SHELACH

Posted on junho 28, 2016

SHELACH

Dois Tipos de Medo

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Um dos mais poderosos discursos que já ouvi foi feito pelo Rebe de Lubavitch, Rabi Menachem Mendel Schneerson, sobre a parashá desta semana: a história dos espiões. Para mim, foi nada menos do que uma transformação de vida.

Ele fez as perguntas óbvias. Como pode ser que dez dos espiões voltaram de sua missão com um relatório desmoralizante, derrotista? Como eles poderiam dizer, “nós não podemos ganhar, as pessoas são mais fortes do que nós, suas cidades são bem fortificadas, eles são gigantes e nós somos gafanhotos”?

Eles tinham visto com seus próprios olhos como D-s havia enviado uma série de pragas que colocou o Egito de joelhos, o império mais forte e de mais longa duração dentre todos os impérios do mundo antigo. Eles tinham visto o exército egípcio com a sua tecnologia militar de ponta, a carruagem puxada por cavalos, se afogar no Mar Vermelho enquanto os israelitas passaram por ela em terra seca. O Egito era muito mais forte do que os cananeus, feriseus, jebuseus e outros reinos menores que teriam de enfrentar para conquistar a terra. E isso não era uma memória antiga. Tinha acontecido não mais do que um ano antes.

E mais, eles já sabiam que, longe de ser gigantes confrontando gafanhotos, os povos da terra estavam aterrorizados com os israelitas. Eles tinham dito isso a si mesmos no percurso ao cantar a Canção do Mar:

Os povos ouviram; eles tremeram
Os habitantes da Filisteia foram tomados por aflição
Os chefes de Edom estão agora perturbados
Tremores dominaram os líderes de Moab
Todos os habitantes de Canaã se abrandaram
Terror e pavor caíram sobre eles;
Por causa da grandeza do Seu braço, eles ainda permanecem como pedra (Ex. 15:14-16).

Os povos da terra tinham medo dos israelitas. Por que então os espiões tiveram medo deles?

Além disso, continuou o Rebe, os espiões não foram pessoas escolhidas aleatoriamente entre a população. A Torá declara que eram “todos eles homens que eram cabeças do povo de Israel”. Eles eram líderes. Eles não eram pessoas que se rendiam facilmente ao medo.

As perguntas são objetivas, mas a resposta que o Rebe deu foi totalmente inesperada. Os espiões não tiveram medo do fracasso, disse ele. Eles estavam com medo do sucesso.

Qual era a sua situação até agora? Eles estavam comendo maná do céu. Eles estavam bebendo água de um poço milagroso. Eles foram cercados por Nuvens de Glória. Eles estavam acampados em torno do Santuário. Eles estavam em contato contínuo com a Shechiná. Nunca um povo havia vivido tão perto de D-s.

Qual seria a sua situação, se eles entrassem na terra? Eles teriam que lutar batalhas, manter um exército, criar uma economia, cultivar a terra, se preocupar se haveria chuva suficiente para produzir uma colheita, e todas as outras milhares de distrações resultantes de se viver no mundo. O que aconteceria com sua proximidade com D-s? Eles estariam preocupados com conquistas mundanas e materiais. Aqui eles poderiam passar a vida inteira estudando Torá, iluminados pelo esplendor da Divindade. Lá eles não seriam mais do que uma nação a mais em um mundo de nações, com o mesmo tipo de problemas econômicos, sociais e políticos com os quais cada nação tem que lidar.

Os espiões não tiveram medo do fracasso. Eles estavam com medo do sucesso. Seu erro foi o erro de homens muito sagrados. Eles queriam passar suas vidas na maior proximidade possível a D-s. O que eles não entenderam é que D-s procura, conforme diz a frase chassídica, “uma morada nos mundos inferiores”. Uma das grandes diferenças entre o judaísmo e outras religiões é que, enquanto outros procuram elevar as pessoas para o céu, o judaísmo visa trazer o céu para a terra.

Grande parte da Torá é sobre coisas não convencionalmente vistas como sendo religiosas de forma alguma: as relações de trabalho, agricultura, provisões para o bem-estar, empréstimos e dívidas, propriedade da terra e assim por diante. Não é difícil ter uma experiência religiosa intensa no deserto, ou em um retiro monástico, ou em um ashram. A maioria das religiões tem lugares sagrados e pessoas sagradas que vivem distantes do estresse e das tensões da vida cotidiana. Houve seita judaica assim em Qumran, que tomamos conhecimento através dos Manuscritos do Mar Morto, e certamente tiveram outras. Sobre isso não há nada de incomum.

