VAYERÁ

Posted on outubro 24, 2018

VAYERÁ

Deus e Estranhos

D-s apareceu para Abraão pelos carvalhos de Mamrê, sentado à entrada de sua tenda no calor do dia. Ele ergueu os olhos e olhou, e eis que três homens estavam de pé de encontro a ele; e quando os viu, correu ao encontro deles na entrada da tenda, e inclinou-se para a terra… (18: 1–2)

Assim, Parashá Vayerá abre com uma das cenas mais famosas da Bíblia: o encontro de Abraão com os três estranhos enigmáticos. O texto os chama de homens. Mais tarde descobrimos que eles eram de fato anjos, cada um com uma missão específica.

O capítulo à primeira vista parece simples, quase como uma fábula. É, no entanto, complexo e ambíguo. Consiste em três seções:
Versículo 1: D-s aparece a Abraão.
Versículos 2–16: Abraão encontra os homens / anjos.
Versículos 17–33: O diálogo entre Deus e Abraão sobre o destino de Sodoma.

A relação entre essas seções está longe de ser clara. Eles representam uma cena, dois ou três?

A possibilidade mais óbvia é de três. Cada uma das seções acima é um evento separado. Primeiro, D-s aparece a Abraão, como explica Rashi, “para visitar os enfermos” [1] após a circuncisão de Abraão. Então os visitantes chegam com a notícia de que Sarah terá um filho. Em seguida, ocorre o grande diálogo sobre a justiça e o iminente castigo do povo de Sodoma.

Maimônides sugere que existem apenas duas cenas: a visita dos anjos e o diálogo com D-s. O primeiro verso não descreve um evento; é, ao contrário, um título de capítulo. [2] Diz-nos que os eventos que se seguem fazem parte de uma revelação profética, um encontro divino-humano.

A terceira possibilidade é que temos uma única cena contínua. D-s aparece a Abraão, mas antes que Ele possa falar, Abraão vê os transeuntes e pede a D-s que espere enquanto ele lhes serve comida. Somente quando eles partiram – no versículo 17 – ele se volta para D-s, e a conversa começa.

A interpretação do capítulo afeta – e depende – da maneira como traduzimos a palavra Adonai no apelo de Abraão: “Por favor Adonai, se agora tenho achado graça diante de ti, não passe, peço-te, de teu servo” (18: 3). Adonai pode ser uma referência a um dos nomes de D-s. Também pode ser lido como “meus senhores” ou “senhores”. No primeiro caso, Abraão estaria se dirigindo a D-s. No segundo, ele estaria falando com os transeuntes.
A mesma ambiguidade linguística aparece no próximo capítulo (19: 2), quando dois dos visitantes de Abraão – agora descritos como anjos – visitam Lot em Sodoma:

E os dois anjos vieram a Sodoma à tardinha, e Lot sentou-se junto aos portões da cidade. Quando os viu, levantou-se para encontrá-los e curvou-se: – Peço-te agora, Adonai, volta para a casa de teu servo e dura a noite inteira e te banha, e tu te levantarás cedo e seguirá o teu caminho.”(19: 1–2)

Como não há elemento contextual que sugira que Lot esteja falando com D-s, parece claro, nesse caso, que Adonai se refere aos visitantes.

A leitura mais simples de ambos os textos – o referente a Abraão e o outro, Lot – seria ler a palavra consistentemente como “senhores”. Diversas traduções inglesas adotam essa abordagem. Aqui, por exemplo, está o New English Bible:
O Senhor apareceu a Abraão … Ele olhou para cima e viu três homens de pé diante dele. Quando os viu, correu da abertura de sua tenda para encontrá-los e curvou-se até o chão. “Senhores”, disse ele, “se eu tiver merecido o seu favor, não passe pelo meu eu humilde sem uma visita.”

A tradição judaica, no entanto, não.

Normalmente, como as diferenças de interpretação da narrativa não têm implicações haláchicas. Eles são assuntos de desacordo legítimo. Esse caso do destinatário de Abraão é incomum, no entanto, porque se traduzirmos Adonai como “D-s”, é um nome sagrado, e tanto é uma escrita da palavra por um escriba, como uma maneira como se trata de um pergaminho ou documento que contém restrições especiais na lei judaica. Se ao contrário, traduzimos como “meus senhores” ou “senhores”, não tem santidade especial. A lei judaica rege que na cena com Lot, Adonai é lido como “senhores”, mas nenhum caso de Abraão é lido como “D-s”.

