SHEMINI

Posted on abril 20, 2017

SHEMINI

A Luz da Santidade

O grande momento chegou. Por sete dias – começando no dia 23 Adar – Moisés tinha consagrado Aarão e os sacerdotes. Agora, em Rosh Chodesh Nissan, chegou a hora de Aarão começar seu serviço, sendo o representante religioso do povo em nome de D-s: E foi no oitavo dia que Moisés chamou a Aarão e a seus filhos, e aos anciãos de Israel, e disse a Aarão: Tomai um novilho para oferta pelo pecado, e um carneiro sem defeito para holocausto, e oferece-os perante o Senhor.

Qual é o significado do “oitavo dia”, a frase que dá nome a nossa parashá? Para entender o simbolismo profundo do número oito, devemos voltar à própria criação.

No começo, quando tudo era “devastado e vazio”, D-s criou o universo. Dia a dia, o mundo se desenrolava. Primeiro, havia os domínios: luz e escuridão, as águas superiores e inferiores, mar e terra seca. Depois, havia os objetos que enchiam os domínios: o sol, a lua e as estrelas, depois os peixes e os pássaros, e finalmente os animais terrestres, culminando na humanidade. Então veio Shabat, o sétimo dia, o dia dos limites e da santidade, no qual primeiro D-s e depois Seu povo da aliança, descansaram para mostrar que há limites para a criação (“Por que o nome de D-s é Sha’dai? Porque Ele disse ao Universo, Basta – sheamar leolam dai). Há uma integridade à natureza. Tudo tem seu próprio lugar, seu nicho ecológico, sua função e dignidade na totalidade do ser. Santidade consiste em respeitar fronteiras e honrar a ordem natural.

Então, os sete dias. Mas e o oitavo dia – o dia depois da criação? Para isso, precisamos recorrer à Torá she-be’al pê, a tradição oral.

No sexto dia, D-s fez Sua decisão mais fatídica: criar um ser que, como Ele próprio, tem a capacidade de criar. Há uma distinção reconhecidamente fundamental entre a criatividade humana (“algo do algo”) e a criatividade Divina (“algo do nada”). É por isso que os seres humanos são a “imagem de D-s”, mas não deuses – como argumentou Nietzsche.

Ainda assim, a capacidade de criar anda de mãos dadas com a capacidade de destruir. Não pode haver um sem o outro. Cada nova tecnologia pode ser usada para curar ou prejudicar. Todo poder pode ser transformado em bom ou mau. É por isso que, ao contrário de todos os outros elementos da criação, a Torá prefacia o fazer do homem com uma declaração contemplativa – “Façamos…” – como se quisesse sinalizar o risco implícito na criação de um ser com o poder da fala, da imaginação e do livre arbítrio: a única forma de vida capaz de desobedecer a D-s e ameaçar a ordem e o ordenamento da natureza.

O perigo torna-se imediatamente claro. D-s diz ao primeiro homem que não coma do fruto de uma árvore. A natureza da árvore é irrelevante; o que importa é a sua função simbólica. Representa o fato de que a criação tem limites – o mais importante é o limite entre o permitido e o proibido. É por isso que tinha que haver, mesmo no paraíso, algo que era proibido. Quando os dois primeiros seres humanos comeram do fruto proibido, a harmonia essencial entre o homem e a natureza foi quebrada. A humanidade perdeu sua inocência. Pela primeira vez, a natureza (o mundo que encontramos) e a cultura (o mundo que fazemos) entraram em conflito. O resultado foi o paraíso perdido.

Os Sábios ficaram intrigados com a cronologia da narrativa. Segundo eles, todo o drama da criação e da desobediência de Adão e Eva aconteceu no sexto dia. Naquele dia, eles foram criados, eles foram comandados sobre a árvore, eles transgrediram o comando e foram condenados ao exílio. Eles não somente foram condenados a deixar o jardim. Como o dia chegara ao seu fim e a noite começou a cair, eles também experimentaram a escuridão pela primeira vez.

Como compaixão, D-s permitiu-lhes uma suspensão da sentença. Eles receberam um dia extra no Éden – qual seja, no Shabat. Durante todo aquele dia, o sol não se pôs. Como também chegou ao fim, D-s mostrou aos primeiros seres humanos como fazer a luz: Com a saída do Shabat, a luz celestial começou a desaparecer. Adão temia que a serpente o atacasse na escuridão. Por isso D-s iluminou a sua compreensão, e ele aprendeu a esfregar duas pedras uma contra a outra e a produzir luz para as suas necessidades.

Isso, de acordo com os Sábios, é a razão pela qual acendemos uma vela de havdalá no final do Shabat para inaugurar a nova semana.

