VAETCHANAN

Posted on agosto 4, 2017

VAETCHANAN

Filosofia ou Profecia?

Qual foi o primeiro mandamento? Sobre isso, existem dois desentendimentos fascinantes no judaísmo. Um deles foi entre Moisés Maimônides (1135-1204) e o autor do Halachot Guedolot, escrito no período dos Gueonim, provavelmente por R. Shimon Kayyara (século VIII), que pela primeira vez enumerou de maneira sistemática os 613 mandamentos. O outro foi entre Maimônides e o poeta e pensador Judá Halevi (1080-1145). Esses foram dois argumentos diferentes, e eles tocaram, como veremos, nos fundamentos da fé.

O primeiro desentendimento é simplesmente esse: Maimônides considera a linha de abertura dos Dez Mandamentos: “Eu sou o Senhor seu D-s, que o tirou do Egito, da terra da escravidão” como um mandamento positivo, para acreditar em D-s [1]. O Halachot Guedolot não o considera como um mandamento. Por que não?

Nachmânides (1194-1270), em defesa do Halachot Guedolot [2], especula que seu autor contou entre os 613 mandamentos apenas as leis específicas que nos impõem fazer isso ou evitar fazer isso. Os mandamentos são regras de comportamento, não itens de fé. A fé na existência de D-s, ou a aceitação da realeza de D-s, não é um mandamento em si, mas um prelúdio e pressuposição dos mandamentos. Ele cita uma passagem do Mechilta:

“Vocês não terão outros deuses além de mim”. Por que isso é dito? Porque diz: “Eu sou o Senhor seu D-s”. Para explicar isso por meio de uma parábola: Um rei de carne e sangue entrou em uma província. Seus servos disseram-lhe: “Emita decretos para o povo”. Ele, porém, disse-lhes: “Não. Quando aceitarem minha soberania, emitirei decretos. Pois se eles não aceitam minha soberania, como eles realizarão meus decretos?”

De acordo com Nachmânides, o Halachot Guedolot deve ter acreditado que o versículo, “Eu sou o Senhor seu D-s, que te tirou do Egito, da terra da escravidão”, não é um mandamento em si, mas uma declaração do porquê os israelitas deveriam estar ligados pela vontade de D-s. Ele os havia resgatado, libertado e levado à segurança. O primeiro versículo do Decálogo não é uma lei, mas uma declaração de fato, uma razão pela qual os israelitas deveriam aceitar a soberania de D-s.

Graças às descobertas arqueológicas, sobre as quais escrevi em meu texto sobre parashá passada, agora sabemos que a aliança bíblica tem a mesma estrutura literária que os antigos tratados políticos do Oriente Médio. Esses tratados geralmente seguem um padrão de seis partes, dos quais os três primeiros elementos eram: [1] o preâmbulo, identificando o iniciador do tratado; [2] uma revisão histórica, resumindo a relação passada entre as partes e; [3] as estipulações, notadamente os termos e condições da aliança.

Visto neste contexto, o primeiro versículo dos Dez Mandamentos é uma forma altamente resumida de [1] e [2]. “Eu sou o Senhor seu D-s” é o preâmbulo. “Quem te tirou do Egito, da terra da escravidão” é a revisão histórica. Os versículos que se seguem são as estipulações ou, como as chamaríamos, os mandamentos. Sendo assim, então o Halachot Guedolot, tal como foi entendido por Nachmânides, estava correto ao ver o versículo como uma introdução aos mandamentos e não um mandamento em si. Esse é o primeiro desacordo.

O segundo desentendimento foi entre Maimônides e Judá Halevi. Para Maimônides, o primeiro mandamento é acreditar em D-s, criador do céu e da terra:

O princípio básico de todos os princípios básicos e o pilar de todas as ciências é perceber que existe um Primeiro Ser que trouxe todas as coisas à existência…

Se pudesse ser suposto que Ele não existia, seria de se esperar que nada mais pudesse existir. Se, no entanto, supuséssemos que todos os outros seres eram inexistentes, Ele sozinho ainda existiria… Reconhecer esta verdade é um mandamento positivo, como está dito: “Eu sou o Senhor seu D-s” (Êxodo 20:2; Deuteronômio 5:7) [3].

Judá Halevi discordou. Halevi não era apenas o maior dos poetas hebreus medievais, ele também escreveu uma das obras-primas teológicas do Judaísmo, O Kuzari. A obra é ambientada em um diálogo entre um rabino e o Rei dos Khazars. Historicamente, os Khazars eram um povo turco que, entre os séculos VII e XI, governava uma área considerável entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, incluindo o sul da Rússia, o norte do Cáucaso, o leste da Ucrânia, o oeste do Cazaquistão e o noroeste do Uzbequistão.