Mas esse não era o projeto judaico, a missão judaica. D-s queria que os israelitas criassem um modelo de sociedade onde seres humanos não fossem tratados como escravos, onde governantes não fossem adorados como semideuses, onde a dignidade humana fosse respeitada, onde a legislação fosse administrada de forma imparcial para ricos e pobres, onde ninguém fosse destituído, ninguém fosse abandonado ao isolamento, ninguém estivesse acima da lei, e que todas as esferas da vida tivessem um compromisso com a moralidade. Isso requer uma sociedade, e uma sociedade requer uma terra. Isso requer uma economia, um exército, campos e rebanhos, trabalho e empresas. Tudo isso, no judaísmo, tornam-se modos de trazer a Shechiná para os espaços compartilhados da nossa vida coletiva.

Os espiões temiam o sucesso, não a falha. Foi o erro de homens profundamente religiosos. Mas foi um erro.

Esse é o desafio espiritual do maior evento em dois mil anos de história judaica: o retorno dos judeus à terra e Estado de Israel. Talvez nunca antes tenha havido um movimento político acompanhado por tantos sonhos como o sionismo. Para alguns, foi a realização de visões proféticas; para outros, a realização secular de pessoas que decidiram tomar a história em suas próprias mãos. Alguns o viram como uma reconexão – tipo Tolstoi – com a terra e o solo; outros, uma afirmação nietzschiana de vontade e poder. Alguns o viram como um refúgio contra o antissemitismo europeu, outros como o primeiro florescimento da redenção messiânica. Cada pensador sionista tinha a sua versão da utopia, e num nível notável tudo veio a acontecer.

Mas Israel foi sempre algo mais simples e mais básico. Os judeus têm conhecido praticamente todos os destinos e circunstâncias entre a tragédia e o triunfo nos quase quatro mil anos da sua história, e eles viveram em quase todas as terras do planeta. Mas em todo esse tempo nunca houve um lugar onde pudessem realizar o que eles foram chamados a fazer desde o alvorecer da sua história: construir sua própria sociedade de acordo com os seus ideais mais elevados, uma sociedade que seria diferente de seus vizinhos e se tornarem um modelo de como uma sociedade, uma economia, um sistema educacional e a administração do bem-estar poderiam tornar-se veículos para trazer a presença divina para o mundo.

Não é difícil encontrar D-s no deserto, se você não come a partir do trabalho de suas mãos e se você confia em D-s para lutar suas batalhas por você. Dez dos espiões, de acordo com o Rebe, procuraram viver assim para sempre. Mas isso, sugeriu o Rebe, não é o que D-s quer de nós. Ele quer que nos envolvamos com o mundo. Ele quer que curemos os doentes, alimentemos os famintos, lutemos contra a injustiça com toda a força da lei, e combatamos a ignorância com a educação universal. Ele quer que mostremos o que é amar o próximo e o estrangeiro, e dizer, com Rabi Akiva, “Amada é a humanidade, porque cada um de nós foi criado à imagem de D-s”.

A espiritualidade judaica vive no meio da própria vida, a vida da sociedade e suas instituições. Para criar isso, temos que lutar com dois tipos de medo: medo do fracasso, e medo do sucesso. O medo do fracasso é comum; o medo do sucesso é mais raro, mas não menos debilitante. Ambos vêm da relutância em assumir riscos. A fé é a coragem de assumir riscos. Não é certeza; é a capacidade de viver com a incerteza. É a capacidade de ouvir D-s nos dizendo, como Ele disse a Abraão: “Ande na minha frente” (Gen. 17:1).

O Rebe viveu o que ele ensinou. Ele enviou emissários para praticamente todos os lugares na terra onde havia judeus. Ao fazer isso, ele transformou a vida judaica. Ele sabia que estava pedindo a seus seguidores para assumir riscos, ao irem a lugares onde todo o ambiente seria um desafio em muitos aspectos, mas ele tinha fé neles e em D-s e na missão judaica, cujo lugar é no ambiente público onde compartilhamos nossa fé com os outros e o fazemos de maneiras profundamente práticas.

É um desafio sair do deserto e ir para o mundo com todas as suas provações e tentações, mas é onde D-s quer que estejamos, trazendo Seu espírito para a forma como conduzimos uma economia, um sistema de bem-estar, um judiciário, um sistema de saúde e um exército, curando algumas das feridas do mundo e trazendo, para locais muitas vezes envoltos em trevas, fragmentos de luz Divina.

 

Texto original: “TWO KINDS OF FEAR” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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