TZAV

Posted on março 21, 2018

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Agradecer

As primeiras palavras que nos são ensinadas a dizer todas as manhãs, imediatamente ao acordar, são Modê / modá ani, “Agradeço (eu)”. Agradecemos antes de pensar. Note-se que a ordem normal das palavras é invertida: Modê ani, não ani modê, de modo que em hebraico o “agradecimento” vem antes do “eu”. O judaísmo é “gratidão com a atitude”. E isso, de acordo com pesquisas científicas recentes, é realmente uma ideia que melhora a vida.

A fonte do mandamento de agradecer é encontrada na parashá desta semana. Entre os sacrifícios é aquele caracterizado como korban todá, a oferta de agradecimento: “Se ele oferece [o sacrifício] como uma oferta de ação de graças, então juntamente com esta oferta ele deve oferecer pães ázimos misturados com óleo, biscoitos sem fermento espalhados com óleo, e pães de farinha fina bem amassados e misturados com azeite” (Levítico 7:12).

Embora temos estado sem sacrifícios por quase dois mil anos, um vestígio da oferenda de agradecimento sobrevive até hoje, sob a forma da benção de Hagomel: “Quem dá boas coisas aos indignos”, dita na sinagoga, no momento da leitura da Torá, por alguém que sobreviveu a uma situação perigosa. Tal situação é definida pelos sábios (com base no Salmo 107) quando alguém sobreviveu a uma travessia do mar, ou viajou por um deserto, ou se recuperou de uma doença grave ou foi libertado do cativeiro (1).

Para mim, o instinto quase universal de agradecer é um dos sinais da transcendência (2) na condição humana. Não é apenas o piloto que queremos agradecer quando pousamos com segurança após um vôo perigoso; não apenas ao cirurgião quando sobrevivemos a uma operação; não apenas ao juiz ou político quando somos libertados da prisão ou do cativeiro. É como se alguma força maior fosse operativa, como se a mão que move as peças do tabuleiro humano pensasse em nós; como se o próprio Céu tivesse descido e vindo nos ajudar.

As companhias de seguros às vezes descrevem catástrofes naturais como “atos de D-s”. A emoção humana tende a fazer o contrário (3). D-s está nas boas notícias, a salvação milagrosa, o escape da catástrofe. Esse instinto – agradecer a uma força, uma presença, acima das circunstâncias naturais e da intervenção humana – é em si um sinal de transcendência. Embora não seja uma prova da existência de D-s, é, no entanto, uma sugestão de algo profundamente espiritual no coração humano. Indica-nos que não somos concatenações aleatórias de genes egoístas que se reproduzem cegamente. Nossos corpos podem ser produtos da natureza (“você é pó e para o pó você vai retornar”), mas há algo dentro de nós que alcança Algo além de nós: a alma do universo, o Divino “Você” a quem nós oferecemos nossos agradecimentos. Isso é o que era expressado na oferta de ação de graças, e ainda é, na oração de Hagomel.

Somente no início da década de 1990 uma grande pesquisa médica revelou os efeitos físicos dramáticos do ato de agradecer. Tornou-se conhecido como o Estudo das Freiras. Cerca de 700 freiras americanas, todas membras da Escola Irmãs de Notre Dame nos Estados Unidos, concordaram em permitir que seus registros fossem acessados por uma equipe de pesquisa que estava investigando o processo de envelhecimento e da doença de Alzheimer. No início do estudo, os participantes tinham idades entre 75 e 102 anos (4).

Mas o que deu a esse estudo um escopo longitudinal incomum é que, em 1930, a Madre Superiora pediu às freiras, que estavam nos seus vinte e poucos anos, que escrevessem um breve relato autobiográfico de sua vida e seus motivos para entrar no convento. Esses documentos foram analisados pelos pesquisadores usando um sistema de codificação especialmente elaborado para registrar, entre outras coisas, emoções positivas e negativas. Ao avaliar anualmente o estado de saúde das freiras, os pesquisadores puderam testar se seus estados emocionais em 1930 tiveram efeito sobre sua saúde sessenta anos depois. Por terem vivido um estilo de vida muito semelhante durante essas seis décadas, elas formaram um grupo ideal para testes de hipóteses sobre a relação entre atitudes emocionais e a saúde.

Os resultados, publicados em 2001, foram surpreendentes (5). Quanto mais emoções positivas – contentamento, gratidão, felicidade, amor e esperança – as freiras expressaram em suas notas autobiográficas, maior a probabilidade delas estarem vivas e bem sessenta anos depois. A diferença foi de até sete anos na expectativa de vida. Tão notável foi essa descoberta que levou, desde então, a um novo campo de pesquisa sobre a gratidão, bem como a uma compreensão mais profunda do impacto das emoções sobre a saúde física.

