PINCHÁS

Posted on julho 26, 2016

PINCHÁS

A Decepção de Moisés

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Os sábios descobriram uma história muito comovente oculta sob a superfície da parashá Pinchás. Moisés, tendo visto seus irmãos morrerem, sabia que seu tempo na terra estava chegando ao fim. Ele orou a D-s para nomear um sucessor: “Que o Senhor, D-s dos espíritos de toda a humanidade, ponha um homem sobre esta comunidade para sair e entrar perante eles, aquele que irá levá-los para fora e trazê-los para dentro, de modo que o povo do Senhor não seja como ovelhas sem pastor”.

Há, porém, uma pergunta óbvia. Porque esse episódio aparece aqui? Ele certamente deveria ter sido colocado sete capítulos antes, no ponto em que D-s disse a Moisés e Aarão que eles iriam morrer sem entrar na terra. Ou logo depois de lermos sobre a morte de Aarão.

Os sábios detectaram duas pistas para a história nas entrelinhas da história. A primeira é que ela aparece imediatamente após o episódio em que as filhas de Tzelofchad buscaram e obtiveram participação na terra de seu pai. Foi isso que desencadeou o pedido de Moisés. Um Midrash explica:

Qual foi a razão para Moisés fazer este pedido depois de declarar a ordem da herança? Simplesmente, quando as filhas de Tzelofchad herdaram de seu pai, Moisés raciocinou: é a hora certa para eu fazer o meu próprio pedido. Se filhas herdam, é certo que meus filhos devem herdar a minha glória.

A segunda pista encontra-se nas palavras de D-s a Moisés, imediatamente antes dele fazer o pedido para a nomeação de um sucessor:

Então o Senhor disse a Moisés: “Sobe neste monte de Abarim e veja a terra que Eu dei aos israelitas. Depois de ter visto isso, você também vai se juntar ao teu povo, assim como foi com seu irmão Aarão …”.

As palavras em itálico são aparentemente redundantes. D-s estava dizendo a Moisés que ele iria morrer em breve. Por que Ele precisa adicionar, “como o seu irmão Aarão”? Sobre isso o Midrash diz: isso nos ensina que Moisés queria morrer da mesma maneira que Aarão. O Ktav Sofer explica: Aarão teve o privilégio de saber que seus filhos seguiriam seus passos. Elazar, seu filho, foi nomeado como Sumo Sacerdote ainda em seu tempo de vida. Até hoje os Cohanim são descendentes diretos de Aarão. Moises igualmente ansiava por ver um de seus filhos, Gerson ou Eliezer, tomar seu lugar como líder do povo. Não era para ser. Essa é a história por debaixo da história.

Houve uma consequência. No livro de Juízes lemos sobre um homem chamado Micá que estabeleceu um culto idólatra no território de Efraim e contratou um levita para oficiar no santuário. Alguns homens da tribo de Dan, movendo-se para o norte para encontrar a terra mais adequada para eles, vieram à casa de Micá e apreenderam ambos os artefatos idólatras e o levita, que eles persuadiram a se tornar seu sacerdote, dizendo: “Venha conosco, e seja nosso sacerdote. Não é melhor que você sirva a uma tribo e um clã em Israel como sacerdote em vez de apenas a um homem?”

Somente no final da história nos é dito o nome do sacerdote idólatra: Jonathan, filho de Gerson, filho de Moisés. Nos nossos textos a letra nun foi inserida dentro destes nomes, para que possa ser lido como Menashê ao invés de Moisés. No entanto a letra, de forma não usual, está escrita acima da linha, como uma inscrição. O Talmud diz que o nun foi adicionado para evitar manchar o nome do próprio Moisés, ao revelar que o neto tinha se tornado um sacerdote idólatra.

Como é que vamos explicar o aparente fracasso de Moisés com seus próprios filhos e netos? Os sábios sugeriram que tinha a ver com o fato que Moisés viveu durante anos em Midian com seu sogro Jetró, que na época era um sacerdote idólatra. Algo da influência Midianita reapareceu em Jonathan três gerações mais tarde.

