SHEMINI

Posted on março 30, 2016

SHEMINI

Os Perigos do Entusiasmo

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Investigar a história das palavras pode às vezes ser tão revelador quanto escavar as ruínas de uma cidade antiga. Observemos a palavra “entusiasmo”. Hoje nós vemos isso como algo positivo. Um dicionário a define como “um sentimento ativo de interesse em um determinado assunto ou atividade e vontade de ser envolvido nele”. As pessoas com entusiasmo têm paixão, prazer e excitação, e isso pode ser contagioso. É um dos dons de um grande mestre ou líder. As pessoas seguem pessoas de paixão. Se você quer influenciar os outros, cultive entusiasmo.

Mas a palavra nem sempre teve uma conotação favorável. Originalmente se referia a alguém possuído por um espírito ou demônio. No século XVII na Inglaterra, esse termo veio a se referir a seitas protestantes radicais e revolucionárias; e mais em geral aos puritanos que lutaram na Guerra Civil Inglesa. Tornou-se um sinônimo de extremismo religioso e fanatismo. Foi visto como irracional, volátil e perigoso. David Hume (1711-1776), o filósofo escocês, escreveu um ensaio fascinante sobre o assunto (1). Ele começa observando que “a corrupção das melhores coisas produz o pior”, e isso é especialmente verdade com respeito à religião. Há, diz ele, duas maneiras pelas quais a religião pode dar errado: através de superstição e através de entusiasmo. Esses são fenômenos bastante diferentes.

A superstição é impulsionada por ignorância e medo. Por vezes, podemos ter ansiedades irracionais e temores, e lidamos com eles recorrendo a remédios igualmente irracionais. O entusiasmo é o oposto. É o resultado de excesso de confiança. O entusiasta, em um estado de alto êxtase religioso, passa a acreditar que ele está sendo inspirado pelo próprio D-s, e está então com o poder para desconsiderar a razão e a moderação.

O entusiasmo “acha-se suficientemente qualificado para se aproximar da Divindade, sem qualquer mediador humano”. A pessoa em sua compreensão está tão convencida do que ele considera ser sagrado que se sente capaz de substituir as regras pelas quais a conduta sacerdotal é normalmente regida. “O fanático consagra a si mesmo e concede à sua própria pessoa um caráter sagrado, muito superior ao que forma e ao que instituições cerimoniosas podem conferir a qualquer outro”. Regras e regulamentos, pensa o entusiasta, são para pessoas comuns, não para nós. Nós, inspirados por D-s, sabemos melhor. Isso, disse Hume, pode ser muito perigoso de fato.

Temos agora uma descrição precisa do pecado pelo qual Nadav e Avihu, os dois filhos mais velhos de Aarão, morreram. Claramente a Torá se refere à tais mortes como altamente significativas, porque se refere a elas em nada menos que quatro ocasiões (Lev. 10:1-2/16:1 e Num. 3:4/26:61). Foi uma tragédia chocante, ocorrendo no dia da inauguração do serviço do mishkan (tabernáculo), um momento que deveria ter sido uma das grandes celebrações na história judaica.

Os próprios sábios ficaram intrigados com o episódio. O texto em si diz apenas que “eles ofereceram fogo não autorizado [esh zará] diante do Senhor, o qual Ele não havia ordenado. Então saiu um fogo da presença do Senhor e os consumiu; e eles morreram perante o Senhor”. Evidentemente os sábios sentiram que deve ter havido algo mais, um pecado maior ou falha de caráter, para justificar uma punição tão grave e drástica.

Juntando indícios no texto bíblico, alguns especularam que eles eram culpados de ter entrado no Sagrado dos Sagrados (2); que eles fizeram uma regra da cabeça deles sem consultar Moisés ou Aarão; que eles haviam se embriagado; que eles não estavam vestidos apropriadamente; que não tinham se purificado com a água do lavatório; que eles eram tão presunçosos que não se casaram, imaginando que nenhuma mulher era suficientemente boa para eles; ou que eles estavam impacientes para que Moisés e Aarão morressem para que eles pudessem se tornar os líderes de Israel.

Alguns especularam que o pecado pelo qual eles foram punidos não aconteceu naquele dia. O episódio teria ocorrido meses antes no Monte Sinai. O texto diz que Nadav e Avihu, juntamente com os setenta anciões subiram à montanha e “viram o D-s de Israel” (Ex. 24:10). D-s “não levantou a Sua mão contra os líderes dos israelitas; eles viram D-s, e comeram e beberam” (Ex. 24:11). A consequência é que eles mereciam punição naquele momento por não desviar seus olhos, ou por comer e beber em um encontro tão sagrado. Mas D-s atrasou a punição de forma a não trazer tristeza no dia em que Ele fez o pacto com o povo (3).