Isto é um fato extraordinário, pois sugere que Abraão na verdade interrompeu D-s quando Ele estava prestes a falar, pedindo-Lhe para esperar enquanto recebia os visitantes. Segundo a tradição, a passagem deveria ser lida assim:

O Senhor apareceu para Abraão… Ele olhou para cima e viu três homens de pé contra ele. Ao vê-los, correu da porta de sua tenda para encontrá-los e curvou-se. [Virando-se para D-s] disse: “Meu D-s, se eu encontrei graça em Seus olhos, não deixa o Teu servo [i.e. Por favor, espere até eu dar hospitalidade para esses homens]. “[Ele vira-se aos homens e diz:] “Deixe-me dar um pouco de água para que vocês possam lavar seus pés e descansar debaixo desta árvore…”[3]

Essa interpretação ousada tornou-se a base para um princípio no judaísmo: “Maior é a hospitalidade que receber a Presença Divina.” [4] Confrontado com a escolha entre ouvir a D-s e oferecer hospitalidade aos que pareciam ser seres humanos, Abraão escolheu o último. D-s aceita seu pedido, e aguarda enquanto Abraão oferece comida e bebida aos visitantes, antes de fazer o diálogo sobre o destino de Sodoma. Como isso pode ser assim? Parece, na melhor das hipóteses, desrespeitoso, herético na pior das hipóteses, colocar as necessidades humanas antes de se atender a presença divina.

O que a passagem está nos dizendo, porém, é algo de imensa profundidade. Os idólatras da época de Abraão adoravam o sol, as estrelas e as forças da natureza como deuses. Eles adoravam o poder e os poderosos. Abraão sabia, no entanto, que D-s não está na natureza, mas além da natureza. Há apenas uma coisa no universo, no qual Ele estabeleceu Sua imagem: a pessoa humana, cada pessoa, poderosa e impotente ao mesmo tempo.

As forças da natureza são impessoais, por isso é que aqueles que as adoram eventualmente perdem sua humanidade.

Como o livro de Salmos coloca:

Seus ídolos são prata e ouro, obra das mãos dos homens.
Eles têm bocas, mas não podem falar,
Olhos, mas não podem ver;
Eles têm ouvidos, mas não conseguem ouvir, narinas mas não podem cheirar…
Eles que os fazem como eles,
E o mesmo acontece com todos os que confiam neles. (Salmos 115: 4–8)

Não se pode adorar forças impessoais e permanecer uma pessoa; compassivo, humano, generoso, perdoador. Precisamente porque acreditamos que D-s é pessoal, alguém para quem se pode dizer “Você”, honramos uma dignidade humana como sacrossanta.

Abraão, pai do monoteísmo, conhecia a verdade paradoxal de viver a vida da fé e do caminho de D-s diante do estranho. É fácil receber a Presença Divina quando D-s aparece como D-s. O que é difícil é sentir a presença quando vem disfarçada de três transeuntes anônimos. Essa foi uma grandeza de Abraão. Ele sabia que servir a D-s e oferecer hospitalidade aos estranhos não eram duas coisas, mas uma.

Em um dos mais bonitos comentários sobre este episódio, o Rabino Shalom de Belz observa que no versículo 2, os visitantes falaram de pé sobre Abraão (nitzavim alav), enquanto no verso 8, Abraão é descrito como de pé sobre eles (omed aleihem). No início, os visitantes eram mais do que Abraão porque eram anjos e ele era mais humano. Porém quando ele dá comida, bebida e abrigo, ele fica ainda mais elevado que os anjos. [5]

Escolhendo a mais radical das três possibilidades interpretações de Gênesis 18, os sábios nos permitem ouvir os mais fundamentais princípios da vida da fé: Honramos D-s honrando a Sua imagem, a humanidade.

Shabat Shalom

 

 

NOTAS
[1] Rashi a Bereshit 18: 1; Sotah 14a.
[2] Moreh Nevuhim 11:42.
[3] Veja Shabat 127a.
[4] Ibid. Veja também Shavuot 35b.
[5] Dover Shalom ad loc. citado em Peninei Hassidut (Jerusalém) para Bereishit 18:2.

 

Texto original “God and Strangers” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger

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