NOACH

Posted on outubro 29, 2024

NOACH

Responsabilidade Individual e Coletiva

Certa vez, tive a oportunidade de perguntar ao escritor católico Paul Johnson o que mais o impressionou no judaísmo, durante o longo período que ele passou pesquisando-o para sua magistral História dos Judeus? Ele respondeu mais ou menos com estas palavras: “Houve, no curso da história, sociedades que enfatizaram o indivíduo – como o Ocidente secular hoje. E houve outras que deram peso ao coletivo – Rússia ou China comunistas, por exemplo.”

O judaísmo, ele continuou, era o exemplo mais bem-sucedido que ele conhecia que administrava o delicado equilíbrio entre ambos – dando peso igual à responsabilidade individual e coletiva. O judaísmo era uma religião de indivíduos fortes e comunidades fortes. Isso, ele disse, era muito raro e difícil, e constituía uma de nossas maiores conquistas.

Foi uma observação sábia e sutil. Sem saber, ele tinha, na verdade, parafraseado o aforismo de Hillel: “Se eu não for por mim mesmo, quem será (responsabilidade individual)? Mas se eu for somente por mim mesmo, o que sou eu (responsabilidade coletiva)?” Esse insight nos permite ver o argumento da Parshat Noach de uma forma que poderia não ter sido óbvia de outra forma.

A Parashá começa e termina com dois grandes eventos, o Dilúvio de um lado, Babel e sua torre do outro. À primeira vista, eles não têm nada em comum. As falhas da geração do Dilúvio são explícitas. “O mundo estava corrompido diante de D-s, e a terra estava cheia de violência. D-s viu o mundo, e ele estava corrompido. Toda a carne havia pervertido seu caminho na terra”.  (Gênesis 6:11-12) Maldade, violência, corrupção, perversão: esta é a linguagem do fracasso moral sistêmico.

Babel, por outro lado, parece quase idílica. “Toda a terra tinha uma só língua e uma fala comum”. (Gn 11:1) Os construtores estão empenhados na construção, não na destruição. Não está claro qual foi o pecado deles. No entanto, do ponto de vista da Torá, Babel representa outro sério erro, porque D-s dispersa todos os construtores e, imediatamente depois, convoca Avraham para começar um capítulo inteiramente novo na história religiosa da humanidade. Não há Dilúvio – D-s, em todo caso, jurou que nunca mais puniria a humanidade dessa forma. Como Ele disse:

“Nunca mais amaldiçoarei o solo por causa do homem, pois a inclinação do coração do homem é má desde a sua juventude. Nunca mais destruirei toda a vida como acabei de fazer.” (Gênesis 8:21)

Mas está claro que depois de Babel, D-s chega à conclusão de que deve haver outra maneira diferente para os humanos viverem.

Tanto o Dilúvio quanto a Torre de Babel estão enraizados em eventos históricos reais, mesmo que a narrativa não seja expressa na linguagem da história descritiva. A Mesopotâmia teve muitos mitos de dilúvio, todos os quais testemunham a memória de inundações desastrosas, especialmente nas terras planas do vale do Tigre-Eufrates (veja o Comentário de R. David Zvi Hoffman sobre Gênesis 6), que sugere que o Dilúvio pode ter sido limitado a centros de habitação humana, em vez de cobrir toda a Terra). Escavações em Shurrupak, Kish, Uruk e Ur – local de nascimento de Avraham – revelam evidências de depósitos de argila de inundação. Da mesma forma, a Torre de Babel foi uma realidade histórica. Heródoto fala do recinto sagrado da Babilônia, no centro do qual havia um zigurate ou torre de sete andares, com 300 pés de altura. Os restos de mais de trinta dessas torres foram descobertos, principalmente na Baixa Mesopotâmia, e muitas referências foram encontradas na literatura da época que falam de tais torres “alcançando o céu”.

No entanto, as histórias do Dilúvio e de Babel não são meramente históricas, porque a Torá não é história, mas “ensinamento, instrução”. Elas estão lá porque representam uma profunda verdade moral-social-política-espiritual sobre a situação humana como a Torá a vê. Elas representam, respectivamente, precisamente as falhas insinuadas por Paul Johnson. O Dilúvio nos conta o que acontece com a civilização quando os indivíduos governam e não há coletivo. Babel nos conta o que acontece quando o coletivo governa e os indivíduos são sacrificados a ele.

