KI TISSÁ

Posted on fevereiro 26, 2016

KI TISSÁ

A Proximidade de D-s

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Quanto mais eu estudo a Torá, mais consciente me torno sobre o imenso mistério de Êxodo 33. Este é o capítulo situado no meio da narrativa do Bezerro de Ouro, entre o capítulo 32 que descreve o pecado e suas consequências, e o capítulo 34, a revelação de D-s a Moisés dos “Treze atributos de Misericórdia”, o segundo conjunto de tábuas e a renovação da aliança. É, creio eu, esse mistério que molda a forma da espiritualidade judaica.

O que torna o capítulo 33 desconcertante é, em primeiro lugar, o fato de não ser claro do que se trata. O que Moisés estava fazendo? No capítulo anterior, ele já havia orado duas vezes para que o povo fosse perdoado. No capítulo 34 ele reza por perdão novamente. O que então ele estava tentando alcançar no capítulo 33?

Em segundo lugar, os pedidos de Moisés foram estranhos. Ele diz: “Mostre-me agora Seus caminhos” e “Mostre-me agora a Sua glória” (33:13 e 33:18). Tais pedidos mais parecem pedidos de compreensão metafísica da experiência mística do que pedidos de perdão. Eles têm a ver com Moisés como indivíduo, não com o povo em cujo nome ele estava orando. Este foi um momento de crise nacional. D-s estava com raiva. As pessoas estavam traumatizadas. A nação inteira estava em desordem. Este não era o momento para Moisés pedir um seminário em teologia.

Em terceiro lugar, mais de uma vez a narrativa parece estar voltando no tempo. No versículo 4, por exemplo, ele diz que “Nenhum homem colocou seus ornamentos” e no verso seguinte D-s diz: “Agora então removam seus ornamentos”. No versículo 14, D-s diz: “Minha presença irá contigo”. No versículo 15, Moisés diz: “Se tua presença não vai conosco, não nos faça deixar este lugar”. Em ambos os casos, o tempo parece estar invertido: a segunda frase é respondida pela anterior. A Torá está claramente chamando nossa atenção para algo, mas o quê?

Adicione a isso o mistério do próprio bezerro – foi ou não foi um ídolo? O texto afirma que o povo disse: “Este, Israel, é o teu D-s, que te tirou do Egito” (32:4). Mas também diz que eles procuraram o bezerro porque não sabiam o que tinha acontecido com Moisés. Estariam eles procurando um substituto para ele ou para D-s? Qual foi o seu pecado?

Em torno de tudo isso encontra-se o maior mistério da sequência precisa de eventos envolvidos nas longas passagens sobre o Tabernáculo, antes e depois do Bezerro de Ouro. Qual era a relação entre o Santuário e o bezerro?

Bem no coração do mistério está o estranho e preocupante detalhe dos versículos 7-11. Lá nos é informado que Moisés tomou sua tenda e armou-a fora do acampamento. O que isso tem a ver com o assunto em questão, ou seja, a relação entre D-s e o povo depois do Bezerro de Ouro? De qualquer forma, foi certamente a pior coisa possível para Moisés fazer naquele momento sob aquelas circunstâncias. D-s tinha acabado de anunciar que “Eu não irei no seu meio” (33:3). Com isso, o povo estava profundamente angustiado. Eles “entraram em luto” (33:4). Então, para Moisés deixar o campo deve ter sido duplamente desmoralizante. Em momentos de angústia coletiva, um líder tem de estar perto das pessoas, não distante.

Há muitas maneiras de ler esse texto enigmático, mas parece-me que a interpretação mais poderosa e simples é a seguinte.

Moisés estava fazendo sua audaciosa oração, tão audaciosa que a Torá não a enuncia direta e explicitamente. Nós temos que reconstruí-la a partir de anomalias e pistas dentro do próprio texto.

