VAYAKHEL

Posted on março 4, 2016

VAYAKHEL

O Animal Social

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

No início de Vayakhel Moisés realiza um tikun, um conserto do passado, qual seja, do pecado do Bezerro de Ouro. A Torá sinaliza isso utilizando essencialmente a mesma palavra no início de ambos os episódios. Ao final tornou-se uma palavra-chave na espiritualidade judaica: k-h-l, “significando juntar, congregar, reunir”. A partir dela temos as palavras kahal e Kehilá, que significam “comunidade”. Longe de ser apenas uma preocupação antiga, ela permanece no coração da humanidade. Como veremos, a investigação científica recente confirma o extraordinário poder das comunidades e redes sociais para moldar nossas vidas.

Em primeiro lugar, a história bíblica. O episódio do Bezerro de Ouro começou com estas palavras: “Quando o povo viu que Moisés tardava em descer da montanha, eles se reuniram [Vayakhel] em torno de Aarão…” (Ex. 32:1). No início da parashá desta semana, depois de ter recebido o perdão de D-s e ter trazido um segundo conjunto de tábuas, Moisés começou o trabalho de se dedicar ao povo: “Moises juntou [Vayakhel] toda a congregação israelita…” (Ex. 35:1). Eles haviam pecado como uma comunidade. Agora eles estavam prestes a serem reconstituídos como uma comunidade. A espiritualidade judaica é antes de tudo uma espiritualidade comunitária. Observe, também, exatamente o que Moisés faz na parashá desta semana. Ele dirige a atenção para os dois grandes centros de comunidade no judaísmo, um no espaço, outro no tempo. O do tempo é o Shabat. O do espaço foi o Mishkan, o Tabernáculo, que levou finalmente ao Templo e, posteriormente, à sinagoga. Eis onde a Kehilá vive mais poderosamente: no Shabat, quando deixamos de lado nossos afazeres e desejos particulares e nos unimos como uma comunidade; e na sinagoga, onde a comunidade tem a sua casa. O judaísmo atribui a maior importância ao indivíduo. Cada vida é como um universo. Cada um de nós, embora sejamos todos “à imagem de D-s”, somos diferentes, portanto, únicos e insubstituíveis. No entanto, a primeira vez que as palavras “não é bom” aparecem na Torá é no verso: “Não é bom que o homem esteja só” (Gen. 2:18). Muito do Judaísmo trata da forma e da estrutura de nossa união. Ela valoriza o indivíduo, mas não endossa o individualismo.

A nossa religião é de comunidade. Nossas orações mais sagradas só podem ser ditas na presença de um minian, a definição mínima de uma comunidade. Quando rezamos, o fazemos como uma comunidade. Martin Buber falou do Eu-e-Você, mas o judaísmo é realmente uma questão de Nós-e-Você. Assim sendo, para expiar o pecado que os israelitas cometeram como uma comunidade, Moisés procurou consagrar a comunidade no tempo e no espaço.

Isso tornou-se uma das diferenças fundamentais entre a tradição e a cultura contemporânea do ocidente. Podemos traçar isso nos títulos dos três livros de referência sobre a sociedade americana. Em 1950, David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney publicaram um livro perspicaz sobre a mudança no caráter da sociedade americana, chamado The Lonely Crowd (‘multidão solitária’). Em 2000, Robert Putnam de Harvard publicou Bowling Alone (‘jogando boliche sozinho’), um relato de como mais americanos do que nunca estavam jogando boliche, mas poucos estavam se juntando aos clubes e ligas do esporte. Em 2011, Sherry Turkle, do MIT, publicou um livro sobre o impacto dos smartphones e softwares de redes sociais chamado Alone Together (‘junto-sozinho’).

Ouçam esses títulos. Cada um deles trata sobre o avanço da tendência da solidão, os estágios sucessivos no longo e prolongado colapso da comunidade na vida moderna. Robert Bellah coloca de forma eloquente quando escreveu que “a ecologia social está danificada, não só pela guerra, genocídio e repressão política. Também está danificada pela destruição dos laços sutis que ligam os seres humanos uns aos outros, deixando-os com medo e sozinhos” (1). É por isso que os dois temas de Vayakhel – Shabat e Tabernáculo, hoje a sinagoga – permanecem fortemente contemporâneos. Eles são antídotos para a tranquilizar a comunidade. Eles ajudam a restaurar “os laços sutis que ligam os seres humanos uns aos outros”. Eles nos reconectam à comunidade.