Foi Thomas Hobbes (1588-1679), o pensador que lançou as bases da política moderna em seu clássico Leviatã  (1651), que – sem se referir ao Dilúvio – deu a ele sua melhor interpretação. Antes que houvessem instituições políticas, disse Hobbes, os seres humanos estavam em um “estado de natureza”. Eles eram indivíduos, grupos, bandos. Sem um governante estável, um governo eficaz e leis executáveis, as pessoas estariam em um estado de caos permanente e violento – “uma guerra de todos os homens contra todos os homens” – enquanto competiam por recursos escassos. Haveria “medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”. Tais situações existem hoje em toda uma série de estados fracassados ​​ou em vias de fracasso. Essa é precisamente a descrição da Torá sobre a vida antes do Dilúvio. Quando não há um estado de direito para restringir os indivíduos, o mundo está cheio de violência.

Babel é o oposto, e agora temos evidências históricas importantes sobre o que exatamente significava a frase, “Toda a terra tinha uma língua e uma fala comum.” Isso pode não se referir à humanidade primitiva antes da divisão das línguas. De fato, no capítulo anterior a Torá já declarou, “Destes os povos marítimos se espalharam para suas terras em seus clãs dentro de suas nações, cada um com sua própria língua”.  (Gênesis 10:5) O Talmud Yerushalmi, Megillah 1:11, 71b, registra uma disputa entre R. Eliezer e R. Johanan, um dos quais afirma que a divisão da humanidade em setenta línguas ocorreu antes do dilúvio.

A referência parece ser à prática imperial dos neoassírios, de impor sua própria língua aos povos que conquistaram. Uma inscrição da época registra que Ashurbanipal II “fez a totalidade de todos os povos falarem uma só língua”. Uma inscrição cilíndrica de Sargon II diz: “Populações dos quatro cantos do mundo com línguas estranhas e fala incompatível… a quem tomei como espólio sob o comando de Ashur, meu senhor, pelo poder do meu cetro, fiz aceitar uma única voz”. Os neoassírios afirmaram sua supremacia insistindo que sua língua era a única a ser usada pelas nações e populações que derrotaram. Nessa leitura, Babel é uma crítica ao imperialismo.

Há até mesmo uma sugestão disto no paralelismo de linguagem entre os construtores de Babel e o faraó egípcio que escravizou os israelitas. Em Babel eles disseram: “Venham, [hava] construamos para nós uma cidade e uma torre… para que [pen] não sejamos espalhados sobre a face da terra”. (Gênesis 11:4) No Egito, o Faraó disse: “Vinde, [hava] tratemos com eles sabiamente, para que [pen] não aumentem tanto…”  (Ex. 1:10) O repetido “Vinde,… para que não” é pronunciado demais para ser acidental. Babel, como o Egito, representa um império que subjuga populações inteiras, atropelando suas identidades e liberdades.

Se for assim, teremos que reler toda a história de Babel de uma forma que a torne muito mais convincente. A sequência é esta: Gênesis 10  descreve a divisão da humanidade em setenta nações e setenta línguas. Gênesis 11  conta como um poder imperial conquistou nações menores e impôs sua língua e cultura a elas, contrariando diretamente o desejo de D-s de que os humanos respeitem a integridade de cada nação e de cada indivíduo. Quando no final da história de Babel D-s “confunde a língua” dos construtores, Ele não está criando um novo estado de coisas. Ele está, de fato, restaurando o antigo.

Interpretada assim, a história de Babel é uma crítica ao poder do coletivo quando ele esmaga a individualidade – a individualidade das setenta culturas descritas em Gênesis 10. (Uma nota pessoal: tive o privilégio de discursar para 2.000 líderes de todas as religiões do mundo na Cúpula da Paz do Milênio nas Nações Unidas em agosto de 2000. Descobriu-se que havia exatamente 70 tradições – cada uma com suas subdivisões e seitas – representadas. Então parece que ainda há setenta culturas básicas). Quando o império da lei é usado para suprimir indivíduos e suas línguas e tradições distintas, isso também está errado. O milagre do monoteísmo é que a unidade no Céu cria diversidade na Terra, e D-s nos pede (com condições óbvias) para respeitar essa diversidade.

Então o Dilúvio e a Torre de Babel, embora opostos polares, estão ligados, e toda a Parashá de Noach é um estudo brilhante da condição humana. Existem culturas individualistas e existem as coletivistas, e ambas falham, as primeiras porque levam à anarquia e à violência, as últimas porque levam à opressão e à tirania.

A percepção de Paul Johnson acaba sendo profunda e verdadeira. Após os dois grandes fracassos do Dilúvio e de Babel, Avraham foi chamado para criar uma nova forma de ordem social que daria igual honra ao indivíduo e ao coletivo, responsabilidade pessoal e bem comum. Esse continua sendo o presente especial dos judeus e do judaísmo para o mundo.

 

Texto original “Individual and collective responsibility” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l

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