Muitos negociantes e refugiados judeus viveram ali e, em 838, o Khazar King Bulan se converteu ao judaísmo, supostamente após realizar um debate entre representantes das religiões judaica, cristã e muçulmana. O escritor árabe Dimashqi escreve que os Khazars, tendo encontrado a fé judaica, “acharam-na melhor do que a sua e a aceitaram”. Khazaria então tornou-se, espiritual e geograficamente, uma terceira força independente entre o califado muçulmano e o Império Bizantino cristão. Após sua conversão, o povo de Khazar usou nomes pessoais judaicos, falou e escreveu em hebraico, foi circuncidado, teve sinagogas e rabinos, estudou a Torá e o Talmud e observou as festividades judaicas.

O Kuzari é o relato abrangente de Judá Halevi sobre o judaísmo, lançado sob a forma de uma conversa imaginária entre o rei e um rabino que levou à conversão do rei. Nela, Halevi desenha um retrato diametralmente oposto ao relatado por Maimônides. O judaísmo, para Halevi, não é filosófico, mas é contra-filosófico. Não se trata de conceitos abstratos, mas de experiências concretas: o gosto da escravidão, o sentimento de libertação, a compreensão por parte do povo de que D-s ouviu seu choro e os libertou. O D-s de Abraão não é o D-s de Aristóteles. Os profetas não eram filósofos. Os filósofos encontraram D-s na física e na metafísica, mas os profetas encontraram D-s na história. É assim que o rabino de Halevi explica sua fé ao rei dos Khazars:

Eu acredito no D-s de Abraão, Isaac e Israel, que tirou os filhos de Israel do Egito com sinais e milagres; que os alimentou no deserto e deu-lhes a terra, depois de trazê-los através do mar e do Jordão de forma milagrosa… (Kuzari I:11).

Ele continua e enfatiza que as palavras de abertura de D-s na revelação no Monte Sinai não foram “Eu sou o Senhor seu D-s, criador do céu e da terra”, mas “Eu sou o Senhor seu D-s, que o tirou do Egito, da terra da escravidão” (Kuzari I:25). A aliança que D-s fez com os israelitas no Monte Sinai não foi enraizada no antigo passado da criação, mas no passado recente do êxodo.

O que está em jogo nesta diferença de opinião entre Maimônides e Halevi? No coração do judaísmo há um duplo entendimento da natureza de D-s e Seu relacionamento com o universo. Por um lado, D-s é o criador do universo e o criador da pessoa humana “à Sua imagem”. Esse aspecto de D-s é universal. É acessível a qualquer um, judeu ou gentio. Aristóteles chegou a isso através da lógica e da metafísica. Para ele, D-s foi o “Ser Supremo” que colocou o universo em movimento. Hoje, muitas pessoas alcançam a mesma conclusão através da ciência: o universo é organizado muito perfeitamente para que o surgimento da vida tenha acontecido através do acaso. Alguns chegam a isso não através da lógica ou da ciência, mas através de um simples sentimento de estarrecimento e assombro (“Não como o mundo é, mas que ele é, é o místico” disse Wittgenstein). Esse aspecto de D-s é chamado pela Torá, Elokim.

Mas há um aspecto bastante diferente de D-s que predomina na maior parte do Tanach. Este é D-s tal qual envolvido no destino de uma família, uma nação: os filhos de Israel. Ele interferiu na sua história. Ele fez uma aliança altamente específica com eles no Sinai – de modo algum parecida com a aliança geral que Ele fez com Noé e toda a humanidade após o dilúvio. A aliança Noética é simples e básica: envolveu apenas sete mandamentos. A aliança do Sinai, em contraste, é altamente articulada, cobrindo quase todos os aspectos da vida. Esse aspecto de D-s é sinalizado pelo uso do nome de quatro letras, para o qual tradicionalmente substituímos para a palavra Hashem [4].

Maimônides, o filósofo, enfatizou o aspecto universal, metafísico do judaísmo e a existência eterna e imutável de D-s. Judá Halevi, o poeta, estava mais em sintonia com a dimensão particularista e profética do judaísmo: o papel de D-s no drama histórico do povo judeu.

Maimônides foi o maior halachista e filósofo da Idade Média, mas é difícil evitar a conclusão de que, pelo menos aqui, o Halachot Guedolot e Judá Halevi estavam mais próximos do sentido simples do texto. Mesmo o maior pensador não está certo o tempo todo; e é por isso que o judaísmo continua sendo uma conversa marcada por muitas vozes, cada uma com seu próprio insight das infinitas inflexões da palavra Divina.

 

 

NOTAS:
[1] Maimônides, Sefer haMitzvot, mandamento positivo 1
[2] Nachmânides, Hasagot para Sefer haMitzvot, ad loc. Essa não é a própria posição de Nachmânides. Em seu Comentário à Torá (para Êxodo 2), ele considera o primeiro versículo do Decálogo como um mandamento, adotando uma visão semelhante à de Maimônides
[3] Mishnê Torá, Yesodê haTorá, 1:1-5
[4] Sobre os dois aspectos e nomes veja Kuzari IV:1-3; e Ramban para Êxodo 3:13.

 

 

Texto original: “PHILOSOPHY OR PROPHECY” Por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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