MATOT-MASSÊ

Posted on agosto 2, 2016

MATOT-MASSÊ

A Complexidade dos Direitos Humanos

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

O livro de Bamidbar chega a um final que é de fato muito estranho. No início da parashá de Pinchás lemos como as cinco filhas de Tzelofehad vieram a Moisés com uma reivindicação baseada na justiça e nos direitos humanos (1). Seu pai tinha morrido sem filhos homens. A herança – neste caso uma parte na terra – passa através da linhagem masculina, mas aqui não havia linhagem masculina. Certamente seu pai tinha direito à sua parte, e elas eram suas únicas herdeiras. Por direito essa participação deveria chegar a elas: “Por que o nome de nosso pai deveria estar em desvantagem em sua família simplesmente porque ele não teve um filho homem? Dê-nos uma porção de terra juntamente com os irmãos de nosso pai” (Num. 27:4).

Moisés não tinha recebido qualquer instrução sobre tal eventualidade, então ele pediu diretamente a D-s. E D-s se colocou em favor das mulheres. “As filhas de Tzelofehad estão certas. Você deve dar-lhes posse de herança entre os irmãos de seu pai e transferir a herança de seu pai para elas”. Ele deu a Moisés mais instruções sobre a disposição de herança, e a narrativa passa então a outros assuntos.

Só agora, justamente ao final do livro, a Torá faz um relato sobre um evento que surgiu diretamente a partir desse caso. Líderes da tribo de Tzelofehad, a tribo de Menashê, filho de José, vieram e fizeram a seguinte reclamação. Passar a terra para as filhas de Tzelofehad significaria que, se elas casassem com homens de outra tribo, elas acabariam por passá-las para seus maridos e, assim, para as tribos deles. Dessa forma a terra que inicialmente tinha sido concedida à tribo de Menashê poderia ser perdida para sempre.

Mais uma vez Moisés levou o caso a D-s, que ofereceu uma solução simples. As filhas de Tzelofehad tinham direito à terra, mas a tribo também tinha direito. Portanto, se elas desejam tomar posse da terra, elas devem se casar com homens de dentro de sua própria tribo. Dessa forma, ambas as reivindicações poderiam ser honradas. As filhas não perderiam o direito à terra, mas perderiam alguma liberdade na escolha de um cônjuge.

As duas passagens estão intimamente relacionadas. Elas usam a mesma terminologia. Ambos, os líderes do clã e as filhas de Tzelofehad, argumentam de forma parecida. Eles usam o mesmo verbo para descrever a sua perda potencial: yigara, “desfavorecidas, diminuídas”. D-s respondeu em ambos os casos de forma similar, “kein… dovrot/dovrim”, eles falaram corretamente (2). Por que, então, esses dois episódios estão separados no texto?  Por que o livro de Números termina com essa nota aparentemente anticlímax? E isso tem alguma relevância hoje em dia?

O livro Bamidbar é sobre indivíduos. Ele começa com um censo, cuja finalidade é nos dizer o número real de israelitas, mas principalmente para “erguer” as suas “cabeças”, o estilo incomum que a Torá usa para transmitir a ideia de que quando D-s ordena um censo é para dizer ao povo que cada um deles conta. O livro também destaca a psicologia dos indivíduos. Nós lemos sobre o desespero de Moisés, sobre as críticas de Aarão e Miriam, dos espiões que não tiveram a coragem de voltar com um relatório positivo, e dos descontentes, liderados por Korach, que desafiaram a liderança de Moisés. Lemos sobre Josué e Caleb, Eldad e Medad, Datam e Aviram, Zimrí e Pinchás, Balak e Bilam e outros. Esta ênfase sobre os indivíduos chega a um clímax na oração de Moisés a “D-s dos espíritos de toda a carne” para nomear um sucessor – entendido pelos sábios e Rashi como que para significar nomear um líder que irá lidar com cada indivíduo como indivíduo, que irá se relacionar com as pessoas em sua singularidade.

Esse é o contexto da reivindicação das filhas de Tzelofehad. Elas estavam reivindicando seus direitos como indivíduas. Exatamente isso. Como muitos dos comentaristas apontaram, o comportamento das mulheres ao longo dos anos no deserto foi exemplar, enquanto o dos homens foi o oposto. Os homens doaram ouro para confeccionar o bezerro de ouro. As mulheres não. Os espiões eram homens: um comentário famoso feito pelo Keli Yakar (R. Shlomo Efraim Luntschitz, 1550-1619) sugere que se Moisés tivesse enviado mulheres ao invés de homens, elas teriam voltado com um relatório positivo (3). Reconhecendo a justiça da causa, D-s afirmou os direitos das filhas de Tzelofehad como indivíduas.

Mas a sociedade não é construída sobre os indivíduos somente. Como o livro de Juízes assinala, o individualismo é outro nome para o caos: “Naqueles dias não havia rei em Israel, cada um fazia o que era direito aos seus próprios olhos”. Daí a insistência, ao longo de Bamidbar, sobre o papel central das tribos como princípio organizador da vida judaica. Os israelitas foram contados segundo as suas tribos. A Torá estabeleceu precisamente seus acampamentos ao redor do Tabernáculo e a ordem em que eles se encontravam para a jornada. Em Nassô, numa longa narrativa, a Torá repete os presentes de cada tribo na inauguração do Tabernáculo, apesar do fato de cada um deles ter dado exatamente a mesma coisa.  Na estrutura de Israel como uma sociedade, as tribos não foram acidentais. Como os Estados Unidos da América, cuja estrutura da base política é a de uma federação de (originalmente treze, agora cinquenta) estados, assim também Israel foi (até à nomeação de um rei) uma federação de tribos.