Há, em outras palavras, uma diferença fundamental entre a luz do primeiro dia (“E D-s disse: Que haja luz…”) e a do oitavo dia. A luz do primeiro dia é a iluminação que D-s faz. A luz do oitavo dia é a iluminação que D-s nos ensina a fazer. Ela simboliza nossa “parceria com D-s na obra da criação”. Não há imagem mais bela do que esta de como D-s nos capacita a nos unir a Ele para trazer luz ao mundo. No Shabat lembramo-nos da criação de D-s. No oitavo dia (motsaê Shabat) celebramos nossa criatividade como imagem e parceiros de D-s.

Para compreender toda a profundidade do que os sábios estavam dizendo, é necessário voltar a um dos grandes mitos do mundo antigo: a história de Prometeu. Para os gregos, os deuses eram essencialmente hostis à humanidade. Zeus queria manter a arte de fazer fogo secreta, mas Prometeu roubou uma faísca e ensinou os homens a fazê-lo. Uma vez que o roubo foi descoberto, Zeus puniu-o, acorrentando-o a uma rocha, com uma águia picando seu fígado.

Nesse contexto, podemos ver o caráter revolucionário da fé judaica. Acreditamos que D-s quer que os seres humanos exerçam poder: responsavelmente, criativamente e dentro dos limites estabelecidos pela integridade da natureza. O relato rabínico de como D-s ensinou Adão e Eva o segredo de fazer fogo é exatamente o oposto da história de Prometeu. D-s procura conferir dignidade aos seres que Ele fez à Sua imagem como um ato de amor. Ele não esconde de nós os segredos do universo. Ele não procura manter a humanidade num estado de ignorância ou dependência. O D-s criativo nos capacita a ser criativos e começa ensinando-nos como sê-lo. Ele quer que sejamos guardiães do mundo que ele confiou a nós. Esse é o significado do oitavo dia. É a contrapartida humana do primeiro dia da criação.

Compreendemos agora o significado simbólico do oitavo dia em relação ao Tabernáculo. Como observamos em outro lugar, os paralelos linguísticos na Torá mostram que a construção do Mishkan no deserto reflete a criação Divina do mundo. O Tabernáculo foi concebido para ser um universo em miniatura, construído por seres humanos. Assim como D-s fez a terra como um lar para a humanidade, assim os israelitas no deserto construíram o Tabernáculo como um lar simbólico para D-s. Era seu ato de criação.

Então por isso teve que começar no oitavo dia, assim como Adão e Eva começaram seu esforço criativo no oitavo dia. Assim como D-s lhes mostrou como fazer a luz naquele momento; muitos séculos mais tarde, Ele ensinou aos israelitas como fazer um espaço para a presença Divina para que eles também fossem acompanhados pela luz – a luz de D-s, sob a forma do fogo que consumia os Sacrifícios, e a luz da menorá. Se o primeiro dia representa a criação Divina, o oitavo dia significa a criação humana sob a tutela e soberania de D-s.

Podemos agora também compreender o significado do outro tema principal de Sheminí, qual seja, a lista de alimentos permitidos e proibidos.

Muitas explicações foram dadas sobre as leis dietéticas. Alguns as veem como regras de higiene. Animais potencialmente enfermos devem ser evitados. Outros as veem como uma disciplina de autocontenção. Nas palavras de Rav: “os mandamentos foram dados para refinar os seres humanos”. Outros ainda veem nelas um conjunto de leis que não têm lógica a não ser pelo fato de que foram dadas por D-s. Nesta visão, o sagrado – nosso vislumbre do Infinito – inevitavelmente transcende nossa compreensão.

Entretanto, a explicação mais simples e mais profunda é aquela dada, em Sheminí, pela própria Torá:

Eu sou o Senhor vosso D-s; Santificai-vos e sejam santos, porque eu sou santo… Eu sou o Senhor que vos tirei do Egito para ser vosso D-s; Portanto, sejam santos, porque Eu Sou Santo… Você deve distinguir [le-havdil] entre o impuro e o puro, entre as criaturas vivas que podem ser comidas e as que não podem ser comidas.

Uma declaração semelhante aparece em Vaykrá 20:24-26:

Eu sou o Senhor teu D-s, que te separou [Hivdalti] das nações. Você deve, portanto, fazer uma distinção [ve-hivdaltem] entre os animais puros e impuros e entre as aves impuras e puras. Não vos contamineis com nenhum animal, nem com pássaro, nem com qualquer coisa que se mova pela terra, os quais Eu separei [hivdalti] como impuros para vós. Vós sereis santos para mim, porque Eu, o Senhor, Sou Santo, e vos separei [va-avdil] das nações para serem Meus”.

As palavras-chave são “santo” (que aparece sete vezes nessas duas passagens) e le-havdil, “distinguir” (que aparece cinco vezes).