Outra possibilidade é que há indícios aqui e ali que o próprio Moisés estava tão preocupado com sua liderança que simplesmente não tinha tempo para atender às necessidades espirituais de seus filhos. Por exemplo, quando Jetró veio visitar seu genro após a divisão do Mar Vermelho, ele trouxe com ele a mulher de Moisés, Tziporá, e seus dois filhos. Eles não tinham estado com Moises até então.

Os rabinos foram mais longe em especular sobre a razão da própria irmã e irmão de Moisés, Aarão e Miriam terem falado negativamente sobre ele. Eles estavam se referindo, disseram os sábios, ao fato que Moisés tinha se separado fisicamente de sua esposa. Ele tinha feito isso porque a natureza da sua função era tal que ele precisava estar em um estado de pureza o tempo todo, uma vez que a qualquer momento ele poderia ter que falar ou ser chamado por D-s. Os irmãos estavam, em resumo, queixando-se de que ele estava negligenciando sua própria família.

Uma terceira explicação tem a ver com a natureza da própria liderança. Autoridade burocrática – autoridade em virtude do cargo- pode ser transmitida de pai para filho.  Monarquia é assim. Assim também é a aristocracia. Assim também são algumas formas de liderança religiosa, como o sacerdócio. Mas a autoridade carismática – em virtude de qualidades pessoais – nunca é entregue automaticamente através das gerações. Moisés era um profeta, e profecia depende quase inteiramente de qualidades pessoais. É por isso que, embora a realeza e o sacerdócio no judaísmo foram prerrogativas masculinas, profecia não foi. Havia profetisas, bem como profetas. A este respeito Moisés não era incomum. Poucos líderes carismáticos têm filhos que também são líderes carismáticos.

Uma quarta explicação oferecida pelos sábios foi bem diferente. Em princípio, D-s não queria que a coroa da Torá passasse de pai para filho em sucessão dinástica. A realeza e o sacerdócio sim. Mas a coroa da Torá, segundo eles, pertence a qualquer um que escolhe segurá-la e assumir as suas responsabilidades. “Moisés nos deu a Torá como herança da congregação de Jacob”, significando que ela pertence a todos nós, não apenas a uma elite. O Talmud explica:

Tenha cuidado para não negligenciar os filhos dos pobres, porque a partir deles a Torá segue adiante… Por que não é usual para os estudiosos gerarem filhos que são estudiosos?

  1. Joseph disse: para que não seja dito que a Torá é a sua herança.
  2. Shisha, filho de R. Idi disse: para que eles não sejam arrogantes para com a comunidade.

Mar Zutra disse: porque eles agem com as mãos elevadas contra a comunidade.

  1. Ashi disse: porque eles chamam as pessoas de burros.

Rabina disse: porque eles não proferem inicialmente uma bênção sobre a Torá.

Em outras palavras, a “coroa da Torá” não foi deliberadamente hereditária porque poderia se tornar uma prerrogativa dos ricos. Ou porque os filhos dos grandes estudiosos poderiam entender que sua herança estaria garantida. Ou porque isso poderia levar à arrogância e desprezo para com os outros. Ou porque a própria aprendizagem poderia se tornar uma mera busca intelectual ao invés de um exercício espiritual (“eles não proferem inicialmente uma bênção sobre a Torá”).

No entanto, há um quinto fator digno de consideração. Algumas das maiores figuras da história judaica não tiveram sucesso com todos os seus filhos. Abraão foi pai de Ismael. Isaac e Rebeca deram à luz a Esaú. Todos os doze filhos de Jacob ficaram dentro da casa paterna, mas três deles – Reuben, Shimon e Levi – decepcionaram seu pai. De Shimon e Levi ele disse: “Que a minha alma não entre no seu território; que meu espírito não se junte na sua reunião” (Gen. 49:6). Em face disso, ele estava dissociando-se deles (1). Apesar disso, os três grandes líderes dos israelitas ao longo do êxodo – Moisés, Aarão e Miriam – eram todos filhos de Levi.

