VAYKRÁ

Posted on março 14, 2018

VAYKRÁ

O Chamado

Nunca foi minha ambição ou aspiração tornar-me um rabino. Eu fui para a universidade para estudar economia. Eu então mudei para psicologia. Eu também tinha uma fascinação pelos advogados da sala do tribunal Britânico; figuras legendárias como Marshall Hall, Rufus Isaacs e F. E. Smith. De fato, mais tarde, eu estudei para o rabinato, mas isso foi para que eu pudesse me tornar letrado na minha própria herança judaica, não para fazer carreira.

O que me mudou, profissionalmente e existencialmente, foi a minha segunda grande yechidut – conversa cara-a-cara, – com o Rebe de Lubavitch, em janeiro de 1978. Para minha surpresa, ele vetou todas as minhas opções de carreira: economista, advogado, acadêmico, até mesmo tornar-me rabino nos Estados Unidos. Minha tarefa, ele disse, era treinar rabinos. Havia pouquíssimas pessoas na Grã-Bretanha indo para o rabinato e era minha missão mudar isso.

Além disso, ele disse, eu deveria me tornar um rabino de congregação, não como um fim em si mesmo, mas para que meus alunos pudessem vir e ver como eu ministrava os sermões (ainda posso lembrar da voz dele dizendo essa palavra com um acento russo marcado: sirmons). Ele também foi altamente específico quanto a onde eu deveria trabalhar: no Jews’ College (hoje, a London School of Jewish Studies), o mais antigo seminário rabínico existente no mundo de língua inglesa.

Foi o que fiz. Tornei-me professor no Colégio, e mais tarde Diretor. Ao final tornei-me – novamente após consultar-me com o Rebe – Rabino-Chefe. Por tudo isso, tenho que agradecer não somente ao Rebe, mas também à minha esposa Elaine. Ela não foi consultada ou tinha aceitado isso quando nos casamos. Isso não estava em nossos planos. Mas sem o seu apoio constante, eu não poderia ter feito nada disso.

Conto essa história por um motivo: para ilustrar a diferença entre um dom e uma vocação, entre aquilo que somos bons e aquilo que somos chamados a fazer. Essas são duas coisas muito diferentes. Eu conheci grandes juízes que também eram pianistas brilhantes. Wittgenstein estudou engenharia aeronáutica, mas acabou por dedicar sua vida à filosofia. Ronald Heifetz qualificou-se como médico e músico, mas ao invés de praticar qualquer uma dessas profissões, tornou-se o fundador da Escola de Liderança Pública da Escola de Governo John F Kennedy em Harvard. Podemos ser bons em muitas coisas, mas o que dá direção e sentido para a vida é um senso de missão, de algo que somos chamados a fazer.

Esse é o significado da palavra de abertura da parashá de hoje, que dá seu nome ao livro inteiro: Vaykrá, “Ele chamou”. Olhe atentamente para o verso e você verá que sua construção é estranha. Traduzindo literalmente lê-se: “Ele chamou Moisés, e D-s falou com ele da Tenda da Reunião, dizendo…”. A primeira frase parece ser redundante. Se já está dito que D-s falou com Moisés, por que dizer adicionalmente, “Ele chamou”?

A resposta é que o chamado de D-s para Moisés era algo anterior e diferente do que D-s iria dizer. Na parte final estavam os detalhes. Na parte inicial estava a convocação, a missão – não diferente do primeiro chamado de D-s para Moisés na sarça ardente onde Ele o convidou a realizar a tarefa que definiria sua vida: conduzir o povo, retirando-o do exílio e da escravidão, para a liberdade na Terra Prometida.

Por que essa segunda chamada? Provavelmente porque o livro de Vaykrá não tem, superficialmente, nada a ver com Moisés. O nome original dado ao livro pelos sábios foi Torat Cohanim, “ A Lei dos Sacerdotes” (1) – e Moisés não era um sacerdote. Esse papel pertencia ao seu irmão Aarão. Então era como se D-s estivesse dizendo a Moisés: isso também faz parte de sua vocação. Você não é um sacerdote, mas você é o veículo através do qual eu revelo todas as Minhas leis, incluindo as dos sacerdotes.

Nós tendemos a considerar o conceito de uma vocação – a própria palavra vem do latim para um “chamado” – como certo, como se toda cultura tivesse tal ideia. Entretanto, não é assim. O grande sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) apontou que a ideia de vocação, tão central para a ética social da cultura ocidental, é essencialmente “uma concepção religiosa, a de uma tarefa estabelecida por D-s” (2).

Nasceu na Bíblia hebraica. Em outros lugares, havia pouca comunicação entre os deuses e os seres humanos. A ideia de que D-s poderia convidar os seres humanos para se tornarem Seus parceiros e emissários era revolucionária. No entanto, é disso que o judaísmo trata.

A história judaica começou com o chamado de D-s para Abraão, para deixar sua terra e família. D-s chamou Moisés e os profetas. Há um relato particularmente vívido na visão mística de Isaías, na qual ele viu D-s entronado e cercado por anjos cantores:

“Então ouvi a voz do Senhor dizendo: ‘A quem devo enviar? E quem irá por nós?’ E eu disse: “Aqui estou. Envie-me!” (Isaías 6:8).