Ser santo é fazer distinções, reconhecer e honrar a ordem divina da criação. Originalmente, de acordo com a Torá, os seres humanos (e animais) deveriam ser vegetarianos (“Eu vos dou todas as plantas que dão semente na face da terra e toda árvore que tem fruto com sementes nela; elas serão comida para vocês”). Depois do Dilúvio, permitiu-se que a humanidade comesse carne, com exceção do sangue (que representa a santidade da própria vida.). Foi feita uma concessão à tendência humana à violência. É como se D-s tivesse dito: Se você precisa matar, então mate animais e não seres humanos.

No entanto, o povo de Israel serviria como modelo de um ideal superior. Eles foram autorizados a matar animais para a alimentação, mas apenas aqueles que melhor exemplificassem a ordem Divina. Assim, os anfíbios eram proibidos porque não tinham um lugar definido. Outros eram proibidos porque não tinham uma forma clara – criaturas marinhas que não tinham uma forma definida por barbatanas e escamas; animais terrestres que não são ruminantes com cascos fendidos claramente definidos. Criaturas que atacam os outros também são proibidas. A lógica geral das leis dietéticas – as leis de um povo chamado para ser santo – é permitir apenas aqueles animais que são casos de paradigma, exemplos claros da ordem.

Eu não posso fazer melhor do que citar as palavras perspicazes de Leon Kass (em seu belo livro, The Hungry Soul):

As leis dietéticas levíticas enquadram o animal humano em sua integridade distintiva:

Comemorando o princípio da separação racional, elas celebram não só a participação do homem na racionalidade, mas também sua abertura ao mistério inteligível, porém encarnada forma… O baixo é feito alto – ou pelo menos mais alto – através do reconhecimento de sua dependência do alto; o alto é “derrubado”, democratizado e concretizado nas formas que governam a vida cotidiana. A rotina monótona da existência e a passagem do tempo são santificadas quando a separação sagrada do sétimo dia é trazida para a vida humana quando é comemorada como o Shabat. Do mesmo modo, o ato ordinário de comer é santificado pela observância dos mandamentos divinos, cujos principais princípios relembram aqueles que estão comendo de forma consciente, do poder supremo do Único Santo.

Os seres humanos tornam-se santos quando se tornam animais que fazem distinção, quando reconhecem e agem de modo a honrar os limites da natureza.

Vemos agora uma ligação extraordinária e íntima entre cinco temas:

1.A criação do universo
2. A construção do santuário
3. As leis dietéticas
4. A cerimônia da havdalá no final do Shabat
5. O número oito.

A história da criação nos diz que a natureza não é uma luta cega entre forças contendoras, em que os mais fortes vencem e o poder é o dom mais importante. Pelo contrário: o universo é fundamentalmente bom. É um lugar de harmonia ordenada, o design inteligível de um único criador. Essa harmonia é constantemente ameaçada pela humanidade. Na aliança com Noé, D-s estabelece um limiar mínimo para a civilização humana. Na aliança com Israel, ele estabelece um código mais alto de santidade. O princípio da santidade, como da própria criação, é a manutenção dos limites, dentro dos quais cada forma de vida recebe sua parte.

O santuário, com suas divisões, representa a construção de limites no espaço. As leis dietéticas, com suas divisões de permitido e proibido, representam a construção de limites na vida, no ato de comer, a mais natural das atividades humanas. O sacerdote – a pessoa que mais exemplifica a santidade – é definido por sua capacidade de fazer distinções (o papel do Kohen é “distinguir [le-havdil] entre o santo e o profano, entre o impuro e o puro” – note novamente as palavras-chave santo e le-havdil, “distinguir”).

Na cerimônia de havdalá no início do oitavo dia, nos tornamos parceiros de D-s na obra da criação. Como Ele, começamos criando luz e procedemos a fazer distinções (“Bendito sejas Tu… que faz distinção entre o sagrado e o profano, a luz e a escuridão…”). O oitavo dia torna-se assim o grande momento em que D-s confia Sua obra criativa ao povo que Ele tomou como Seu parceiro de aliança. Assim também foi com o Tabernáculo, e assim é conosco.

Essa visão simboliza a voz sacerdotal dentro do Judaísmo. É uma visão de grande beleza. Ela vê o mundo como um lugar de ordem em que tudo tem seu lugar e dignidade dentro da rica e diferenciada tapeçaria da criação. Ser santo é ser um guardião dessa ordem, uma tarefa delegada a nós por D-s. Esse é um desafio intelectual e ético: intelectualmente ser capaz de reconhecer os limites da natureza; eticamente ter a humildade de preservar e conservar o mundo para o bem das gerações ainda por vir.

 

Texto original: “THE LIGHT OF HOLINESS” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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