SHOFETIM

Posted on agosto 23, 2017

SHOFETIM

O Consentimento Dos Governados

A contribuição do Tanach, a Bíblia hebraica, para o pensamento político é fundamental, mas não conhecida. Neste estudo, quero olhar para a instituição da monarquia. O que ela nos diz sobre a natureza do governo como a Torá o entende?

O mandamento relativo a um rei abre com estas palavras:

Quando você entrar na terra que o Senhor seu D-s está lhe dando e tomar posse e se estabelecer nela, e você disser, “Tenhamos um rei sobre nós como todas as nações que nos rodeiam”, certifique-se de nomear sobre você o rei que o Senhor seu D-s escolher… (Deuteronômio 17:14-15).

E continua alertando contra um rei que adquire “um grande número de cavalos para si mesmo”. Ele “não deve tomar muitas esposas”, nem pode “acumular grandes quantidades de prata e ouro”. Ele deve escrever um Sefer Torá e “deve lê-lo todos os dias de sua vida para que possa aprender a reverenciar o Senhor seu D-s e … não se considerar melhor do que seus irmãos, ou desviar a lei para a direita ou para a esquerda”.

Toda a passagem está cheia de ambivalência. Os perigos são claramente enunciados. Existe o risco de um rei aproveitar-se de seu poder, usando-o para adquirir riqueza, ou esposas ou cavalos (um dos símbolos de status do mundo antigo). É exatamente assim que Salomão é descrito no Livro dos Reis. Seu “coração pode ser desviado”. Ele pode ser tentado a dominar o povo, considerando-se “melhor do que seus irmãos”.

A nota de advertência mais ressonante é atingida no início. Em vez de comandar a nomeação de um rei, a Torá prevê o povo pedindo um rei para que eles possam ser “como todas as nações que nos rodeiam”. Isso é contrário a todo o espírito da Torá. Os israelitas foram ordenados a serem diferentes, separados, contra culturais. Querer ser como todos os outros não é, para a Torá, um desejo nobre, mas uma falha de imaginação e coragem. Não é de admirar que vários comentadores medievais considerassem que a criação de uma monarquia não seja um imperativo bíblico. Ibn Ezra afirmou que a Torá não ordenou, mas apenas permitiu isso. Abarbanel – que defendia o governo republicano sobre a monarquia – considerava isso como uma concessão ao sentimento popular.

No entanto, a passagem-chave não está aqui, mas em I Samuel 8 [1]. Conforme previsto em Deuteronômio, o povo finalmente solicita um rei. Eles vêm a Samuel, o profeta-juiz, e dizem: “Você é idoso, e seus filhos não andam nos seus caminhos; agora nomeie um rei para nos liderar, como fazem todas as outras nações”.

Samuel fica descontente. D-s então diz a ele: “Ouça tudo o que o povo está lhe dizendo; não é a você que eles rejeitaram, mas eles Me rejeitaram como seu rei”. Esse parece ser o cerne da questão. Idealmente, Israel não deveria estar sob nenhum outro soberano senão D-s.

Ainda assim, D-s não rejeita o pedido. Pelo contrário, D-s já havia sinalizado, através de Moisés, que tal pedido seria concedido. Então Ele diz a Samuel: “Ouça-os; mas avise-lhes solenemente e deixe que saibam o que o rei que reinará sobre eles fará”. O povo pode nomear um rei, mas não sem ter sido prevenido quanto às prováveis consequências. Samuel dá o aviso nestas palavras:

“Isto é o que o rei que reinará sobre você fará: ele pegará seus filhos e os fará servir com seus carros de combate e cavalos, e eles correrão na frente de seus carros… Ele pegará suas filhas para serem perfumistas, cozinheiras e padeiras. Ele pegará o melhor de seus campos e vinhedos e oliveiras e irá entregá-los aos seus servos. Ele tomará um décimo do seu grão e da sua safra e entregará a seus funcionários e servos… E vocês mesmos tornar-se-ão seus escravos. Quando esse dia chegar, você clamará por alívio do rei que você escolheu, e o Senhor não lhe responderá nesse dia”.

Apesar do aviso, o povo está decidido. “‘Não!’, disseram eles. ‘Queremos um rei sobre nós. Então seremos como todas as outras nações, com um rei para nos liderar e sair diante de nós e lutar nossas batalhas’. Quando Samuel ouviu tudo o que o povo disse, ele repetiu diante do Senhor. O Senhor respondeu: ‘Ouça-os e dê-lhes um rei’”.

O que está acontecendo aqui? Os sábios estavam divididos se Samuel estava estabelecendo os poderes do rei, ou se ele estava simplesmente tentando dissuadi-los de todo o projeto (Sanhedrin 20b). Toda a passagem, como a de Deuteronômio, é profundamente ambivalente. D-s é a favor da monarquia ou contra? Se Ele é favorável, por que Ele disse que o pedido do povo equivalia a rejeitá-Lo? Se Ele é contra, por que Ele simplesmente não ordena a Samuel que diga não?