A existência de algo como as tribos é fundamental para uma sociedade livre (4). O moderno Estado de Israel está construído sobre um vasto conjunto de etnias – Ashkenazim, Sefaradim, judeus da Europa ocidental, central e oriental, Espanha e Portugal, países árabes, Rússia e Etiópia, América, África do Sul, Austrália e outros lugares; alguns Hassidim, alguns membros de Yeshivot, outros “modernos”, outros “tradicionais”, outros ainda seculares e culturais.

Cada um de nós tem uma série de identidades, em parte com base em antecedentes familiares, em parte pela sua profissão, em parte por sua localidade e comunidade. Estas “estruturas intermediárias”, maiores do que o indivíduo, mas menores do que o Estado, são onde desenvolvemos nossas interações e identidades – complexas, vívidas e face a face. Elas são os domínios da família, amigos, vizinhos e colegas, e constituem o que é conhecido coletivamente como sociedade civil. Uma sociedade civil forte é essencial para a liberdade (5).

É por isso que, juntamente com os direitos individuais, a sociedade deve dar espaço para identidades de grupo. O exemplo clássico do contrário veio na esteira da Revolução Francesa. No decurso do debate na Assembleia da Revolução Francesa, em 1789, o Conde de Clermont-Tonnerre fez sua famosa declaração: “Para os judeus como indivíduos, tudo. Para os judeus como uma nação, nada”. Se eles insistirem em definir-se como uma nação, isto é, como um subgrupo distinto dentro da república, disse o conde, “vamos ser obrigados a expulsá-los”.

Inicialmente, isso parecia razoável. Aos judeus estavam sendo oferecidos os direitos civis no novo Estado-nação secular. No entanto, não era nada disso. Significava que os judeus teriam de desistir de sua identidade como judeus no domínio público. Nada e nenhuma identidade religiosa ou étnica deveria ficar entre o indivíduo e o Estado. Não foi por acaso que um século depois a França tornou-se um dos epicentros do antissemitismo europeu, começando com a cruel La France Juive em 1886 de Édouard Drumont, e culminando no julgamento de Dreyfus. Ouvindo o grito da multidão parisiense “Mort aux Juifs”, Theodor Herzl percebeu que os judeus ainda não tinham sido aceitos como cidadãos da Europa, apesar de todos os protestos em contrário. Os judeus estavam sendo considerados como uma tribo numa Europa que alegou ter abolido as tribos.  A emancipação Europeia reconheceu os direitos individuais mas não os coletivos.

O primatologista Frans de Waal, cujo trabalho entre os chimpanzés que mencionamos neste ano no Covenant and Conversation sobre Korach, aponta fortemente para a questão. Quase toda cultura Ocidental moderna, diz ele, foi construída sobre a ideia de indivíduos autônomos. Mas não é isso que somos. Somos pessoas com fortes ligações com a família, amigos, vizinhos, aliados, correligionários e pessoas da mesma etnia. Ele continua:

Uma moralidade exclusivamente preocupada com os direitos individuais tende a ignorar os laços, as necessidades e as interdependências que marcaram a nossa existência desde o início. É uma moralidade fria que coloca espaço entre as pessoas, atribuindo a cada um o seu próprio cantinho do universo. É um mistério como esta caricatura de uma sociedade surgiu na mente de eminentes pensadores (6).

Isso é precisamente o ponto que a Torá está levantando quando divide a história das filhas de Tzelofehad em duas. A primeira parte, em Parashá Pinchás, trata sobre os direitos individuais, os direitos das filhas de Tzelofehad para uma partilha na terra. A segunda, no final do livro, trata sobre os direitos do grupo, neste caso, o direito da tribo de Menashê ao seu território. A Torá confirma ambos, porque ambos são necessários para uma sociedade livre.

Muitas das questões aparentemente mais intratáveis ​​na vida judaica contemporânea surgiram porque os judeus, especialmente no Ocidente, estão acostumados com uma cultura em que os direitos individuais são mantidos para substituir todos os outros. Nós devemos ser livres para viver, cultuar e nos identificar como escolhermos. Mas uma cultura baseada unicamente nos direitos individuais irá prejudicar as famílias, as comunidades, tradições, lealdades e códigos compartilhados de reverência e contenção.

Apesar da enorme ênfase no valor do indivíduo, o judaísmo também insiste sobre o valor dessas instituições que preservam e protegem nossas identidades como membros de grupos que as compõem. Nós temos direitos como indivíduos, mas identidades somente como membros de tribos. Honrar ambos é tarefa delicada, difícil e necessária. Bamidbar termina mostrando-nos como fazê-lo.

 

NOTAS:
1) A palavra “direitos” é, claro, um anacronismo. O conceito não tinha sido criado até o século 17. Todavia, não é absurdo sugerir que isso é o que estava implícito na reclamação das filhas, “por que o nome do nosso pai deveria ser desfavorecido?”
2) Essas duas passagens podem bem ser a fonte da história do rabino que escuta os dois lados de uma disputa marital, e diz tanto para o marido quanto para a mulher, “você está certo (a)”. O discípulo do rabino pergunta, “como podem os dois estarem certos?” No que o rabino responde, “você também está certo”.
3) Keli Yakar para Num. 13:2.
4) Veja a obra mais recente de Sebastian Junger: Tribe: On homecoming and belonging, Fourth Estate, 2016.
5) Esse é o argumento mais poderoso usado por Edmond Burke e Alexis de Tocqueville.
6) Frans de Waal, Good Natured, Harvard University Press, 1996, 167.

 

Texto original: “THE COMPLEXITY OF HUMAN RIGHTS” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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