Essas são todas as interpretações midráshicas: verdadeiras, válidas e importantes, mas não o sentido simples do verso. O texto é claro. Em cada uma das ocasiões em que a morte é mencionada, a Torá apenas diz que eles ofereceram “fogo não autorizado”. O pecado foi que eles fizeram algo que não havia sido ordenado. Eles o fizeram, certamente, pelos motivos mais elevados. Moisés disse a Aarão, imediatamente depois que eles morreram, que foi isso o que D-s quis dizer quando pronunciou as palavras, “Entre aqueles que estão próximos a Mim serei santificado” (Lev. 10:3). Um midrash diz que Moisés estava consolando seu irmão dizendo, “Eles estavam mais perto de D-s do que você ou eu” (4).

A história da palavra “entusiasmo”, entretanto, nos ajuda a compreender o episódio. Nadav e Avihu eram “entusiastas”, não no sentido contemporâneo, mas no sentido em que a palavra foi usada nos séculos XVII e XVIII. Entusiastas eram pessoas que, cheios de paixão religiosa, acreditavam que D-s estava inspirando-as a fazer atos desafiando o direito e a convenção. Elas eram muito sagradas, mas também eram potencialmente muito perigosas. David Hume em particular viu que o entusiasmo nesse sentido é diametralmente oposto à mentalidade do sacerdócio. Em suas palavras, “todos os entusiastas mantinham-se livres do jugo de eclesiásticos, e expressavam grande independência de devoção; com desprezo às formalidades, cerimônias e tradições”.

Os sacerdotes compreendem o poder, e portanto o perigo potencial, do sagrado. É por isso que lugares sagrados, horários e rituais devem ser observados com regras, da mesma forma como uma estação de energia nuclear deve ser protegida pelo isolamento mais cuidadoso. Pense nos acidentes que ocorreram quando esse cuidado falhou: Chernobyl, por exemplo, ou Fukushima no Japão em 2011. Os resultados podem ser devastadores e duradouros.

Trazer fogo não autorizado ao Tabernáculo pode parecer uma ofensa pequena, mas um único ato não autorizado na esfera do sagrado causa uma brecha nas leis ao seu redor, que pode crescer no tempo para um buraco bem maior. O entusiasmo, embora possa ser inofensivo em algumas de suas manifestações, pode rapidamente tornar-se o extremismo, o fanatismo e a violência de motivação religiosa. Foi o que aconteceu na Europa durante as guerras religiosas nos séculos XVI e XVII, e está acontecendo com algumas religiões hoje em dia. Como David Hume observou: “A razão humana e mesmo a moralidade são rejeitadas [por entusiastas] como guias falaciosos, e o louco fanático se entrega às cegas” para o que ele acredita ser inspiração Divina, mas o que pode de fato ser arrogância exagerada ou fúria desvairada.

Compreendemos agora em detalhe que o cérebro humano contém dois sistemas diferentes, o que Daniel Kahneman chama de “pensamento rápido e lento”. O cérebro rápido, o sistema límbico, dá origem a emoções, particularmente em resposta ao medo. O cérebro lento, o córtex pré-frontal, é racional, deliberativo e capaz de pensar nas consequências a longo prazo de linhas alternativas de ação. Não é por acaso que temos dois sistemas. Sem respostas instintivas desencadeadas pelo perigo nós não iriamos sobreviver. Mas sem o mais lento, o cérebro deliberativo, nos encontraríamos algumas vezes nos envolvendo em comportamentos destrutivos e até mesmo autodestrutivos. A felicidade individual e a sobrevivência da civilização dependem de um equilíbrio delicado entre os dois.

A vida religiosa em particular, justamente porque dá origem a tais paixões intensas, precisa das restrições da lei e do ritual, todo o minueto intrincado de adoração, de modo que o fogo da fé seja contido, dando luz e um vislumbre da glória de D-s. Caso contrário, pode ao final tornar-se um inferno feroz, espalhando destruição e ceifando vidas. Depois de muitos séculos no Ocidente, temos domado o entusiasmo ao ponto em que podemos pensar nele como uma força positiva. No entanto, nunca devemos esquecer que não foi sempre assim. É por isso que o judaísmo contém tantas leis e tanta atenção aos detalhes – e quanto mais nos aproximamos de D-s, mais precisamos disso.

NOTAS:
1- Jeremias 7:22, “Quando Eu libertei seus antepassados na terra do Egito, Eu não falei ou ordenei a eles sobre queima de oferendas ou sacrifícios” – uma notável declaração. Veja Rashi e Radak ad loc., e especialmente Maimônides, Guia dos Perplexos, III:32.
2- O verbo “amar” – a-h-v – está relacionado com os verbos h-v-h, h-v-v and y-h-v, todos eles com o sentido de dar, trazer ou oferecer.
3- O texto clássico é A. O. Hirschman, The Passions and the Interests, Princeton University Press, 1977.
4- The Observer, 23 de Agosto de 2015.

 

Texto original: “THE DANGERS OF ENTHUSIASM” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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