A melhor análise do assunto foi dada por um dos grandes rabinos do século 19, R. Zvi Hirsch Chajes, em seu Torat Neviim. Sua tese é que a instituição da monarquia nos dias de Samuel assumiu a forma de um contrato social – conforme estabelecido nos escritos de Locke e Rousseau, e especialmente de Hobbes. O povo reconhece que não pode funcionar como indivíduos sem que alguém tenha o poder de assegurar o estado de direito e a defesa da nação. Sem isso, eles estão no que Hobbes chama de “estado da natureza”. Há anarquia, caos. Ninguém está seguro. Em vez disso, na famosa frase de Hobbes, há “medo contínuo e perigo de morte violenta; e a vida do homem – solitária, pobre, desagradável, bruta e curta” (Hobbes estava escrevendo na sequência da guerra civil da Inglaterra). Este é o equivalente Hobbesiano da última linha do Livro dos Juízes: “Naqueles dias Israel não tinha rei; todos faziam o que achavam conveniente”.

A única maneira de escapar da anarquia é através do acordo de todos em transferir alguns dos seus direitos – especialmente o uso da força coerciva – para um soberano humano. O governo vem a um preço elevado. Significa transferir para um governante direitos sobre a própria propriedade e pessoa. O rei tem o direito de apoderar-se da propriedade, impor impostos e recrutar pessoas para um exército se isso for necessário para garantir o estado de direito e a segurança nacional. As pessoas concordam com isso porque calculam que o preço de não fazê-lo será ainda maior – anarquia total ou conquista por uma força estrangeira.

Isso, de acordo com Chajes, é o que Samuel estava fazendo, ao comando de D-s: propondo um contrato social e explicando quais seriam os resultados. Se é assim, muitas coisas se seguem. A primeira é que Ibn Ezra e Abarbanel estavam certos. D-s deu ao povo a escolha de nomear ou não um rei. Não era compulsório, mas opcional. A segunda – e esta é a característica fundamental das teorias dos contratos sociais – é que o poder é, em última análise, concedido pelo povo. É certo, existem limites morais ao poder. Mesmo um rei humano está sob a soberania de D-s. D-s nos dá as regras que são eternas.

A política trata das leis que são temporárias, para este tempo, este lugar, estas circunstâncias. O que torna a política do contrato social distinta é a sua insistência de que o governo é a livre escolha de uma nação livre. Isso foi mais famosamente retratado na Declaração Americana de Independência: “para assegurar esses direitos (vida, liberdade e a busca da felicidade), os governos são instituídos entre os homens, obtendo seus poderes momentâneos do consentimento dos governados”. Isso era o que D-s estava dizendo a Samuel. Se o povo quer um rei, dê-lhes um rei. Israel tem o poder de escolher a forma de governo que deseja, dentro dos parâmetros estabelecidos pela lei da Torá.

Outra coisa se segue – explicada por R. Avraham Yitzhak haCohen Kook (Responsa Mishpat Cohen, nº 143-4, pp. 336-337): “Como as leis da monarquia concernem à situação geral do povo, esses direitos legais se revertem [na ausência de um rei] para o povo como um todo. Especificamente, pareceria que qualquer líder [shofet] que surja em Israel tem o status de rei [din melech yesh lo] em muitos aspectos, especialmente quando se trata da conduta do povo… Quem quer que lidere o povo pode governar de acordo com as leis da realeza, uma vez que essas abrangem as necessidades do povo naquele momento e naquela situação”.

Em outras palavras, na ausência de um rei descendente do rei David, o povo pode optar por ser governado por um rei que não seja seu descendente, como fizeram na era dos Hashmoneos, ou, ao invés disso, ser governado por um Parlamento democraticamente eleito, como no atual Estado de Israel.

A questão real, como a Torá a vê, não é entre a monarquia e a democracia, mas entre o governo que é ou não livremente escolhido pelos governados. É certo que a Torá é sistematicamente céptica quanto à política. Em um mundo ideal, Israel seria governado somente por D-s. Considerando, no entanto, que este não é um mundo ideal, deve haver algum poder humano com a autoridade para garantir que as leis sejam mantidas e os inimigos repelidos. Mas esse poder nunca é ilimitado. Ele vem com duas restrições: em primeiro lugar, está sujeito à autoridade abrangente de D-s e Sua lei; em segundo lugar, está confinado à busca genuína dos interesses do povo. Qualquer tentativa de um governante usar o poder para vantagem pessoal (como no caso do rei Ahab e o vinhedo de Nabot: 1 Reis 21) é ilegítima.

A sociedade livre tem seu nascimento na Bíblia hebraica. Longe de ordenar uma retirada da sociedade, a Torá é o modelo de uma sociedade – uma sociedade construída sobre a liberdade e a dignidade humana, cujos ideais elevados continuam fortes ainda hoje.

NOTA:
[1] Para um brilhante estudo recente, embora um que não trate das questões levantadas aqui, veja Moshe Halbertal e Stephen Holmes, The Beginning of Politics: Power in the Biblical Book of Samuel, Princeton University Press, 2017.

 

Texto original: “THE CONSENT OF THE GOVERNED” por Rabbi Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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