MIKETZ

Posted on dezembro 29, 2016

MIKETZ

O Autor de Nossas Vidas

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Foi a primeira tentativa real de José tomar seu destino nas próprias mãos, e ele falhou. Ou assim parece.

Considere a história até agora conforme estabelecido na parashá da semana passada. Quase tudo o que acontece na vida de José se divide em duas categorias. As primeiras são as coisas feitas a ele. Seu pai o ama mais do que aos outros filhos. Ele lhe dá uma túnica ricamente bordada.

Seus irmãos têm inveja e o odeiam. Seu pai o envia para ver como estão seus irmãos, os quais estavam cuidando dos rebanhos em um lugar distante. Ele não consegue encontrá-los e tem que confiar em um estranho para aponta-lo para a direção certa. Os irmãos planejam matá-lo. Finalmente o venderam como escravo. Ele é levado para o Egito. Foi adquirido como escravo por Potifar. A esposa de Potifar o acha atraente, tenta seduzi-lo e, falhando, o acusa falsamente de estupro. Como resultado foi preso.

Isso é extraordinário. José é o centro das atenções onde quer que esteja e, ainda assim, ele é, muitas vezes, o alvo das ações de outros – um objeto das ações de outras pessoas ao invés de autor de seus próprios feitos.

A segunda categoria é ainda mais notável. José realiza muitas coisas. Ele dirige a casa de Potifar. Ele organiza a prisão. Ele interpreta os sonhos do mordomo e do padeiro. Mas, em uma sequência única de descrições, a Torá atribui explicitamente suas ações e seu sucesso a D-s.

Eis aqui José na casa de Potifar:

D-s estava com José e fez com que ele tivesse muito sucesso. Logo ele estava trabalhando na própria casa de seu mestre. Seu mestre percebeu que D-s estava com [José], e que D-s concedeu sucesso a tudo o que José fizesse (39:2-3).

Assim que [seu mestre] o colocou no comando de sua casa e de seus bens, D-s abençoou o Egípcio por causa de José. A bênção de D-s estava em tudo o que [o Egípcio] tinha, tanto na casa como no campo (39:5).

Eis José na prisão:

D-s estava com José, e Ele mostrou-lhe bondade, fazendo-o ganhar simpatia com o guardião do calabouço. Logo, o diretor tinha colocado todos os prisioneiros na masmorra sob o comando de José. [José] cuidou de tudo o que tinha que ser feito. O diretor não tinha que cuidar de coisa alguma que estivesse sob os cuidados de [José]. D-s estava com [José], e D-s lhe concedeu sucesso em tudo o que fazia (39:21-23).

Eis aqui José interpretando sonhos:

“Interpretar sonhos é coisa de D-s” – respondeu José. “Se você quiser, conte-me sobre [seus sonhos]” (40:8).

De nenhuma outra figura no Tanach isto é dito tão clara, consistente e repetidamente. José parece determinado, organizado e bem sucedido. E assim ele era percebido pelos outros. Mas, diz a Torá, não foi ele, mas D-s, o responsável tanto pelo que ele fez quanto pelo seu sucesso. Mesmo quando ele resiste ao assédio da esposa de Potifar, ele torna explícito que é D-s quem faz com o que ela queria fazer moralmente impossível: “Como eu poderia fazer um erro tão grande? Seria pecado diante de D-s!” (39:9).

O único ato claramente atribuído a ele ocorre no início da história, quando ele traz um “relatório negativo” sobre seus irmãos, os filhos das servas Bilá e Zilpá (39:2). Com exceção dessa parte, cada alteração de seu destino, constantemente em mudança, é o resultado do ato de outros, sejam eles humanos ou D-s (como para os sonhos de José – seriam eles uma inspiração divina ou um produto de sua própria imaginação? Isso é outra história que fica para outra ocasião).

É por isso que chama a atenção quando, no final da parashá anterior, José toma o destino em suas próprias mãos. Tendo dito ao mordomo-chefe que em três dias ele seria perdoado pelo faraó e voltaria à sua posição anterior, e não tendo nenhuma dúvida de que isso aconteceria, pede-lhe que defenda sua causa com o Faraó e assegure sua liberdade: “Quando as coisas ficarem bem para você, apenas lembre-se que eu estava com você. Faça-me um favor e diga algo sobre mim ao Faraó. Talvez você possa me tirar deste lugar” (40:14).

O que acontece? “O mordomo não se lembrou de José. Ele esqueceu José” (40:23). A duplicação do verbo é poderosa. Ele não se lembrou. Ele esqueceu. A única vez que José tenta ser o autor de sua própria história, ele falha. O fracasso é decisivo.

