NOACH

Posted on outubro 31, 2016

NOACH

Responsabilidade Individual e Coletiva

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Certa vez tive a oportunidade de perguntar ao escritor católico Paul Johnson o que o havia impactado mais sobre o judaísmo durante o longo período que passou a pesquisá-lo para sua magistral obra, A História dos Judeus. Ele respondeu com estas palavras: “Tem havido, ao longo da história, sociedades que enfatizam o indivíduo – como o Ocidente secular hoje em dia. E houve outros que colocaram peso no coletivo – a Rússia comunista ou a China, por exemplo”.

O Judaísmo, continuou ele, foi o exemplo mais bem sucedido que ele conheceu que conseguiu o delicado equilíbrio entre ambos – dando peso igual a responsabilidade individual e coletiva. O Judaísmo é uma religião de indivíduos fortes e comunidades fortes. Isso, segundo ele, é muito raro e difícil, e constituiu uma das nossas maiores conquistas.

Foi uma observação sábia e sutil. Sem saber, ele tinha efetivamente parafraseado um aforismo de Hillel: “Se eu não for por mim, quem será (responsabilidade individual)? Mas se eu sou só para mim, quem sou eu (responsabilidade coletiva)?”

Essa visão nos permite ver o argumento da parashá Noach de uma forma que poderia não ter sido óbvia de outro modo.

A parashá começa e termina com dois grandes eventos, o Dilúvio, por um lado, Babel e sua torre do outro. Superficialmente, esses eventos não têm nada em comum. Os erros da geração do Dilúvio são explícitos. “O mundo estava corrompido diante de D-s, e a terra estava cheia de violência. D-s viu o mundo, e ele estava corrompido. Toda a carne havia pervertido o seu caminho sobre a terra” (Gen. 6:11-12). A maldade, a violência, a corrupção, a perversão: essa é a linguagem do fracasso moral sistêmico.

Babel, pelo contrário, parece quase idílica. “Toda a terra tinha uma linguagem e um discurso comum” (11:1). Os construtores estão empenhados em construção, não em destruição. Esta longe de ser claro qual era seu pecado. No entanto, do ponto de vista da Torá, Babel representa outro rumo gravemente errado, porque imediatamente a seguir D-s convoca Abraham para começar um capítulo inteiramente novo na história religiosa da humanidade. Não há dilúvio – D-s tinha jurado que nunca mais iria punir a humanidade de tal maneira (“Nunca mais Vou amaldiçoar a terra por causa do homem, pois a inclinação do coração do homem é má desde a sua juventude, nunca mais Vou derrubar toda a vida como acabei de fazer”, 8:21). Mas é claro que, depois de Babel, D-s chega à conclusão de que deve haver uma maneira diferente para os seres humanos viverem.

Tanto o Dilúvio quanto a Torre de Babel estão enraizados em eventos históricos reais, mesmo se a narrativa não é redigida na linguagem da história descritiva. A Mesopotâmia teve muitos dilúvios, os quais atestam a memória de inundações desastrosas, especialmente nas terras planas do vale do Tigre-Eufrates (ver comentário de R. David Zvi Hoffman a Gênesis 6 [hebraico, 140], que sugere que o Dilúvio pode ter sido limitado aos centros de habitação humana, em vez de cobrir toda a terra). Escavações em Shurrupak, Kish, Uruk e Ur – local de nascimento de Abraham – revelam evidências de depósitos inundados de argila. Da mesma forma, a Torre de Babel era uma realidade histórica. Heródoto conta sobre o recinto sagrado da Babilônia, no centro da qual havia uma ziqqurat ou torre de sete andares, 300 pés de altura. Os restos de mais de trinta dessas torres foram descobertos, principalmente na baixa Mesopotâmia, e muitas referências foram encontradas na literatura da época que falavam dessas torres “alcançar o céu”.

No entanto, as histórias do dilúvio e Babel não são meramente históricas, porque a Torá não é história, mas “ensino, instrução”. Elas estão ali porque representam uma profunda verdade moral-político-social-espiritual sobre a situação humana como a Torá as vê. Elas representam, precisa e respectivamente, as falhas relatadas por Paul Johnson. A inundação nos diz o que acontece com a civilização quando os indivíduos governam e não há preocupação com o coletivo. Babel nos diz o que acontece quando há regras coletivas e as individuais são sacrificadas.

