SHEMOT

Posted on janeiro 3, 2018

SHEMOT

D-S Ama Aqueles Que Argumentam

Fico cada vez mais preocupado com o ataque à liberdade de expressão no Ocidente, especialmente nos campuses universitários (1). Isso está sendo feito em nome do “espaço seguro” – ou seja, espaço no qual você está protegido contra ouvir pontos de vista que podem lhe causar desconforto – do “desencadeamento de alertas” (2) e “micro agressões” – ou seja, qualquer observação que alguém possa considerar ofensiva, mesmo que não haja intenção de ofensa.

Isso foi tão longe que, no início do ano letivo de 2017, estudantes de uma faculdade de Oxford proibiram a presença de um representante da União Cristã, entendendo que alguns poderiam achar sua presença alienante e ofensiva (3). Cada vez mais, palestrantes com pontos de vista controversos estão sendo desconvidados: o número desses incidentes em faculdades americanas passou de 6 em 2000 para 44 em 2016 (4).

Sem dúvida, todo esse movimento foi realizado para o mais elevado dos motivos, para proteger os sentimentos dos vulneráveis. Essa é uma preocupação ética legítima. A lei judaica chega a extremos na condenação de lashon hará, discurso prejudicial ou depreciativo, e os sábios tiveram o cuidado de usar o que eles chamaram de lashon sagi nahor, eufemismo, para evitar uma linguagem que as pessoas possam achar ofensiva.

Mas um espaço seguro não é aquele em que você silencia as opiniões dissidentes. Pelo contrário: é aquele em que você dá uma oportunidade respeitosa a pontos de vista opostos ao seu próprio, sabendo que seus pontos de vista também serão ouvidos respeitosamente. Essa é a liberdade acadêmica, e é essencial para uma sociedade livre (5). Como George Orwell disse: “Se liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”.

John Stuart Mill também escreveu que uma das piores ofensas contra a liberdade é “estigmatizar aqueles que mantêm a opinião contrária como homens maus e imorais”. Isso está acontecendo hoje em instituições que deveriam ser guardiãs da liberdade acadêmica. Estamos chegando perigosamente perto do que Julian Benda chamou, em 1927, “A traição dos intelectuais”, na qual ele disse que a vida acadêmica tinha sido degradada, na medida em que se permitiu tornar-se uma arena para a “organização intelectual de ódio político” (6).

O que é impressionante sobre o judaísmo, e nós vemos isso de forma clara na parashá desta semana, é que argumentar e ouvir visões contrarias é a essência da vida religiosa. Moises argumenta com D-s. Essa é uma das coisas mais impressionantes sobre ele. Ele argumenta com Ele no seu primeiro encontro na sarça ardente. Quatro vezes ele resiste ao chamado de D-s para liderar os israelitas para a liberdade, até que D-s finalmente se irrita com ele (Ex. 3:1-4:7). Mais significativamente, no final da parashá ele diz a D-s:

“Senhor, por que você trouxe problemas para esse povo? Por que você me enviou? Desde que eu vim ao Faraó para falar em Seu nome, ele trouxe problemas para este povo, e Você não resgatou Seu povo” (Ex. 5:22-23).

Essa é uma linguagem extraordinária para um ser humano usar com D-s. Mas Moisés não foi o primeiro a fazer isso. O primeiro foi Abraão, que disse, ao ouvir o plano de D-s para destruir as cidades da planície: “O Juiz de toda a terra não fará justiça?” (Gen. 18:25).

Da mesma forma, Jeremias, colocando a velha questão de por que coisas ruins acontecem com pessoas boas e coisas boas para pessoas ruins, perguntou: “Por que prospera o caminho do perverso? Por que todos aqueles sem fé vivem tranquilos?” (Jer. 12:1). Na mesma linha, Habakuk desafiou D-s: “Por que Você tolera os traiçoeiros? Por que Você está em silêncio enquanto os malvados engolem aqueles mais justos do que eles?” (Hab. 1:13). Jó, que desafia a justiça de D-s, é justificado no livro que leva seu nome, enquanto seus amigos, que defenderam a justiça Divina, foram considerados como não tendo falado corretamente (Jó 42:7-8). O céu, em suma, não é um espaço seguro no sentido atual dessa frase. Pelo contrário: D-s ama aqueles que argumentam com Ele – assim parece pelo Tanach.

Igualmente impressionante é o fato de que os sábios continuaram a tradição e deram-lhe um nome: discussão em prol do céu (7), definido como um debate em benefício da verdade e não da vitória (8). O resultado é que o judaísmo é, talvez exclusivamente, uma civilização cujos textos canônicos são antologias de argumentos. O Midrash opera com o princípio de que existem “setenta faces” para a Torá e, então, cada verso está aberto a múltiplas interpretações. A Mishná está cheia de parágrafos do tipo: “O rabino X diz isso enquanto o rabino Y diz aquilo”. O Talmud diz em nome do próprio D-s, sobre as visões conflitantes das escolas de Hillel e Shammai, que “essas e aquelas são as palavras do D-s vivo” (9).