Salomão gerou Rehoboam, cuja desastrosa liderança dividiu o reino. Ezequias, um dos maiores reis de Judá, foi o pai de Menashê, um dos piores. Nem todos os pais têm sucesso com todos os seus filhos todas as vezes. Como poderia ser de outra forma? Cada um de nós possui liberdade. Nós somos cada um, até certo ponto, aqueles que escolhemos nos tornar. Nem os genes, nem a criação, podem garantir que nos tornemos a pessoa que nossos pais querem que sejamos. Também não é correto que os pais queiram impor sua vontade sobre os filhos que tenham atingido a idade madura.

Frequentemente isto é para o melhor. Abraão não se tornou um idólatra como seu pai Terach. Menashê, o clássico rei do mal, era o avô de Josias, um dos melhores. Esses são fatos importantes. O judaísmo coloca paternidade, educação e o lar no coração de seus valores. Um dos nossos primeiros deveres é garantir que nossos filhos conheçam e venham a amar a nossa herança religiosa. Mas às vezes nós falhamos. Os filhos podem seguir seu próprio caminho, que não é nosso. Se isso nos acontecer, não devemos ficar paralisados de culpa. Nem todo mundo conseguiu com todos os seus filhos, nem mesmo Abraão ou Moisés ou David ou Salomão. Nem mesmo o próprio D-s. “Criei filhos e os elevei, mas eles se rebelaram contra Mim” (Is. 1:2).

Duas coisas resgataram a história de Moisés e seus filhos da tragédia. O livro de Crônicas (1 Cron. 23:16, 24:20) se refere ao filho de Gerson não como Jonathan, mas como Shevual ou Shuvael, que os rabinos traduziram como “voltar para D-s”. Em outras palavras, Jonathan, ao final, se arrependeu de sua idolatria e tornou-se novamente um judeu fiel. Seja lá quanto um filho tenha se afastado, ele ou ela pode voltar ao longo do tempo.

O outro resgate está insinuado na genealogia em Números 3. Começa com as palavras: “Estes são os filhos de Aarão e Moisés”, mas continua a listar somente os filhos de Aarão. Sobre isso os rabinos dizem que porque Moisés ensinou aos filhos de Aarão eles foram considerados como seus próprios filhos. Em geral, “discípulos” são chamados de “filhos”.

Nem todos podem ter filhos. Mesmo se tivermos, podemos, apesar de nossos melhores esforços, encontrá-los, pelo menos temporariamente, seguindo um caminho diferente. Mas todos nós podemos deixar algum legado que vai continuar vivendo. Alguns fazem isso seguindo o exemplo de Moisés: ensinando, facilitando ou incentivando a próxima geração. Alguns o fazem em conformidade com a declaração rabínica que “a real descendência dos justos são boas ações” (2).

Quando nossos filhos seguem nosso caminho devemos ser gratos. Quando eles nos superam devemos agradecer muito a D-s. E quando eles escolhem outro caminho, devemos ser pacientes, sabendo que o maior judeu de todos os tempos teve a mesma experiência com um de seus netos. E nunca devemos desistir da esperança. O neto de Moisés retornou. Quase nas últimas palavras do último dos profetas, Malaquias previu um tempo quando D-s “irá voltar os corações dos pais aos filhos, e o coração dos filhos aos seus pais”. O separado vai se reunir na fé e no amor.

 

NOTAS:
1) Note, no entanto, que Rashi interpreta a maldição como limitada especificamente para Zimri, descendente de Shimon, e Korach, descendente de Levi.
2) Rashi sobre Gen. 6:9.

 

Texto original: “MOSES’ DISAPPOINTMENT” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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