VAERÁ

Posted on janeiro 7, 2016

VAERÁ

Espíritos em um Mundo Material

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

A Torá às vezes diz algo de fundamental importância no que parece ser um comentário menor e incidental. Há um bom exemplo disto perto do início da parashá dessa semana.
Na semana passada, lemos como Moisés foi enviado por D-s para conduzir os israelitas para a liberdade, e como fracassaram seus esforços iniciais. Não só o Faraó não concordou em deixar o povo ir; ele ainda fez as condições de trabalho dos israelitas piorar. Eles tinham que fazer a mesma quantidade de tijolos como antes, mas agora eles tinham que reunir a sua própria palha. As pessoas queixaram-se ao Faraó; depois queixaram-se a Moisés; E Moisés queixou-se a D-s. “Por que você trouxe problemas a este povo? Por que você me enviou?”

No início da parashá desta semana D-s diz a Moisés que ele vai realmente levar os israelitas a liberdade, e lhe diz para anunciar isso ao povo. Então nós lemos o seguinte:

Então Moisés disse isso para os israelitas, mas eles não lhe deram ouvidos, porque o seu espírito estava abatido e porque o trabalho era duro (Ex. 6:9).

A frase parece bastante simples. As pessoas não ouvem Moisés porque ele havia trazido anteriormente mensagens de D-s e nada aconteceu para melhorar a situação. Eles estavam ocupados tentando sobreviver no dia a dia. Eles não tinham tempo para promessas utópicas que pareciam não ter nenhum fundamento na realidade. Moisés não conseguiu libertá-los no passado. Eles não tinham nenhuma razão para pensar que ele iria conseguir fazê-lo no futuro. Simples assim.

Mas há algo mais sutil acontecendo sob a superfície. Quando Moisés se encontrou inicialmente com D-s na sarça ardente, D-s lhe disse para liderar e Moisés se negava com o fundamento de que o povo não iria ouvi-lo. Ele não era um homem com facilidade na fala. Ele era pesado de boca e língua. Ele era um homem “incircunciso de lábios”. Faltava-lhe a eloquência. Ele não poderia influenciar multidões. Ele não era um líder inspirador.

Aconteceu, porém, que Moisés estava tanto certo quanto errado; certo porque eles não lhe dariam ouvidos, mas errado sobre o porquê disso. Não tinha nada a ver com seus fracassos como líder ou orador público. Na verdade, não tinha nada a ver com Moisés. Eles não escutaram “porque seu espírito estava abatido e porque o trabalho era duro”. Em outras palavras: se você quer melhorar a situação espiritual das pessoas, em primeiro lugar deve melhorar a sua situação física. Esse é um dos aspectos mais humanizadores do judaísmo.

Maimônides enfatiza isso no seu Guia dos Perplexos (1). A Torá, diz ele, tem dois objetivos: o bem-estar da alma e o bem-estar do corpo. O bem-estar da alma é algo interior e espiritual, mas o bem-estar do corpo requer uma sociedade e economia fortes, onde há o estado de direito, divisão do trabalho e promoção do comércio. Temos bem-estar corporal quando todas as nossas necessidades físicas são supridas, mas nenhum de nós pode fazer isso por conta própria. Nós nos especializamos em algum assunto e interagimos e trocamos com as demais pessoas. Por isso precisamos de uma sociedade boa, forte e justa.

A realização espiritual, diz Maimônides, é maior do que a realização material, mas precisamos garantir esta última em primeiro lugar, porque “uma pessoa que sofre de muita fome, sede, calor ou frio, não pode compreender uma ideia, mesmo se for comunicada por outros, muito menos pode ela mesma chegar a tais ideias por seu próprio raciocínio”. Em outras palavras, se não tivermos necessidades físicas básicas supridas, não há nenhuma maneira de podermos atingir alturas espirituais. Quando o espírito das pessoas está abatido pelo trabalho duro, elas não podem ouvir um Moisés. Se você quer melhorar a situação espiritual das pessoas, em primeiro lugar melhore as suas condições físicas.

Nos tempos modernos foi dada a expressão clássica sobre essa ideia por dois psicólogos judeus de Nova York, Abraham Maslow (1908-1970) e Frederick Herzberg (1923-2000). Maslow era fascinado pela questão de por que muitas pessoas nunca atingiam todo o seu potencial. Ele também acreditava – como mais tarde fez Martin Seligman, criador da Psicologia Positiva – que a psicologia deve incidir não só sobre a cura da doença, mas também sobre a promoção da saúde mental. Sua mais famosa contribuição para o estudo da mente humana foi sua “hierarquia das necessidades”.

