VAYSHLACH

Posted on novembro 25, 2015

VAYSHLACH

Sentindo o Medo

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Este é um dos episódios mais enigmáticos na Torá, mas também um dos mais importantes, porque foi o momento que deu ao povo judeu seu nome: Israel, aquele que “luta com D-s, com os homens e prevalece”.
Jacob, ao ouvir que seu irmão Esaú está vindo para encontrá-lo com um grupo de quatrocentos homens, ficou apavorado. Estava, diz a Torá, “muito atemorizado e angustiado”. Ele se preparou de três formas: pacificação, oração e para o caso de ocorrer uma guerra (Rashi para Gen. 32:9). Enviou a Esaú um abundante presente de gado e ovelhas, esperando assim agradá-lo. Ele orou a D-s: “Livra-me, eu vos peço, das mãos de meu irmão” (32:12). E ele se preparou para a guerra, dividindo a sua casa em dois campos, de forma que pelo menos um iria sobreviver.
Entretanto, ele continuou ansioso. Sozinho, durante a noite, ele lutou com um estranho até o romper da aurora. Não ficou claro quem era o estranho. O texto o chama de “um homem”. Oséias (12:4) chamou-o “um anjo”. Os sábios disseram que era o anjo da guarda de Esaú (1). O próprio Jacob parece estar certo de que ele encontrou o próprio D-s. Ele chama o lugar onde a luta aconteceu de Peniel, dizendo: “Eu vi D-s face a face e a minha vida foi poupada” (32:30).
Há muitas interpretações. Uma delas, porém, é particularmente fascinante, tanto em termos de estilo quanto de substância. Ela vem do neto de Rashi, o Rabino Shmuel ben Meir (Rashbam, França, c.1085-1158). Rashbam teve uma abordagem notavelmente original sobre o comentário bíblico (2). Ele sentiu que os sábios, atentos como estavam na leitura do texto em relação as suas ramificações haláchicas, muitas vezes não conseguiam penetrar ao que ele chamou Omek peshutô shel mikrá, o sentido literal do texto em sua plena profundidade. Rashbam sentiu que seu avô ocasionalmente tendia para uma interpretação baseada em midrashim, ao invés de fazer uma leitura “simples” do texto. Ele nos conta que muitas vezes debateu a questão com o próprio Rashi, que admitiu que, se tivesse tido tempo ele teria escrito mais comentários da Torá, à luz de novos insights sobre o sentido literal que ocorriam a ele “todos os dias”. Essa é uma visão fascinante sobre a mente de Rashi, o maior e mais famoso comentarista em toda a história da erudição rabínica.
Tudo isso é um prelúdio para a notável leitura do Rashbam sobre a cerrada luta noturna. Ele a entende como um exemplo do que Robert Alter denominou uma cena-padrão (3), ou seja, um episódio estilizado que acontece mais de uma vez no Tanach. Um exemplo óbvio é a do homem jovem que encontra sua futura esposa num poço, uma cena divulgada com variações três vezes na Torá: no caso do servo de Abraão e Rebeca, Jacob e Rachel, e Moisés e Tsiporá. Há diferenças entre elas, mas semelhanças suficientes para nos fazer perceber que estamos lidando com uma convenção. Outro exemplo que ocorre muitas vezes no Tanach é o nascimento de um herói através de uma mulher até então infértil.
Rashbam vê isso como a pista para a compreensão da luta noturna de Jacob. Ele relaciona isso a outros episódios no Tanach; dois em particular: a história de Jonas e o obscuro episódio na vida de Moisés, quando, em seu caminho de volta para o Egito, o texto diz que “Quando eles estavam no lugar onde passaram a noite, ao longo do caminho, D-s confrontou Moisés e quis matá-lo” (Ex. 4:24). Tsiporá então salvou a vida de Moisés, realizando o brit em seu filho (4) (Ex. 4:25-26).
É a história de Jonas que fornece a chave para entender as outras. Jonas tentou escapar de sua missão de ir a Nínive para advertir as pessoas que a cidade estava prestes a ser destruída se eles não se arrependessem. Jonas fugiu em um barco para Tarshish, mas D-s trouxe uma tempestade que ameaçava afundar o navio. O profeta foi então atirado ao mar e engolido por um peixe gigante que depois vomitou-o vivo. Jonas assim percebeu que era impossível fugir.
O mesmo, diz Rashbam, aplica-se a Moisés que na sarça ardente expressou repetidamente sua relutância em assumir a tarefa que D-s lhe havia entregue. Evidentemente, Moisés continuava prevaricando mesmo depois de iniciar a viagem, que foi o motivo para D-s ficar zangado com ele.
Assim foi com Jacob. De acordo com Rashbam, apesar das garantias de D-s, ele ainda estava com medo de encontrar Esaú. Faltou-lhe coragem e ele estava tentando fugir. D-s enviou um anjo para detê-lo.
É uma interpretação original, sóbria em suas implicações. Eis aqui três grandes homens, Jacob, Moisés e Jonas, mas todos os três, de acordo com Rashbam, estavam com medo. De quê? Nenhum deles era um covarde.
