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Posted on agosto 23, 2016

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A Espiritualidade de Escutar

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

É uma das palavras mais importantes do judaísmo, e também uma das menos compreendidas. Suas duas ocorrências mais famosas estão na parashá da semana passada e desta semana: “Escuta, oh Israel, o Senhor nosso D-s, o Senhor é um” e “E acontecerá se você certamente escutar meus mandamentos que eu hoje te ordeno, para amar o Senhor seu D-s and para servi-Lo com todo seu coração e toda sua alma” – trata-se das aberturas dos dois primeiros parágrafos do Shemá. Ela também aparece na primeira linha da parashá: “E acontecerá, se você escutar essas leis”.

A palavra, claro, é Shemá. Argumentei em outro lugar que é fundamentalmente intraduzível, uma vez que significa tantas coisas:  ouvir, escutar, prestar atenção, entender, internalizar, responder, obedecer. É uma das palavras-tema do livro de Devarim, onde aparece nada menos que 92 vezes – mais do que em qualquer outro livro da Torá. Uma vez após a outra, no último mês de sua vida, Moisés disse ao povo Shemá: escute, considere, preste atenção. Ouça o que estou dizendo.

Ouça o que D-s está dizendo. Escute o que ele quer de nós. Se você apenas escutasse… Judaísmo é uma religião de escuta. Essa é uma de suas contribuições mais originais para a civilização.

As duas fundações da cultura ocidental foram a Grécia e Israel antigos. Elas não poderiam ter sido mais diferentes. A Grécia era uma cultura profundamente visual. Suas maiores conquistas tinham a ver com os olhos, com a visão. Produziu algumas das maiores obras de arte, esculturas e arquiteturas que o mundo já viu.  Suas maiores características ligadas a eventos de grupo – performances teatrais e Jogos Olímpicos – eram espetáculos: apresentações que eram assistidas. Platão entendeu o conhecimento como uma espécie de visão profunda, vendo abaixo da superfície para a verdadeira forma das coisas.

Esta ideia – de que conhecimento é ver – continua a ser a metáfora dominante no Ocidente até hoje. Falamos de insight, previsão e retrospectiva. Oferecemos uma observação. Adotamos uma perspectiva. Nós ilustramos. Nós iluminamos. Nós lançamos luz em um assunto. Quando entendemos alguma coisa, dizemos: “eu vejo” (1).

O judaísmo ofereceu uma alternativa radical. É a fé em um D-s que não podemos ver, um D-s que não pode ser representado visualmente. O próprio ato de fazer uma imagem esculpida – um símbolo visual – é uma forma de idolatria. Como Moisés lembrou ao povo na parashá da semana passada, quando os israelitas tiveram um encontro direto com D-s no Monte Sinai: “Vocês ouviram o som de palavras, mas não viram nenhuma imagem; havia apenas uma voz” (Deut. 4:12). D-s se comunica através de sons, não visões. Ele fala. Ele ordena. Ele chama. É por isso que o ato religioso supremo é o Shemá. Quando D-s fala, nós escutamos. Quando Ele ordena, tentamos obedecer.

O rabino David Cohen (1887-1972), conhecido como o Nazireu, um discípulo do Rav Kook e pai do R. Shear-Yashuv Cohen, rabino-chefe de Haifa, assinalou que no Talmud babilônico, todas as metáforas de entendimento são baseadas na escuta e não na visão.  Ta Shemá, “venha e ouça”. Ka mashma lan, “Nos ensina isso”. Shemá mina, “infira a partir disso”. Lo shemiyá lê, “Ele não concordou”. Um ensino tradicional é chamado shamayta, “aquilo que foi ouvido”. E assim por diante (2). Todos estas são variações da palavra Shemá (3).

Isso pode parecer uma diferença pequena, mas na verdade é uma diferença enorme. Para os gregos, a forma ideal de conhecimento envolvia desapego.  Há aquele que vê, o assunto, e há aquilo que é visto, o objeto, e eles pertencem a dois domínios diferentes. Uma pessoa que olha para uma pintura ou uma escultura ou uma peça de teatro ou os Jogos Olímpicos não é ele próprio parte da obra de arte ou o drama ou a competição atlética. Ele ou ela é um espectador, não um participante.

Falar e ouvir não são formas de desapego. São formas de engajamento. Criam um relacionamento. A palavra hebraica para conhecimento, da’at, implica envolvimento, proximidade, intimidade. “E Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz” (Gen. 4:1). Isso é conhecer no sentido hebraico, não no grego. Podemos entrar em um relacionamento com D-s, embora Ele seja infinito e nós finitos, porque estamos ligados por palavras. Na revelação, D-s fala conosco. Na oração, nós falamos com D-s. Se você quiser entender qualquer relacionamento, entre marido e mulher, ou pai e filho, ou empregador e empregado, preste muita atenção à forma como eles falam e ouvem uns aos outros. Ignore todo o resto.

