KI TETSÊ

Posted on setembro 14, 2016

KI TETSÊ

Amor Não É Suficiente

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Na parashá desta semana, que está carregada de leis, uma em particular é fascinante. Eis aqui:

Se um homem tem duas esposas, uma que é amada, e a outra que não é amada [senuá, literalmente, odiada], e ambas, a amada e a não-amada, lhe dão filhos, sendo o primogênito o filho da não-amada, então, quando ele quiser dar sua propriedade para seus filhos, ele não deve dar os direitos do primogênito ao filho da esposa amada; Ele precisa reconhecer [os direitos legais] do primogênito de sua esposa não-amada de forma a dar a ele uma parte dupla de tudo que ele tem, pois ele é o primeiro da força de seu pai. O direito de nascimento é legalmente seu (Deut. 21:15-17).

A lei faz sentido eminente. Na Israel bíblica, o primogênito tinha direito a uma quota de casal na herança de seu pai (1). O que a lei nos diz é que esta não está a critério do pai. Ele não pode optar por transferir esse privilégio de um filho para outro em particular; ele não pode fazer isso, favorecendo o filho da mulher que ele mais ama, se de fato seu primogênito veio de outra mulher.

As três leis que abrem a parashá – uma mulher tomada cativa no decurso da guerra, a lei acima sobre os direitos do primogênito e o “filho obstinado e rebelde” – são todas sobre disfunções no seio da família. Os sábios disseram que elas foram dadas a fim de sugerir que alguém que leva uma mulher cativa vai sofrer de conflitos em casa, e o resultado será um filho delinquente (2).  No judaísmo, o casamento é visto como a base da sociedade. Desordem no casamento leva à desordem em outro lugar. Até aqui, tudo claro.

O que é extraordinário sobre isso é que parece conflitar de maneira precisa com uma grande narrativa da Torá, qual seja, Jacob e suas duas mulheres, Leah e Rachel. De fato, a Torá, no seu uso da linguagem, faz ligações verbais inconfundíveis entre as duas passagens. Uma delas é o par de opostos, ahuvá / senuá, “amada” e “não amada / odiada”. Esta é precisamente a forma como a Torá descreve Rachel e Leah.

Recorde o contexto. Fugindo de sua casa para a de seu tio Labão, Jacob apaixonou-se à primeira vista por Rachel e trabalhou sete anos para se casar com ela. Na noite do casamento, no entanto, Labão substituiu Rachel por sua filha mais velha Leah. Quando Jacob reclamou: “Por que você me enganou?” Labão respondeu, com ironia intencional, “Não é costume em nosso lugar que se dê a mais nova antes da mais velha” (3). Jacob então concordou em trabalhar mais sete anos por Rachel. O segundo casamento ocorreu uma mera semana após o primeiro. Em seguida, lê-se:

E [Jacob] casou também com Rachel, e amou Rachel mais do que Leah… D-s viu que Leah era não-amada [senuá] e abriu seu ventre, mas Rachel permaneceu estéril (Gen. 29:30-31).

Leah chamou seu primogênito Reuben, mas sua mágoa por ter sido menos amada permaneceu; e lemos o seguinte sobre o nascimento de seu segundo filho:

Ela engravidou novamente e teve um filho. “D-s ouviu que eu fui desprezada [senuá]”, disse ela, “e Ele me deu também este filho”. Ela chamou a criança Shimon (Gen. 29:33).

A palavra senuá aparece apenas quatro vezes na Torá, duas vezes na passagem acima sobre Leah, e duas vezes em nossa parashá, na lei dos direitos do primogênito.

Existe uma ligação ainda mais forte. A frase incomum “primeiro da força [do pai]” aparece apenas duas vezes na Torá. Aqui (“porque ele é o primeiro da força do seu pai”) e em relação a Reuben, o primogênito de Leah: “Reuben, tu és meu primogênito, minha potência e o primeiro da minha força, em primeiro lugar na classificação e primeiro no poder” (Gen. 49:3).

Devido a tais consideráveis paralelos linguísticos, o leitor atento não pode deixar de perceber na lei da nossa parashá um comentário retrospectivo sobre a conduta de Jacob vis-à-vis seus próprios filhos. No entanto, esse comportamento parece ter sido precisamente o oposto do que está legislado aqui. Jacob transferiu o direito do primogênito de Reuben, seu primogênito real, filho da menos-amada Leah, para José, o primogênito de sua amada Rachel. Isto é o que ele disse a José:

“Agora os dois filhos que nasceram no Egito antes que eu viesse para cá devem ser considerados como meus. Efraim e Menashê serão como Reuben e Shimon para mim” (Gen. 48:5).

Reuben deveria ter recebido uma porção dupla, mas em vez disso foi José quem recebeu. Jacob reconheceu o direito de parte integral da herança para cada um dos dois filhos de José. Então Efraim e Menashê tornaram-se cada um uma tribo por seu próprio direito. Em outras palavras, parece que temos uma clara contradição entre Deuteronômio e Gênesis.

Como vamos resolver isso? Pode ser que, apesar do princípio rabínico de que os patriarcas observaram toda a Torá antes dela ter sido dada, esta é apenas uma aproximação. Nem toda lei era precisamente a mesma antes e depois da aliança no Sinai. Por exemplo, Ramban observa que a história de Judá e de Tamar parece descrever uma forma ligeiramente diferente do casamento através do levirato estabelecido em Deuteronômio (4).