Foi Thomas Hobbes (1588-1679), o pensador que lançou as bases da política moderna em seu clássico Leviatã (1651), que – sem se referir ao dilúvio – deu-lhe a sua melhor interpretação. Antes de haver instituições políticas, disse Hobbes, os seres humanos estavam em um “estado de natureza”. Havia indivíduos, blocos, bandos. Na falta de um governante estável, um governo eficaz e leis aplicáveis, as pessoas estariam em um estado de caos permanente e violento – “uma guerra de todos contra todos” – em disputa por recursos escassos. Haveria “medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre, desagradável, brutal e curta”. Tais situações existem hoje em toda uma série de estados falidos ou em desagregação. Essa é precisamente a descrição da Torá sobre a vida antes do dilúvio. Quando não há Estado de Direito para restringir indivíduos, o mundo fica cheio de violência.

Babel é o oposto, e agora temos evidência histórica importante quanto a exatamente o que significa a frase, “toda a terra tinha uma linguagem e um discurso comum”. Isso não pode referir-se a humanidade primal antes da divisão das línguas. De fato, no capítulo anterior a Torá já declarou, “Estes povos marítimos espalharam-se em suas terras, em seus clãs dentro de suas nações, cada um com sua própria língua” (Gen. 10:50). O Talmud Yerushalmi, Meguilá 1:11 71b, registra uma disputa entre R. Eliezer e R. Johanan, onde um deles afirma que a divisão da humanidade em setenta línguas ocorreu antes do dilúvio.

A referência parece ser a prática imperial dos neo-assírios, de impor sua própria língua sobre os povos que conquistavam. Uma inscrição do tempo registra que Assurbanipal II “fez a totalidade dos povos falarem a mesma língua”. Uma inscrição de Sargão II diz: “As populações dos quatro cantos do mundo com línguas estranhas e fala incompatíveis… que eu tinha tomado como espólio ao comando de Ashur meu senhor, pela força do meu cetro, eu fiz aceitar uma só voz”. Os neo-assírios afirmaram sua supremacia, insistindo que sua língua fosse a única a ser utilizada pelas nações e populações que foram derrotadas. Nessa leitura, Babel é uma crítica ao imperialismo.

Existe até mesmo uma sugestão disso no paralelismo da linguagem entre os construtores de Babel e o faraó egípcio que escravizou os israelitas. Em Babel eles disseram: “Venham, [hava] edifiquemos uma cidade e uma torre… para que não [hava] sejamos espalhados sobre a face da terra” (Gen. 11:4). No Egito o Faraó disse: “Venham, [hava] usemos de astúcia para com eles, para que eles não [hava] aumentem muito…” (Ex. 1:10). A repetição de “Venham… para que não” também é pronunciada para ser acidental. Babel, como o Egito, representa um império que subjuga populações inteiras, passando por cima de suas identidades e liberdades.

Se é assim, vamos ter de voltar a ler a história inteira de Babel de uma forma que a torne muito mais convincente. A sequência é a seguinte: Gênesis 10 descreve a divisão da humanidade em setenta nações e setenta línguas. Gênesis 11 conta como um poder imperial conquistou nações menores e impôs sua língua e cultura sobre eles, portanto, infringindo diretamente o desejo de D-s que os seres humanos devem respeitar a integridade de cada nação e de cada indivíduo. Quando, no final da história de Babel, D-s “confunde a língua” dos construtores, Ele não está criando um novo estado de coisas, mas a restauração do antigo.

Interpretado dessa forma, a história de Babel é uma crítica ao poder do coletivo quando se esmaga a individualidade – a individualidade das setenta culturas descritas em Gênesis 10 (Uma nota pessoal: eu tive o privilégio de palestrar para 2.000 líderes de todas as religiões do mundo na Cúpula da Paz do Milênio das Nações Unidas em agosto de 2000. Descobriu-se que havia exatamente 70 tradições – cada uma com suas subdivisões e seitas – representadas. Assim, parece que ainda existem setenta culturas básicas). Quando o Estado de direito é usado para suprimir os indivíduos e as suas línguas e tradições distintas, isso também é um erro. O milagre do monoteísmo é que a Unidade no Céu cria diversidade na terra, e D-s nos pede (com condições óbvias) para respeitar essa diversidade.

Assim, o diluvio e a Torre de Babel, embora polos opostos, estão ligados, e toda a parashá de Noach é um estudo brilhante sobre a condição humana. Há culturas individualistas e coletivistas, e ambas falham, as primeiras porque levam à anarquia e violência, as últimas porque levam a opressão e tirania. Então o insight de Paul Johnson acaba por ser profundo e verdadeiro. Após as duas grandes falhas do dilúvio e de Babel, Abraão foi chamado para criar uma nova forma de ordem social que daria igualdade de respeito ao indivíduo e ao coletivo, responsabilidade pessoal e coletiva do bem comum. Isso continua a ser o dom especial de judeus e do Judaísmo para o mundo.

Texto original: “INDIVIDUAL AND COLLECTIVE RESPONSIBILITY” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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