VAYERÁ

Posted on outubro 28, 2015

VAYERÁ

Para Abençoar o Espaço Entre Nós

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Há um mistério no coração da história bíblica de Abraão que tem imensas implicações para o nosso entendimento do judaísmo.
Quem foi Abraão e por que ele foi escolhido? A resposta está longe de ser óbvia. Em nenhum lugar ele é descrito, como foi Noé, “um homem justo, perfeito em sua geração”. Nós não temos nenhum retrato dele, como o jovem Moisés, intervindo fisicamente em conflitos, em protesto contra a injustiça. Ele não era um soldado como David ou um visionário como Isaías. Em apenas um lugar, perto do início da nossa parashá, a Torá diz porque D-s o escolheu:
Então o Senhor disse: “Acaso poderei ocultar de Abraão o que estou prestes a fazer? Abraão vai certamente tornar-se uma nação grande e poderosa, e todas as nações da terra serão abençoadas através dele. Porque eu o escolhi, para que ele oriente os seus filhos e a sua descendência depois dele, para guardar o caminho do Senhor, fazendo o que é certo e justo, de forma que o Senhor vai trazer para Abraão o que ele lhe prometeu”.
Abraão foi escolhido para ser um pai. Na verdade o nome original de Abraão, Av ram, significa “pai poderoso”, e seu nome ampliado, Avraham, significa “pai de muitas nações”.
Tão logo percebemos isso, nós recordamos que a primeira pessoa na história a quem foi dada um nome próprio foi Havá, Eva, porque disse Adão, “ela é a mãe de toda a vida”. Note que a Tora está chamando atenção à maternidade muito antes de fazê-lo com a paternidade (vinte gerações, para ser mais preciso, dez de Adão a Noé, e dez de Noé a Abraão). A razão é que a maternidade é um fenômeno biológico. É comum a quase todas as formas de vida avançada. A paternidade é um fenômeno cultural. Há pouco na biologia que apoia a união monógama, monogamia e fidelidade no casamento, e menos ainda que conecta os homens com sua prole. É por isso que a paternidade sempre precisa de reforço do código moral que opera em uma sociedade. Na ausência disso, as famílias fragmentam-se muito rapidamente, deixando a carga ser esmagadoramente suportada pela mãe abandonada.
Essa ênfase nos genitores – a maternidade, no caso de Eva, e a paternidade no caso de Abraão – é absolutamente central para a espiritualidade judaica, pois o que o monoteísmo de Abraão trouxe ao mundo não foi apenas uma redução matemática do número de deuses de muitos para um. O D-s de Israel não é primariamente o D-s dos cientistas que colocaram o universo em movimento com o Big Bang. Ele não é o D-s dos filósofos, cujo ser é necessário para fortalecer nossa casualidade. Nem é mesmo o D-s dos místicos, o Ein Sof, o Infinito que emoldura nossa finitude. O D-s de Israel é o D-s que nos ama e cuida de nós como os pais amam e cuidam de seus filhos.
Às vezes, D-s é descrito como nosso pai: “Não temos todos um mesmo Pai? Não foi um mesmo D-s quem nos criou?” (Malaquias 2:10) Às vezes, especialmente nos últimos capítulos do livro de Isaías, D-s é descrito como uma mãe: “Como alguém a quem sua mãe consola, assim eu devo te confortar” (Isaías 66:13). “Pode uma mulher esquecer seu filho recém-nascido e não se compadecer do filho do seu ventre? Mesmo estes podem esquecer, mas eu não vou te esquecer” (Isaías 49:15). O principal atributo de D-s, especialmente sempre que o nome de quatro letras de Hashem é usado, é a compaixão, cuja palavra hebraica, Rachamim, vem da palavra Rechem, que significa “um útero”.
Assim, a nossa relação com D-s está profundamente conectada com o nosso relacionamento com nossos pais, e nossa compreensão de D-s é aprofundada se temos a bênção de ter filhos (eu amo a observação de uma jovem mãe judia americana: “Agora que eu me tornei uma progenitora eu acho que posso me relacionar muito melhor com D-s: Agora eu sei o que é criar algo que você não pode controlar”).
