TETZAVÊ

Posted on fevereiro 17, 2016

TETZAVÊ

Inspiração e Transpiração

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

FBeethoven levantava-se todas as manhãs ao alvorecer e fazia seu próprio café. Ele era exigente com isso: cada medida do recipiente tinha de conter exatamente sessenta grãos, que ele contava a cada vez. Após isso ele sentava-se à sua mesa e ficava compondo até 14:00 ou 15:00. Então ele saía para uma longa caminhada, levando com ele um lápis e algumas folhas de papel de música para gravar todas as ideias que lhe vinham à cabeça no caminho. Toda noite, depois do jantar, ele tomava uma cerveja, fumava um cachimbo, e ia para a cama cedo às 22:00 h o mais tardar.Anthony Trollope, por ter um emprego nos Correios durante o dia, pagava alguém para acordá-lo todos os dias às 5:00, e às 5:30 estava em sua mesa e escrevia por exatamente três horas, trabalhando contra o tempo para produzir 250 palavras a cada quinze minutos. Dessa forma ele escreveu 47 romances, muitos deles em três longos volumes, bem como 16 outros livros. Se ele terminasse um romance antes das três horas do dia, ele imediatamente pegava um novo pedaço de papel e começava o próximo.
Immanuel Kant, o mais brilhante filósofo dos tempos modernos, era famoso por sua rotina. Conforme disse Heinrich Heine, “Levantar-se, tomar café, escrever, dar uma palestra, comer, dar uma caminhada, tudo tinha o seu tempo estipulado, e os vizinhos sabiam precisamente que eram 15:30 h quando Kant dava um passo para fora de sua porta com o casaco cinza e a sua bengala espanhola nas mãos”.
Esses detalhes, bem como mais de 150 outros exemplos extraídos dos grandes filósofos, artistas, compositores e escritores, vem de um livro de Mason Currey intitulado Rituais Diários: Como grandes mentes encontram tempo, inspiram-se e começam a trabalhar (1). O objetivo do livro é simples. A maioria das pessoas criativas têm rituais diários, os quais formam o solo no qual as sementes das suas invenções crescem.
Em alguns casos, eles deliberadamente pegavam trabalhos que não precisavam fazer, simplesmente para estabelecer estrutura e rotina em suas vidas. Um exemplo típico foi o poeta Wallace Stevens, que assumiu um trabalho como advogado de seguro, no Hartford Accident and e Indemnity Company, onde trabalhou até sua morte. Ele disse que ter um emprego foi uma das melhores coisas que poderia acontecer a ele porque “introduziu disciplina e regularidade em sua vida”.
Observe o paradoxo. Todos eles foram inovadores, pioneiros, que formularam novas ideias, originaram novas formas de expressão, fizeram coisas que ninguém havia feito antes daquela forma específica. Eles quebraram o molde. Eles mudaram a paisagem. Eles se aventuraram no desconhecido.
No entanto, suas vidas diárias eram o oposto: rotineira e ritualizada. Podemos até chamá-los de “chatos”. Por quê? Porque – o ditado é famoso, embora nós não saibamos quem primeiro disse isso – o gênio é um por cento inspiração e noventa e nove por cento transpiração. O paradigma – avançar em descobertas cientificas, a pesquisa pioneira, o novo produto de grande sucesso, o romance brilhante, o filme premiado, são quase sempre o resultado de muitos anos de longas horas e atenção aos detalhes. Ser criativo envolve trabalho duro.
A palavra do hebraico antigo para trabalho duro é avodá. É também a palavra que significa “servir a D-s”. O que se aplica às artes, ciências, comércio e indústria, é igualmente aplicável à vida do espírito. Atingir qualquer forma de crescimento espiritual requer manutenção de esforço e rituais diários.
Daí a notável passagem da hagadá em que vários sábios apresentam suas ideias sobre klal gadol ba-Torá, “o grande princípio da Torá”. Ben Azai diz que é o verso: “Este é o livro das crônicas do homem: No dia em que D-s criou o homem, Ele o fez à semelhança de D-s” (Gen. 5:1). Ben Zomá diz que há um princípio mais abrangente: “Escuta Israel, o Senhor é nosso D-s, o Senhor é um”. Ben Nanás diz que há um princípio ainda mais abrangente: “Ame o seu próximo como a si mesmo”. Ben Pazi diz que encontramos um princípio mais abrangente ainda do que este. Ele cita um verso da parashá desta semana: “Um carneiro será oferecido no período da manhã e um segundo no período da tarde” (Ex. 29:39) – ou, como poderíamos dizer hoje em dia, Shacharit, Minchá e Arvit. Em uma palavra: “rotina”. A passagem conclui: A lei segue Ben Pazi (2).