O capítulo anterior sugeriu que o povo entrou em pânico por causa da ausência de Moisés, seu líder. Até mesmo D-s demanda a presença de Moisés com o povo quando ele disse: “Desça, porque o seu povo, o povo que você tirou do Egito, corrompeu-se” (32:7). A sugestão é que a ausência ou a distância de Moisés era a causa do pecado. Ele deveria ter ficado mais perto do povo. Moisés entendeu a questão. Ele desceu. Ele puniu os culpados. Ele orou a D-s para perdoar o povo. Esse foi o tema do capítulo 32. Mas, no capítulo 33, tendo sido restaurada a ordem para o povo, Moisés inicia uma abordagem totalmente nova. Ele estava, na verdade, dizendo a D-s: o que as pessoas precisam não é que eu esteja perto delas. Eu sou apenas um ser humano, aqui hoje, desaparecido amanhã. Mas Você é eterno. Você é o D-s deles. Eles precisam que Você esteja perto deles.

Foi como se Moisés estivesse dizendo: “Até agora, eles têm experimentado Você como uma força elementar, aterrorizante, distribuindo praga após praga para os egípcios, trazendo o maior império do mundo a seus pés, dividindo o mar, derrubando a própria ordem da natureza. No Monte Sinai, simplesmente ao ouvir a Sua voz, eles ficaram tão sobrecarregados que disseram, se continuarmos a ouvir a voz, ‘vamos morrer’” (Ex. 20:16). O povo precisava, disse Moises, não a experiência da grandiosidade de D-s, mas a proximidade de D-s, não de ouvir D-s nos trovões e relâmpagos no topo da montanha, mas como uma presença perpétua no vale abaixo.

É por isso que Moisés removeu a sua tenda e armou-a fora do acampamento, como se dissesse a D-s: não é minha presença que o povo precisa em seu meio, mas a Sua. É por isso que Moisés procurou entender a natureza do próprio D-s. É possível que D-s esteja próximo de onde está o povo? Pode a transcendência tornar-se imanência? O D-s que é mais vasto do que o universo pode viver dentro do universo de uma forma previsível, compreensível, e não apenas sob a forma de intervenção milagrosa?

Para isso, D-s respondeu de uma forma altamente estruturada. Em primeiro lugar, disse ele, você não consegue entender os Meus caminhos. “Eu vou ser benevolente com quem Eu for benevolente e Vou mostrar misericórdia a quem Eu vou mostrar misericórdia” (33:19). Há um elemento de justiça divina que sempre escapará da compreensão humana. Não podemos entrar plenamente na mente de outro ser humano, quanto mais na mente do próprio Criador.

Em segundo lugar, “Você não pode ver a Minha face, pois ninguém pode Me ver e viver” (33:20). Os seres humanos podem, na melhor das hipóteses, “Ver Minhas costas”. Mesmo quando D-s intervém na história, podemos ver isso só em retrospectiva, olhando para trás. Steven Hawking estava errado (1). Mesmo que decodificássemos cada mistério científico, ainda assim não conheceríamos a mente de D-s.

No entanto, em terceiro lugar, você pode ver Minha “glória”. Isso foi o que Moises pediu quando percebeu que nunca poderia conhecer os “caminhos” de D-s ou ver Sua “face”. Foi isso que D-s fez quando passou enquanto Moisés estava parado “na fenda da rocha” (v. 22). Não sabemos neste momento exatamente qual o significado da glória de D-s, mas descobrimos isso no final do livro do Êxodo. Os capítulos 35-40 descrevem como os israelitas construíram o Tabernáculo. Quando ele foi concluído e montado, lemos o seguinte:

Então a nuvem cobriu a tenda da congregação, e a glória do Senhor encheu o Tabernáculo. Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porque a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do Senhor encheu o Tabernáculo (Ex. 40:34-35).

Agora entendemos todo o drama colocado em marcha pela construção do Bezerro de Ouro. Moisés apelou a D-s para se aproximar do povo, para que eles O encontrassem não só em momentos que não se repetem, na forma de milagres, mas regularmente, no dia-a-dia, e não apenas como uma força que ameaça destruir tudo o que toca, mas como uma Presença que pode ser sentida no coração do acampamento.