Tudo isso torna a história de Abraão muito difícil de entender, por duas razões. A primeira é que Abraão era o filho para quem D-s disse que deixasse seu pai: “Deixe sua terra, o lugar onde nasceu e a casa de teu pai”. A segunda é que Abraão foi o pai para quem D-s disse para sacrificar seu filho: “E disse D-s: Leve o teu filho, o teu único filho, a quem você ama – Isaac – e vá para a terra de Moriá, e ali sacrifique-o como um holocausto na montanha que eu te mostrarei”. Como isso pode fazer sentido? Já é suficientemente duro compreender D-s comandando essas coisas para qualquer pessoa, ainda mais tendo D-s escolhido Abraão especificamente para se tornar um modelo do papel para o relacionamento pai-filho.
A Torá está nos ensinando algo fundamental e paradoxal. É preciso haver separação antes que possa haver ligação. Nós temos que ter um espaço para sermos nós mesmos se quisermos ser bons filhos para nossos pais, e nós temos que permitir a nossos filhos o espaço para serem eles mesmos se quisermos ser bons pais.
Eu argumentei na semana passada que Abraão estava de fato continuando uma jornada que seu pai Terach já havia começado. Contudo, é preciso uma certa maturidade de nossa parte antes de perceber isso, já que a nossa primeira leitura da narrativa parece sugerir que Abraão estava prestes a partir em uma viagem que era completamente nova. Abraão, na famosa tradição midráshica, foi o iconoclasta que levantou um martelo para os ídolos de seu pai. Só mais tarde na vida podemos apreciar plenamente que, apesar de nossas rebeliões adolescentes, há mais de nossos pais em nós do que pensávamos quando éramos jovens. Mas antes que possamos apreciar isso é preciso haver um ato de separação.
Da mesma forma no caso de prender Isaac para o sacrifício. Há muito que defendo que a questão da história não é que Abraão amou D-s o suficiente para sacrificar seu filho, mas sim que D-s estava ensinando a Abraão que nós não possuímos nossos filhos, por mais que os amemos. O primeiro filho humano foi chamado Caim porque sua mãe Eva disse: “Com a ajuda de D-s eu adquiri [kaniti] um homem” (Gen. 4:1). Quando os pais pensam que possuem seus próprios filhos, o resultado muitas vezes é trágico.
Primeiro separar, em seguida, juntar. Primeiro individualizar, em seguida, se relacionar. Esse é um dos fundamentos da espiritualidade judaica. Nós não somos D-s. Ele também não é quem somos. É a clareza das fronteiras entre o céu e a terra que nos permite ter um relacionamento saudável com D-s. É verdade que o misticismo judaico fala sobre bitul ha-yesh, a anulação completa do “eu” à luz infinita e abrangente de D-s, mas isso não é a corrente principal normativa da espiritualidade judaica. O que é tão impressionante sobre os heróis e heroínas da Bíblia hebraica é que quando eles falam com D-s, eles permanecem sendo eles mesmos. D-s não nos oprime nem domina. Esse é o princípio que os cabalistas chamam tzimtzum, a autolimitação de D-s. D-s abre espaço para que sejamos nós mesmos.
Abraão teve de separar-se de seu pai antes que ele, e nós, pudéssemos entender o quanto ele devia a seu pai. Ele teve que separar-se de seu filho Isaac, de forma que Isaac pudesse ser Isaac e não simplesmente um clone de Abraão. Rabino Menachem Mendel, o Rebe de Kotzk, coloca isto inconfundivelmente quando ele disse: “Se eu sou eu porque eu sou eu, e você é você porque você é você, então eu sou eu e você é você. Mas se eu sou eu porque você é você, e você é você porque eu sou eu, então eu não sou eu e você não é você!”
D-s nos ama como um pai ama um filho – mas um pai que ama verdadeiramente seu filho abre espaço para a criança desenvolver a sua própria identidade. É o espaço que criamos um para o outro que permite que o amor seja como a luz solar para uma flor, não como uma árvore para as plantas que crescem abaixo dela. O papel do amor, humano e divino, é, na bela frase do poeta irlandês John O’Donohue, “para abençoar o espaço entre nós”.

Texto original: “TO BLESS THE SPACE BETWEEN US” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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