O significado da declaração de Ben Pazi é claro: todos os ideais elevados do mundo – a pessoa humana como imagem de D-s, a crença na unicidade de D-s e o amor ao próximo – contam pouco até que eles sejam transformados em hábitos de ação que se tornam hábitos do coração. Todos nós podemos recordar momentos de insight quando tivemos uma grande ideia, um pensamento transformador, o vislumbre de um projeto que poderia mudar nossas vidas. Um dia, uma semana ou um ano mais tarde, o pensamento foi esquecido ou tornou-se uma memória distante, na melhor das hipóteses um poderia-ter-sido.
As pessoas que mudam o mundo, seja de forma pequena ou épica, são aquelas que transformam experiências de pico nas rotinas diárias, que sabem que os detalhes são importantes, e que desenvolveram a disciplina de trabalho duro, mantida ao longo do tempo.
A grandeza do Judaísmo é que ele toma altos ideais e visões exaltadas – imagem de D-s, a fé em D-s, amor ao próximo – e os transforma em padrões de comportamento. A halachá (lei judaica) envolve um conjunto de rotinas que – como os das grandes mentes criativas – reconfigura o cérebro, dando disciplina para nossas vidas e mudando a forma como nos sentimos, pensamos e agimos.
Muito do Judaísmo deve parecer aos não-judeus, e às vezes até mesmo aos próprios judeus, chato, prosaico, mundano, repetitivo, rotineiro, obcecado com detalhes e desprovido em grande parte de drama ou de inspiração. Contudo, isso, na maioria das vezes, é precisamente como escrever um romance, compor uma sinfonia, dirigir um filme, desenvolver um aplicativo viral, ou construir um negócio de bilhões de dólares. É uma questão de trabalho duro, atenção focada e rituais diários. É daí que vem toda a grandeza sustentável.
Nós desenvolvemos no Ocidente uma visão estranha da experiência religiosa, qual seja, aquilo que o domina quando acontece alguma coisa completamente fora do padrão de experiência normal. Você escala uma montanha e olha para baixo. Você está milagrosamente salvo do perigo. Você se encontra como parte de uma multidão vasta e entusiasmada. É como o alemão teólogo luterano Rudolf Otto (1869-1937) definiu “o sagrado”: como um mistério (mysterium), tanto aterrorizante (tremendum) quanto fascinante (fascinans). Você fica impressionado com a presença de algo vasto. Todos nós já tivemos essas experiências.
Mas isso é tudo que são: experiências. Elas permanecem na memória, mas elas não são parte da vida cotidiana. Não são tecidas na textura do nosso caráter. Não afetam o que fazemos, o que alcançamos ou o que nos tornamos. O Judaísmo trata de nos mudar para que nos tornemos artistas criativos cuja criação maior é a nossa própria vida (3). E isso requer rituais diários: Shacharit, Minchá, Arvit, a comida que comemos, a forma como nos comportamos no trabalho ou em casa, a coreografia de santidade que é a contribuição especial da dimensão sacerdotal do judaísmo, estabelecida na parashá desta semana e ao longo do livro de Vaikrá.
Esses rituais têm um efeito. Sabemos agora através de exames PET e fMRI que exercícios espirituais repetidos reconfiguram o cérebro. Dá-nos a resistência interna. Faz-nos mais gratos. Isso nos dá uma sensação de confiança básica na Fonte do nosso ser. Molda a nossa identidade, a nossa forma de agir, falar e pensar. O ritual é para a grandeza espiritual o que a prática é para um jogador de tênis, o que a disciplina da escrita diária é para um romancista, e o que a leitura das contas de uma empresa são para Warren Buffett. Eles são a condição prévia para a realização elevada. Servir a D-s é avodá, o que significa trabalho duro.
Se você busca inspiração súbita, então trabalhe para isso todos os dias durante um ano ou uma vida. É assim que ela vem. Como todo golfista famoso diz quando perguntado sobre o segredo do seu sucesso: “Eu apenas tive sorte. Mas o engraçado é que quanto mais eu treino, mais sortudo eu fico”. Quanto mais você procura alturas espirituais, mais você precisa do ritual e da rotina da halachá, o “caminho” judaico para D-s.

NOTAS:
(1) Mason Currey, Daily Rituals, New York, Knopf, 2013.
(2) A passagem é citada na introdução do comentário de HaKotev para Ein Yaakov, as passagens de hagadá colecionadas do Talmud. Foi também citada por Maharal em Netivot Olam, Ahavat Re’a 1.
(3) Uma questão colocada por Rabi Joseph Soloveitchik em seu ensaio Halachic Man.

Texto original: “INSPIRATION AND PERSPIRATION” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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