O relato mais emocionante é a história do jovem Samuel, dedicado por sua mãe Hannah para servir a D-s no santuário de Shiloh, onde ele atuou como assistente do sacerdote Eli. Na cama, de noite, ele ouviu uma voz chamando seu nome. Ele assumiu que era Eli. Correu para ver o que ele queria, mas Eli disse que não o havia chamado. Isso aconteceu uma segunda vez e depois uma terceira, e então Eli percebeu que era D-s chamando a criança. Ele disse a Samuel que, na próxima vez que a Voz chamasse seu nome, ele deveria responder: “Fala, Senhor, porque o teu servo está ouvindo”. Não ocorreu para a criança que talvez fosse D-s a convocando para uma missão, mas era. Então começou sua carreira como profeta, juiz e aquele que ungiu os dois primeiros reis de Israel, Saul e David (1 Samuel 3).

Todos esses foram chamados proféticos, e a profecia terminou durante o período do Segundo Templo. Apesar disso, a ideia de vocação permanece para todos aqueles que acreditam na Divina providência. Cada um de nós é diferente, portanto, cada um de nós tem talentos e habilidades únicas para trazer para o mundo. O fato de eu estar aqui, neste lugar, neste momento, com essas habilidades, não é acidental. Há uma tarefa a desempenhar, e D-s está nos chamando para ela.

O homem que fez mais do que ninguém para trazer essa ideia nos últimos tempos foi Viktor Frankl, o psicoterapeuta que sobreviveu a Auschwitz. Lá, no campo de concentração, ele se dedicou a dar às pessoas a vontade de viver. Ele fez isso fazendo-os ver que suas vidas não tinham acabado, que eles ainda tinham uma tarefa a desempenhar, e que, portanto, eles tinham uma razão para sobreviver até o fim da guerra.

Frankl insistiu que o chamado veio de fora do eu. Ele costumava dizer que a pergunta certa não era “O que eu quero da vida?”, Mas “O que a vida quer de mim?” Ele cita o testemunho de um de seus alunos que no início da vida havia sido hospitalizado devido a uma doença mental. Ele escreveu uma carta para Frankl contendo estas palavras:

“Mas na escuridão, eu havia adquirido um senso de minha própria missão única no mundo. Eu sabia então, como eu sei agora, que eu fui preservado por algum motivo, por menor que fosse; É algo que só eu posso fazer, e é de vital importância que eu o faça… Na escuridão solitária do “buraco” onde os homens me abandonaram, Ele estava lá. Quando eu não conhecia o Seu nome, Ele estava lá; D-s estava lá” (3).

Lendo salmos na prisão a que a KGB o enviou, Natan Sharansky teve uma experiência semelhante (4).

Frankl acreditava que “toda pessoa humana constitui algo único; cada situação na vida ocorre apenas uma vez. A tarefa concreta de qualquer pessoa é relativa a essa singularidade” (5). A essência da tarefa, ele argumentava, é que ela é auto transcendente. Ela vem de fora do eu e nos desafia a viver além do simples interesse próprio. Descobrir essa tarefa é encontrar na vida – minha vida – sentido e propósito.

Como você descobre sua vocação? O falecido Michael Novak argumentou (6) que um chamado tem quatro características. Primeiro, é único para você. Segundo, você tem o talento para isso. Terceiro, é algo que, quando você o faz, dá uma sensação de prazer e energia renovada. Quarto, não espere que se revele imediatamente. Você pode ter que seguir muitos caminhos que se demonstram falsos até encontrar o verdadeiro.

Novak cita Logan Pearsall Smith, que disse: “O teste de uma vocação é o amor do trabalho árduo que a envolve”. Toda realização real requer uma árdua preparação. A estimativa mais comum é 10.000 horas de prática profunda. Você está disposto a pagar esse preço? Não é por acaso que Vaykrá começa com um chamado – porque é um livro sobre sacrifícios, e a vocação envolve sacrifício. Estamos dispostos a fazer sacrifícios quando percebemos que um papel ou uma tarefa específica é para o que somos chamados a fazer.

Essa é uma ideia que muda a vida. D-s tem uma tarefa para cada um de nós: trabalhar para executar, uma bondade para mostrar, um presente para dar, amor para compartilhar, solidão para aliviar, dor para curar ou vidas quebradas para ajudar a consertar. Discernir essa tarefa, ouvir o chamado de D-s, é o que dá um significado e um propósito para a vida. D-s quer que estejamos onde o que queremos fazer encontra o que precisa ser feito.

 

NOTAS:
1) Daí o nome latino Levítico, que significa “pertencente aos levitas”, isto é, a tribo sacerdotal.
2) Citado em Michael Novak, Business as a Calling: work and the examined life, Free Press, 1996, 17.
3) Viktor Frankl, The Unconscious God, Simon & Schuster, New York, 1975, 11.
4) Natan Sharansky, Fear No Evil, New York: Vintage Books, 1989.
5) Viktor Frankl, The Doctor and the Soul, Souvenir Press, 1969, 57.
6) Michael Novak, Business as a Calling, Free Press, 1996, 17-40.

 

Texto original: “THE CALL” por Rabino Jonathan Sacks
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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