Foi por isso que D-s ordenou a Moisés para instruir o povo para construir o Tabernáculo. Foi o que Ele quis dizer: “Que eles façam um Santuário para Mim e Eu habitarei (ve-shachantí) no meio deles” (Ex. 25:8). É a partir deste verbo que nós temos a palavra Mishkan – “Tabernáculo” – e a palavra pós-bíblica Shechiná, significando a presença divina. Um shachen é um vizinho, alguém que mora ao lado. Aplicado a D-s significa “a Presença que está próxima”. Sendo assim – e está é, por exemplo, a forma como Judá Halevi entendeu o texto (2) – então toda a instituição do Tabernáculo foi uma resposta divina para o pecado do Bezerro de Ouro e uma aceitação por D-s da súplica de Moisés para que Ele estivesse próximo das pessoas. Nós não podemos ver a face de D-s; não podemos compreender os caminhos de D-s; mas podemos encontrar a glória de D-s sempre que construirmos uma casa, na terra, para Sua presença.

Esse é o milagre permanente da espiritualidade judaica. Ninguém, antes do nascimento do judaísmo, havia previsto D-s em tal forma abstrata e inspiradora: D-s está mais distanciado do que a estrela mais distante e mais eterno do que o próprio tempo. No entanto, nenhuma religião sentiu D-s tão próximo. No Tanach, os profetas argumentam com D-s. No livro de Salmos, o Rei David fala com Ele em termos da maior intimidade. No Talmud, D-s ouve os debates entre os sábios e aceita suas decisões, mesmo quando vão de encontro à voz celestial. A relação de D-s com Israel, disseram os profetas, é como aquela entre um pai e um filho, ou entre um marido e sua esposa. No Cântico dos Cânticos também é assim, como entre dois amantes apaixonados. O Zohar, o texto fundamental do misticismo judaico, usa a linguagem mais ousada de paixão, como faz Yedid nefesh, o poema atribuído ao cabalista do século XVI, R. Elazar Azikri de Tzefat.

Essa é uma das diferenças marcantes entre as sinagogas e as catedrais da Idade Média. Em uma catedral você sente a imensidão de D-s e a pequenez da humanidade. Mas no Altneushul em Praga ou nas sinagogas do Ari e R. Joseph Karo em Tzefat, você sente a proximidade de D-s e a grandeza potencial da humanidade. Muitas nações cultuam D-s, mas os judeus são o único povo que se anunciam como Seus parentes próximos (“Meu filho, meu primogênito, Israel” – Ex. 4:22).

Entre as linhas de Êxodo 33, se ouvirmos com suficiente atenção, sentimos o surgimento de uma das características mais distintivas e paradoxais da espiritualidade judaica. Nenhuma religião já elevou um D-s a tais alturas, mas nenhuma jamais o sentiu mais perto. Isso é o que Moisés buscou e alcançou em Êxodo 33, em sua conversa mais ousada com D-s.

NOTAS:
(1) Em sua famosa frase, ao final de Uma breve história do Tempo, ele diz que se fossemos alcançar uma compreensão científica completa do cosmos, iriamos “conhecer a mente de D-s”.
(2) Judá Halevi, The Kuzari, 1:97.

Texto original: “THE CLOSENESS OF GOD” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

PARASHIOT mais recentes

PARASHIOT MAIS RECENTES

METSORA

Existe algo como Lashon Tov? Os Sábios entenderam tsara’at, o tema da parashá desta semana, não como uma doença, mas com...

Leia mais →

TAZRIA

Otelo, WikiLeaks e paredes mofadas Foi a Septuaginta, a antiga tradução grega da Bíblia Hebraica, que traduziu tsara’at,...

Leia mais →

SHEMINI

Espontaneidade: Boa ou Ruim? Shemini conta a trágica história de como a grande inauguração do Tabernáculo, um dia sobre o qua...

Leia mais →

HORÁRIOS DAS REZAS