A tradição acrescentou um toque final ao drama. A parashá de Vayeshev termina com essas palavras, deixando-nos no ponto em que suas esperanças são destruídas. Ele se elevará à grandeza? Seus sonhos se tornarão realidade? A pergunta “O que acontece depois?” É intensa, e temos que esperar uma semana para saber.

O tempo passa e com a maior improbabilidade (o faraó também tem sonhos, e nenhum de seus magos ou homens sábios pôde interpretá-los – estranho, uma vez que a interpretação dos sonhos era uma especialidade dos antigos egípcios) entendemos a resposta. “Passaram-se dois anos completos”. Estas palavras com que nossa parashá começa são a chave. O que José previu, aconteceu. Ele saiu da prisão. Ele foi libertado. Mas dois anos se passaram.

Entre a tentativa e o resultado, algo interferiu. Esse é o significado do lapso de tempo. José planejou sua libertação, e ele foi libertado, mas não porque ele planejou. Sua própria tentativa terminou em fracasso. O mordomo esqueceu tudo sobre ele. Mas D-s não se esqueceu dele. D-s, não José, trouxe a sequência de eventos – especificamente os sonhos do Faraó – que levou à sua libertação.

O que queremos que aconteça, acontece, mas nem sempre quando esperamos, ou da maneira que esperamos, ou simplesmente porque queríamos que acontecesse. D-s é o coautor do roteiro de nossa vida, e às vezes – como aqui – Ele nos lembra disso quando nos faz esperar e quando nos surpreende.

Esse é o paradoxo da condição humana como entendida pelo judaísmo. Por um lado estamos livres. Nenhuma religião insistiu tão enfaticamente na liberdade e na responsabilidade humana. Adão e Eva eram livres para não pecar. Caim estava livre para não matar Abel. Nós inventamos desculpas para nossos fracassos – “não fui eu; foi culpa de outra pessoa; eu não pude evitar”. Mas essas são apenas desculpas. Não é assim. Somos livres e assumimos as responsabilidades.

No entanto, como Hamlet disse: “Há uma divindade que molda nossos destinos / desbastando-os de como desejamos”. D-s está intimamente envolvido em nossas vidas. Olhando para trás, no meio ou na idade avançada, podemos muitas vezes discernir, vagamente através da névoa do passado, que uma história estava tomando forma, um destino lentamente emergindo, guiado em parte por eventos fora do nosso controle. Não poderíamos prever que esse acidente, essa doença, esse fracasso, aquele encontro aparentemente casual, anos atrás, nos levariam nesse sentido. No entanto, agora, em retrospectiva, pode parecer como se fossemos uma peça de xadrez movida por uma mão invisível que sabia exatamente onde queria que estivéssemos.

Foi este ponto de vista, segundo Josephus, que distinguia os fariseus (os arquitetos do que chamamos de judaísmo rabínico) dos saduceus e dos essênios. Os saduceus negavam o destino. Eles diziam que D-s não intervém em nossas vidas. Os essênios atribuíam tudo ao destino. Eles acreditavam que tudo o que fazemos foi predestinado por D-s. Os fariseus acreditavam no destino e no livre-arbítrio. “Foi pela boa vontade de D-s que deveria acontecer uma fusão [da providência divina e da escolha humana] e que a vontade do homem com suas virtudes e vícios fosse admitida na câmara do conselho do destino” (Antiquities, xviii, 1,3).

Em parte alguma isso é mais claro do que na vida de José como descrita em Bereshit, e em nenhum lugar mais do que na sequência de eventos contada no final da parashá da semana passada e no início desta. Sem os atos de José – sua interpretação do sonho do mordomo e seu apelo à liberdade – ele não teria deixado a prisão. Mas sem a intervenção divina, na forma dos sonhos do Faraó, também nada teria acontecido.

Essa é a interação paradoxal do destino e do livre arbítrio. Como Rabi Akiva disse: “Tudo está previsto, mas a liberdade de escolha é dada” (Avot 3:15). Isaac Bashevis Singer colocou isso espirituosamente: “Temos que acreditar no livre-arbítrio: não temos escolha”. Nós e D-s somos coautores da história humana. Sem os nossos esforços, não podemos conseguir nada. Mas, sem a ajuda de D-s, também não podemos conseguir nada. O judaísmo encontrou uma maneira simples de resolver o paradoxo. Pelo mal que fazemos, assumimos a responsabilidade. Pelo bem que conseguimos, agradecemos a D-s. José é nosso mentor. Quando ele é forçado a agir com dureza, ele chora. Mas quando ele diz a seus irmãos sobre seu sucesso ele atribui a D-s. É assim que nós também devemos viver.

 

Texto original: “THE AUTHOR OF OUR LIVES” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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