Uma edição padrão de Mikraot Gedolot consiste no texto bíblico cercado por múltiplos comentários e até comentários sobre os comentários. A edição padrão do Talmud Babilônico tem o texto cercado pelas visões frequentemente conflitantes de Rashi e os Tosafistas. Moisés Maimônides, escrevendo sua obra-prima da lei judaica, o Mishnê Torá, tomou o passo quase sem precedentes de apresentar apenas a conclusão haláchica sem acompanhamento dos argumentos. O resultado irônico, mas previsível, foi que o Mishnê Torá acabou sendo cercado por uma infinita variedade de comentários e argumentos. No judaísmo, há algo de sagrado no que tange ao argumento.

Por que? Primeiro, porque somente D-s pode ver a totalidade da verdade. Para nós, meros mortais que só podemos ver fragmentos da verdade em cada momento, há uma multiplicidade irredutível de perspectivas. Vemos a realidade ora de um jeito, ora de outro. A Torá nos fornece um exemplo dramático em seus dois primeiros capítulos, que nos dá dois relatos da criação, ambos verdadeiros, de diferentes pontos de vista. As diferentes vozes do sacerdote e do profeta, Hillel e Shammai, filósofo e místico, historiador e poeta, cada um captura algo essencial sobre a vida espiritual. Mesmo dentro de um único gênero, os sábios notaram que “nenhum profeta profetiza no mesmo estilo” (10). A Torá é uma conversa marcada por muitas vozes.

Em segundo lugar, porque a justiça pressupõe o princípio que no direito romano é chamado de audi alteram partem, “ouça o outro lado”. É por isso que D-s quer um Abraão, um Moisés, um Jeremias e um Jó O desafiando, às vezes implorando piedade ou, como no caso de Moisés no final da parashá desta semana, Urgindo-O a agir rapidamente em defesa de Seu povo (11). Tanto o caso da acusação quanto da defesa devem ser ouvidos para que a justiça seja feita, e enxergada como tendo sido feita.

A busca da verdade e da justiça requer a liberdade de discordar. O Netziv argumentou que foi a proibição de discordar o pecado dos construtores de Babel (12). O que precisamos, portanto, não é de “espaços seguros”, mas sim civilidade, ou seja, dar ouvidos respeitosos às opiniões com as quais discordamos. Em uma de suas mais belas passagens, o Talmud nos diz que os pontos de vista da escola de Hillel tornaram-se lei “porque eram agradáveis e não se ofendiam, e porque eles ensinavam as opiniões de seus oponentes e as suas próprias, na verdade eles ensinavam os pontos de vista de seus oponentes antes dos deles” (13).

E de onde aprendemos isso? Do próprio D-s, que escolheu como Seus profetas pessoas que estavam dispostas a discutir com o Céu por amor ao Céu, em nome da justiça e da verdade.

Quando você aprende a ouvir opiniões diferentes das suas, percebendo que você não está ameaçado, mas enriquecido, então você descobriu a ideia que muda a vida da argumentação em prol do céu.

 

NOTAS:
1) Eu escrevi sobre isso pela primeira vez há dez anos atrás no meu livro, The Home We Build Together (2007), no capítulo intitulado “The Defeat of Freedom in the Name of Freedom”, 37-48. A situação tornou-se significativamente pior desde então.
2) Veja sobre isso, Mick Hume, Trigger Warning: is the fear of being offensive killing free speech? Londres, William Collins, 2016.
3) Veja http://www.telegraph.co.uk/education/2017/10/10/oxford-college-bans-harmful-christian-union-freshers-fair.
4) Jean M. Twenge, iGen, Atria, 2017, 253.
5) Eu saúdo a Universidade de Chicago, Princeton e outras universidades que tomaram uma posição forte em defesa da liberdade de expressão no campus; e o professor Jonathan Haidt e seus colegas na Heterodox Academy, fundada para promover a diversidade intelectual na vida acadêmica.
6) Julian Benda, The Treason of the Intellectuals, Transaction, 2007, 27.
7) Mishná, Avot 5:17.
8) Meiri para Avot ad loc.
9) Eruvin 13b.
10) Sanhedrin 89a.
11) Veja Pesachim 87a-b para uma passagem notável, na qual D-s critica o profeta Hoshea por não ter defendido seu povo.
12) Ha’amek Davar para Gen. 11:4.
13) Eruvin 13b

Texto original: “GOD LOVES THOSE WHO ARGUE” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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