Nós não somos apenas um mero punhado de vontades e desejos. Há uma ordem clara para as nossas preocupações. Maslow enumerou cinco níveis. Primeiro são as nossas necessidades fisiológicas: comida e abrigo, os requisitos básicos de sobrevivência. Em seguida, vêm as necessidades de segurança: proteção contra danos causados ​​a nós por outros. Em terceiro lugar está a nossa necessidade de amor e de pertencimento. Acima disso vem o nosso desejo de reconhecimento e estima. Ainda acima está o desejo de auto realização: realizar nosso potencial, nos tornando a pessoa que sentimos que podemos e devemos ser. Em seus últimos anos, Maslow adicionou um estágio ainda maior: a autotranscedência, elevar-se para além do ego através do altruísmo e da espiritualidade.

Herzberg simplificou toda essa estrutura distinguindo entre fatores físicos e psicológicos. Ele chamou os primeiros, necessidades de Adão, e os segundos, necessidades de Abraão. Herzberg estava particularmente interessado no que motiva as pessoas no trabalho. O que ele percebeu no final de 1950 – uma ideia revivida mais recentemente pelo economista americano-israelense Dan Ariely – é que o dinheiro, o salário e as recompensas financeiras (opções de ações e outros benefícios), não são o único motivador. As pessoas não trabalham necessariamente melhor, mais árdua ou mais criativamente, quanto mais elas ganham. Dinheiro funciona até um certo nível, mas para além disso, o real motivador é o desafio de crescer, criar, encontrar significado, e investir os seus maiores talentos em uma grande causa. Dinheiro fala às necessidades de “nosso Adão”, mas o significado fala às necessidades que “nosso Abraão” precisa.

É fato que os judeus e o judaísmo têm uma tendência a observar e viver mais plenamente do que muitas outras civilizações e religiões. A maioria das religiões são culturas de aceitação. Há pobreza, fome e doença na terra porque assim é o mundo; é assim que D-s fez e quer que seja. Sim, nós podemos encontrar a felicidade, nirvana ou alegria, mas para alcançar tais estados você precisa fugir do mundo, por meio de meditação, se retirando para um mosteiro, ou por meio de drogas e estados de transe, ou esperando pacientemente pela alegria que nos aguarda no mundo vindouro. A religião nos anestesia da dor.

Isso não é o judaísmo de jeito algum. Quando se trata de pobreza e das dores do mundo, a nossa é uma religião de protesto, não de aceitação. D-s não quer que as pessoas sejam pobres, famintas, doentes, oprimidas, sem instrução, privadas de direitos ou sujeitas a abusos. Ele nos fez Seus agentes nessa causa. Ele quer que sejamos seus parceiros na obra da redenção. É por isso que tantos judeus se tornaram médicos lutando contra doenças, advogados lutando contra a injustiça ou educadores lutando contra a ignorância. É certamente por isso que eles têm produzido tantos economistas pioneiros (e ganhadores de Prêmios Nobel). Como Michael Novak (citando Irving Kristol) escreve:

O pensamento judaico sempre se sentiu à vontade com certas coisas mundanas quando bem ordenadas, enquanto o cristão sempre sentiu uma tendência para a imaterialidade. O pensamento judaico teve uma franca orientação para com a propriedade privada, ao passo que o pensamento católico – articulado em um tempo antigo principalmente entre padres e monges – tem persistentemente tentado dirigir a atenção de seus adeptos para além das atividades e interesses deste mundo para o próximo. Como resultado, tutelado pela lei e por profetas, os judeus comuns há muito sentem-se mais à vontade neste mundo, enquanto os católicos comuns têm considerado este mundo como um vale de tentações e como uma distração de seu próprio negócio, que é a preparação para o mundo vindouro (2).

D-s deve ser encontrado neste mundo, não apenas no próximo. Mas para subirmos às alturas espirituais precisamos antes satisfazer nossas necessidades materiais. Abraão era maior do que Adão, mas Adão veio antes de Abraão. Quando o mundo físico é árduo, o espírito humano fica abatido, então as pessoas não podem ouvir a palavra de D-s, mesmo quando transmitida por um Moisés.

Levi Yitzhak de Berditchev disse muito bem: “Não se preocupe com o estado da alma de outra pessoa e as necessidades de seu próprio corpo. Preocupe-se com as necessidades do corpo de outra pessoa e do estado de sua própria alma”.

Aliviar a pobreza, curar doenças, assegurar o estado de direito e o respeito aos direitos humanos: essas são tarefas espirituais tanto quanto a oração e o estudo da Torá. Certamente estas últimas são mais elevadas, mas as anteriores devem vir primeiro. As pessoas não podem ouvir a mensagem de D-s se seu espírito está abatido e seu trabalho é árduo demais.

NOTAS:
(1) Livro III, capítulo 27.
(2) Michael Novak, This Hemisphere of Liberty, Washington DC, American Enterprise Institute, 1990, 64.

Texto original: “TURNING CURSES INTO BLESSINGS” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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