Desde a publicação do Estudo das Freiras e a enxurrada de mais pesquisas que ele inspirou, agora sabemos os múltiplos efeitos de se desenvolver uma atitude de gratidão. Melhora a saúde física e a imunidade contra doenças. Pessoas que agradecem estão mais propensas a fazer exercícios regulares e a fazer exames médicos regulares. A gratidão reduz as emoções tóxicas como ressentimento, frustração e arrependimento e torna a depressão menos provável. Ajuda as pessoas a evitar reações exageradas a experiências negativas buscando vingança. Ainda tende a fazer as pessoas dormirem melhor. Aumenta a auto-estima, tornando menos provável que você venha a invejar outros por suas conquistas ou sucessos. Gente grata tende a ter melhores relacionamentos. Dizer “obrigado” melhora as amizades e provoca melhor desempenho dos funcionários. É também um fator importante no fortalecimento da resiliência. Um estudo sobre Veteranos da Guerra do Vietnã descobriu que aqueles com maiores níveis de gratidão sofreram menor incidência de Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Lembrar as muitas coisas que temos a agradecer nos ajuda a sobreviver a experiências dolorosas, desde perder um emprego até o luto (6).

A oração judaica é um seminário contínuo de gratidão. Birkat ha-Shachar, ‘as Bênçãos da Alvorada’, recitadas no início das orações da manhã todos os dias, são repetições recorrentes de agradecimentos pela própria vida: o corpo humano, o mundo físico, a terra para ficar em pé e os olhos para ver.

A gratidão também está por trás de uma característica fascinante da Amidá. Quando o chazan repete a Amidá em voz alta, ficamos em silêncio, a não ser pelas respostas da Kedushá e de Amen após cada bênção, com uma exceção. Quando o chazan diz as palavras Modim anachnu lach, “Agradecemos a Você”, a congregação diz uma passagem paralela conhecida como Modim de-Rabanan. Para cada outra benção da Amidá, basta assentir com as palavras do chazan ao dizer Amen. A única exceção é Modim, “Nós agradecemos”. O Rabi Elijah Spira (1660-1712) em seu trabalho Eliahu Rabá (7), explica que, quando se trata de agradecer, não podemos delegar a outra pessoa para fazê-lo em nosso nome. O agradecimento deve vir diretamente de nós.

Daí a ideia transformadora: agradecer é benéfico para o corpo e para a alma. Contribui tanto para a felicidade quanto para a saúde. Também é uma atitude de auto realização: quanto mais celebramos o bem, mais descobrimos coisas boas que são dignas de celebração.

Isso não é nem fácil nem natural. Nós somos geneticamente predispostos a prestar mais atenção ao que é ruim do que ao que é bom (8). Por profundos motivos biológicos, somos super alertas para potenciais ameaças e perigos. É preciso atenção concentrada para ter consciência do quanto devemos agradecer. Essa, de diferentes formas, é a lógica da oração, de recitar bênçãos, do Shabat, e muitos outros elementos da vida judaica.

Isso também está inserido em nosso nome coletivo. A palavra Modê, “Agradeço”, vem da mesma raiz de Yehudi, que significa “Judeu”. Recebemos esse nome do quarto filho de Jacob, nomeado por sua mãe Leah que, em seu nascimento, disse: “Esta vez vou agradecer a D-s” (Gênesis 29:35). Judaísmo é gratidão: não a definição mais óbvia da identidade judaica, mas, de longe, a que mais melhora a vida.

 

NOTAS:
1) Berachot 54b.
2) Nessa ideia, veja Peter Berger, A Rumor of Angels, New York, Doubleday, 1990.
3) Nem sempre, claro. Sempre houve o episódio memorável dos Simpsons onde Bart Simpson, antes de começar sua refeição de ação de graças, se vira para o céu e diz de forma irônica, “Nós pagamos por tudo isso aqui, então obrigado por nada”.
4) Veja Robert Emmons, Thanks!: How the New Science of Gratitude Can Make You Happier, Boston: Houghton Mifflin, 2007.
5) Danner, Deborah D., David A. Snowdon, and Wallace V. Friesen. “Positive Emotions in Early Life and Longevity: Findings from the Nun Study”. Journal of Personality and Social Psychology 80.5 (2001): 804-13.
6) Muito do material nesse parágrafo pode ser encontrado em artigos no Greater Good: The Science of a Meaningful Life em http://greatergood.berkeley.edu. Veja também Sonja Lyubomirsky, The How of Happiness, Sphere, 2007, 87-124.
7) Eliahu Rabá, Orach Chaim 127:1.
8) O estudo clássico sobre isso é de Roy Baumeister e outros, “Bad is stronger than good”, Review of General Psychology, vol. 5, no. 4, 2001, pp. 323–370.

 

Texto original “GIVING THANKS” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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