De qualquer forma, essa não é a única aparente contradição entre Gênesis e uma lei posterior. Há outras, não menos importantes, como o fato de Jacob ter se casado com duas irmãs, algo categoricamente proibido em Levítico 18:18. A solução de Ramban – uma solução elegante, que flui de sua visão radical sobre a conexão entre a lei judaica e a terra de Israel – é que os patriarcas observaram a Torá somente enquanto eles estavam vivendo em Israel (5). Jacob casou-se com Leah e Rachel fora de Israel, na casa de Labão em Haran (situada na Turquia de hoje).

Abarbanel dá uma explicação muito diferente. A razão de Jacob ter transferido a porção dupla de Reuben para José foi porque D-s lhe disse para fazê-lo. A lei em Deuteronômio é portanto estabelecida para deixar claro que o caso de José foi uma exceção, não um precedente.

R. Ovadia Sforno sugere que a proibição em Deuteronômio se aplica somente quando a transferência dos direitos do primogênito acontece por causa do pai favorecer uma esposa em detrimento de outra. Ela não se aplica quando o primogênito tenha sido culpado de um pecado que justificasse perder seu privilégio legal. Isso é o que Jacob queria dizer quando, no leito de morte, disse a Reuben: “Impetuoso como a água, você não vai mais ser o primeiro, pois você subiu na cama de seu pai e o profanou” (Gen. 49:4). Isso é afirmado explicitamente no livro de Crônicas, onde se lê que “Reuben… era o primogênito, mas quando ele profanou a cama de casal de seu pai, os seus direitos de primogênito foram dados aos filhos de José, filho de Israel” (1 Cron. 5:1).

Não é impossível então que haja um tipo completamente diferente de explicação. O que torna a Torá singular é ser um livro que trata tanto de lei (o significado primário de “Torá”) como de história. Em outros lugares estes são gêneros bastante diferentes. Há a lei, uma resposta para a pergunta: “O que podemos ou não fazer?” E há a história, uma resposta para a pergunta: “O que aconteceu?” Não há nenhuma relação óbvia entre essas duas questões.

Não é assim no Judaísmo. Em muitos casos, especialmente em mishpat, o direito civil, há uma conexão entre direito e história, entre o que aconteceu e o que deveria ou não deveria ser feito (6). Grande parte da lei bíblica, por exemplo, emerge diretamente da experiência dos israelitas na escravidão no Egito, como se dissesse: Isto é o que os nossos antepassados sofreram no Egito, portanto, não faça o mesmo. Não oprima seus trabalhadores. Não transforme um israelita em escravo ao longo da vida. Não deixe seus servos ou empregados sem um dia de descanso semanal. E assim por diante.

Nem toda lei bíblica é assim, mas algumas são. Representa a verdade aprendida através da experiência; justiça na medida que toma forma através das lições da história. A Torá considera o passado como um guia para o futuro: muitas vezes positivo, mas por vezes também negativo. Gênesis nos diz, entre outras coisas, que o favoritismo de Jacob para Rachel sobre Leah, e para o primogênito de Rachel, José, sobre o primogênito de Leah, Reuben, foi uma causa de prolongados conflitos dentro da família. Quase levou os irmãos a matar José, e levou-os a vendê-lo como escravo. De acordo com Ibn Ezra, o ressentimento sentido pelos descendentes de Reuben resistiu por várias gerações, e foi a razão pela qual Datan e Aviram, ambos Reubenitas, tornaram-se figuras-chave na rebelião de Korach (7).

Jacob fez o que fez como uma expressão de amor. Seu sentimento por Rachel foi esmagador, como o foi para José, o filho mais velho dela. O amor é central para o judaísmo: não apenas o amor entre marido e mulher, pai e filho, mas também o amor a D-s, ao próximo e ao estranho. Mas o amor não é suficiente. Também deve haver justiça e a aplicação imparcial da lei. As pessoas devem sentir que a lei está do lado da justiça. Você não pode construir uma sociedade somente em cima do amor. O amor une, mas também divide. Deixa o menos-amado sentindo-se abandonado, negligenciado, ignorado, “odiado”. Pode despertar briga, inveja e um turbilhão de violência e vingança.

Isso é o que a Torá está nos dizendo quando usa associação verbal para conectar a lei em nossa parashá com a história de Jacob e seus filhos em Gênesis. Está nos ensinando que a lei não é arbitrária. Ela é guiada pela experiência da história. A lei é em si um Tikun, uma forma de consertar o que deu errado no passado. Devemos aprender a amar; mas também devemos saber os limites do amor, e a importância da justiça-como-equidade tanto nas famílias quanto na sociedade.

 

NOTAS:

  1. Isso já está implícito na história de Jacob, Reuben e José: sobre isso, veja abaixo. Os sábios também inferiram isso do episódio das filhas de Tzelofehad. Veja Num. 27:7, Baba Batra 118b.
  2. Sanhedrin 107a.
  3. 29:25-26. Uma referência à compra por Jacob do direito de primogenitura de Esaú e a tomada de sua benção.
  4. Veja Ramban em Gen. 38:8
  5. Ramban em Gen. 26:5
  6. Esse é o assunto do famoso ensaio de Robert Cover, ‘Nomos and Narrative’, Harvard Law Review 1983-1984, disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3690&context=fss_papers . A visão de Cover era que “Nenhum conjunto de instituições legais ou prescrições existe para além das narrativas que a localiza e lhe dá significado. Para cada constituição há um épico; para cada Decálogo, uma escritura”.
  7. Ibn Ezra para Num. 16:1.

 

Texto original: “LOVE IS NOT ENOUGH” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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