitos e a loucura do ódio.
NOTA:
(1) É claro, aconteceram ataques subsequentes por Amalek (incluindo, de acordo com a tradição, em Bamidbar 21:1), mas o decreto para destruir Amalek foi dado após seu primeiro ataque.

Texto original: “TWO TYPES OF HATE” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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