Eles estavam, essencialmente, com medo de sua missão. Moisés continuava dizendo a D-s na sarça ardente: Quem sou eu? Eles não vão acreditar em mim. Eu não sou um homem de palavras. Jonas estava relutante em entregar uma mensagem de D-s para os inimigos de Israel. E Jacob tinha acabado de dizer a D-s: “Eu sou indigno de toda a bondade e fé que Você me mostrou” (Gen. 32:11).
Não foram essas as únicas pessoas no Tanach que tiveram esse tipo de medo. Foi assim com o Profeta Isaías quando disse a D-s, “Eu sou um homem de lábios impuros”. O mesmo fez Jeremias quando disse: “Eu não posso falar. Eu sou uma criança”.
Isso não é um medo físico. É o medo que vem de um sentimento de inadequação pessoal. “Quem sou eu para levar o povo judeu?”, perguntou Moisés. “Quem sou eu para transmitir a palavra de D-s?”, perguntaram os Profetas. “Quem sou eu para estar diante de meu irmão Esaú, sabendo que vou dar continuidade à aliança e ele não vai?”, perguntou Jacob. Às vezes, aqueles que são os maiores têm menos autoconfiança, porque eles sabem como é imensa a responsabilidade e quão pequeno eles se sentem em relação a essa responsabilidade. Coragem não significa não ter nenhum medo. Significa ter medo, mas superá-lo. Se isso é verdade sobre a coragem física não é menos verdade sobre coragem moral e espiritual.
As observações de Marianne Williamson sobre o assunto se tornaram, com razão, famosas. Ela escreveu:
“Nosso medo mais profundo não é o de sermos inadequados. Nosso medo mais profundo é que somos poderosos além da medida. É a nossa luz, não a nossa escuridão que mais nos assusta. Nós nos perguntamos: Quem sou eu para ser brilhante, lindo, talentoso e fabuloso? Na verdade, quem é você para não ser? Você é um filho de D-s. Seu pequeno joguinho não serve ao mundo. Não há qualquer iluminação no fato de se encolher para que outras pessoas não se sintam inseguras ao seu redor. Somos todos feitos para brilhar, como as crianças. Nascemos para manifestar a glória de D-s que está dentro de nós. Ela não se encontra apenas em alguns de nós; está em todos nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. Conforme nos libertamos do nosso medo, nossa presença automaticamente liberta os demais” (5).
Shakespeare disse melhor (em Twelfth Night): “Não tenham medo da grandeza: alguns nascem grandes, alguns conseguem a grandeza, e outros têm a grandeza empurrada sobre eles”.
Às vezes sinto que, consciente ou inconscientemente, alguns voam do judaísmo por esta mesma razão. Quem somos nós para sermos testemunhas de D-s para o mundo, uma luz para as nações, um modelo para os outros? Se até mesmo gigantes espirituais como Jacob, Moisés e Jonas tentaram fugir, o que dizer de nós? Esse medo da falta de valor é aquele que certamente a maioria de nós já teve em algum momento.
A razão desse sentimento ser errado não é que ele é falso, mas é irrelevante. Claro que nos sentimos inadequados para uma grande tarefa antes de empreendê-la. É a coragem de empreendê-la que nos faz grandes. Líderes crescem enquanto lideram. Escritores crescem enquanto escrevem. Professores crescem ensinando. É somente através da superação de nosso sentimento de inadequação que nos lançamos à tarefa e nos elevamos e engrandecemos ao realizá-la. No título de um conhecido livro, nós devemos “sentir medo e fazer de qualquer jeito”.
Não tenha medo da grandeza: é por isso que D-s lutou com Jacob, Moisés e Jonas e não iria deixá-los escapar. Podemos não ter nascido grandes, mas ao nascermos (ou nos convertermos para nos tornar) judeus, nós temos a grandeza empurrada sobre nós. E como Marianne Williamson disse com razão: libertando-nos do medo, nós ajudamos outros a se libertarem. Isso é o que nós, como judeus, somos destinadas a fazer: ter a coragem de ser diferente, desafiar os ídolos da época, ser fiéis à nossa fé enquanto procuramos ser uma bênção para os outros, independentemente de sua fé.
Porque somos todos filhos do homem a quem foi dado o nome de alguém que luta com D-s, com os homens e prevalece. A nossa tarefa não é fácil, mas qual é a missão de valor que seja fácil? Nós somos tão grandes quanto os desafios que temos a coragem de empreender. E se às vezes temos vontade de fugir, não devemos nos sentir mal sobre isso. Assim fizeram os maiores.
Sentir medo é bom. Entregar-se a ele não é. Porque D-s tem fé em nós. Mesmo se às vezes até mesmo o melhores falham na fé em si mesmos.

NOTAS:
1) Bereshit Rabá 77:3.
2) Ele coloca isso em seu comentário ao Gênesis 37:2.
3) Veja Robert Alter, The Art of Biblical Narrative.
4) Rashbam em Gen. 32:29. Rashbam também inclui o episódio de Bilam, o burro e o anjo como mais um exemplo desse tipo de cena.
5) Marianne Williamson, A Return to Love, HarperCollins, 1992, 190.

Texto original: “FEELING THE FEAR” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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