Considere o Shabat. Michael Walzer, o filósofo político de Princeton, chama a atenção para a diferença entre os feriados e dias santos (ou como ele diz, entre férias e Shabat) (2). A ideia de um período de férias como um feriado privado é relativamente recente. Walzer remete este conceito para os anos de 1870. Sua essência é o seu carácter individualista (ou familiar). “Todo mundo planeja suas próprias férias, vai para onde quiser ir, faz o que quer fazer”. Shabat, ao contrário, é essencialmente coletivo: “você, seu filho e filha, seu servo e serva, seu boi, seu jumento, seus outros animais, e o estrangeiro em teus portões”. É público, compartilhado, propriedade de todos nós. Férias são mercadorias. Nós as compramos. Shabat não é algo que se compre. Ele está disponível para cada um nos mesmos termos: “enviado para todos, apreciado por todos”. Nós tiramos férias como indivíduos ou famílias. Nós celebramos o Shabat como uma comunidade. Algo semelhante é verdadeiro sobre a sinagoga – a instituição judaica, singular no nosso tempo, que foi adotada pelo Cristianismo e pelo Islã na forma de igreja e mesquita. Já mencionamos o argumento de Robert Putnam em Bowling Alone, que os americanos estavam se tornando mais individualistas. Houve uma perda, diz ele, de “capital social”, isto é, os laços que nos unem na responsabilidade compartilhada pelo bem comum.

Uma década depois, Putnam revisou sua tese. O capital social, disse ele, ainda existe, e você pode encontrá-lo em igrejas e sinagogas. Participantes regulares em um local de culto eram – assim mostrou sua pesquisa – mais propensos do que outros a dar dinheiro para a caridade, se envolver em trabalho voluntário, doação de sangue, passar tempo com alguém que está deprimido, oferecer um assento a um estranho, ajudar a encontrar emprego para alguém, e muitas outras medidas de ativismo cívico, moral e filantrópico. Eles têm, simplesmente, mais espírito público do que outros. A frequência regular a uma casa de culto é o indicador mais preciso do altruísmo, mais do que qualquer outro fator, incluindo gênero, educação, renda, raça, região, estado civil, ideologia e idade.

A mais fascinante de suas descobertas é que o fator predominante é ser parte de uma comunidade religiosa. O que acabou por não ser relevante é no que você acredita. Os resultados da pesquisa sugerem que um ateu que vai regularmente a uma casa de culto (talvez para acompanhar um cônjuge ou um filho) é alguém com mais probabilidade de ser voluntário em uma distribuição de alimentos do que um crente fervoroso que reza sozinho. O fator predominante é novamente a comunidade.

Isso pode muito bem ser uma das funções mais importantes da religião em uma era secular, ou seja, mantendo a comunidade viva. A maioria de nós precisa da comunidade. Somos animais sociais. Os biólogos evolucionários sugeriram recentemente que o enorme aumento no tamanho do cérebro representado pelo Homo sapiens foi especificamente para nos permitir formar redes sociais mais extensas. É a capacidade humana para cooperar em grandes equipes – mais do que o poder da razão – que nos destaca de outros animais. Como diz a Torá, não é bom estar sozinho.

Uma pesquisa recente mostrou outra coisa também. As pessoas com quem você se associa tem um forte impacto sobre o que você faz e se torna. Em 2009, Nicholas Christakis e James Fowler fizeram uma análise estatística de um grupo de 5.124 indivíduos e seus 53.228 laços com amigos da família e colegas de trabalho. Eles descobriram que se um amigo começa a fumar, torna-se significativamente mais provável (36 por cento) que você também vai fazê-lo. O mesmo se aplica para a bebida, estética, obesidade, e muitos outros padrões comportamentais (4). Nós nos tornamos semelhantes às pessoas que nos cercam mais proximamente.

Um estudo de alunos no Dartmouth College em 2000 descobriu que se você dividir um quarto com alguém com bons hábitos de estudo, isso provavelmente irá aumentar o seu próprio desempenho. Um estudo de 2006 em Princeton mostrou que se o seu irmão tem um filho, torna-se 15 por cento mais provável que você também terá um, dentro dos próximos dois anos. Existe algo como “contágio social”. Somos profundamente influenciados por nossos amigos – como, aliás, Maimônides colocou no seu código de leis, o Mishnê Torá (Leis de traços de caráter, 6:1).

O que nos traz de volta a Moisés e Vayakhel. Ao colocar a comunidade no coração da vida religiosa e dando-lhe uma casa no espaço e no tempo – a sinagoga e o Shabat – Moisés estava demonstrando o poder da comunidade para o bem, como o episódio do Bezerro de Ouro tinha mostrado seu poder para o mal. A espiritualidade judaica é, na sua maior parte, profundamente comunal. Daí a minha definição de fé judaica: a redenção da nossa solidão.

NOTAS:
(1) Robert Bellah et al., Habits of the heart: individualism and commitment in American life, Berkeley: University of California Press, 1985, 284.
(2) Michael Walzer, Spheres of Justice, Oxford, Blackwell, 1983, 190-196.
(3) Robert Putnam e David E. Campbell, American Grace: How Religion Divides and Unites Us, New York: Simon & Schuster, 2010.
(4) Nicholas Christakis e James H. Fowler, Connected: The Surprising Power of Our Social Networks and How They Shape Our Lives. New York: Little, Brown, 2009.

Texto original: “THE SOCIAL ANIMAL” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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