Os gregos nos ensinaram as formas de conhecimento que vêm de observar e inferir, notadamente ciência e filosofia. Os primeiros cientistas e os primeiros filósofos vieram da Grécia do sexto para o quarto século AEC (antes da era comum).

Mas nem tudo pode ser entendido apenas através da visão ou das aparências. Há uma história poderosa sobre isto contada no primeiro livro de Samuel. Saul, o primeiro rei de Israel, aparentava à parte. Ele era alto. “De seus ombros para cima ele era maior do que qualquer um do povo” (1 Sam. 9:2, 10:23). Ele era a imagem de um rei.  Mas moralmente, em termos de temperamento, ele não era de forma alguma um líder; ele era um seguidor.

D-s então disse a Samuel para ungir outro rei em seu lugar, e disse-lhe que seria um dos filhos de Yishai. Samuel procurou Yishai e ficou impressionado com a aparência de um de seus filhos, Eliav. Ele imaginou que este deveria ser a quem D-s se referia. Mas D-s lhe disse: “Não fique impressionado com sua aparência nem sua altura, pois eu o rejeitei. D-s não vê como as pessoas veem. As pessoas olham para a aparência exterior, mas o Senhor olha para o coração” (1 Sam. 16:7).

Os judeus e o Judaísmo ensinaram que não podemos ver D-s, mas podemos ouvi-Lo e Ele nos ouve. É através da palavra – falar e ouvir – que podemos ter um relacionamento íntimo com D-s como nosso pai, nosso parceiro, nosso soberano, Aquele que nos ama e a Quem amamos. Não podemos demonstrar D-s cientificamente. Não podemos provar D-s logicamente. Essa forma de pensamento é grega, não judaica. Eu acredito que de uma perspectiva judaica, tentar provar a existência de D-s lógica ou cientificamente é um empreendimento incorreto (4). D-s não é um objeto, mas sim um sujeito. A maneira judaica é relacionar-se com D-s na intimidade e no amor, assim como respeito e reverência.

Um exemplo moderno fascinante veio de um judeu que, durante a maior parte de sua vida, esteve afastado do judaísmo, notadamente Sigmund Freud. Ele chamou a psicanálise de “cura pela fala”, mas é melhor descrita como a “cura pela escuta” (5). Isso baseado no fato que a escuta ativa é em si terapêutica. Foi somente após a disseminação da psicanálise, especialmente nos Estados Unidos, que a frase “estou te ouvindo” entrou no idioma Inglês como uma maneira de comunicar empatia (6).

Há algo profundamente espiritual sobre escutar. É a forma mais eficaz de resolução de conflitos que eu conheço. Muitas coisas podem criar conflito, mas o que o sustenta é o sentimento, por pelo menos uma das partes, que ela não foi ouvida. Eles não foram escutados. Nós não “ouvimos sua dor”. Houve uma falha de empatia. É por isso que o uso da força – ou para essa matéria, boicote – para resolver o conflito é tão profundamente autodestrutivo. Pode suprimi-lo por um tempo, mas ele vai voltar, muitas vezes mais intensamente do que antes. Jó, que sofreu injustamente, não se comove com os argumentos daqueles que o confortam. Não é que ele insiste em estar certo: o que ele quer é ser ouvido. Não por acaso fazer justiça pressupõe a regra de audi alteram partem, “ouça o outro lado”.

Ouvir reside no próprio coração dos relacionamentos. Significa que estamos abertos para o outro, que o respeitamos, que suas percepções e sentimentos importam para nós. Nós lhes damos permissão para serem honestos, mesmo que isso signifique nos tornar vulneráveis. Um bom pai escuta seu filho. Um bom empregador ouve seus empregados. Uma boa empresa ouve seus clientes. Um bom líder ouve aqueles que lidera. Escutar não significa concordar, mas sim significa se importar. Escutar é o ambiente em que amor e respeito crescem.

No Judaísmo, acreditamos que nosso relacionamento com D-s é um tutorial contínuo para nossos relacionamentos com outras pessoas. Como podemos esperar que D-s nos escute se falhamos ao escutar o nosso cônjuge, nossos filhos, ou aqueles afetados por nosso trabalho? E como podemos esperar encontrar D-s se não aprendemos a escutar. No Monte Horeb, D-s ensinou a Elias que ele não estava no furacão, no terremoto ou no fogo, mas no Kol demamá daká, na “voz mansa e delicada” (7), que eu defino como uma voz que você só pode ouvir se você estiver escutando.

Multidões são movidas por grandes oradores, mas vidas são mudadas por grandes ouvintes. Seja entre nós e D-s ou nós e outras pessoas, a escuta é o prelúdio do amor.

 

NOTAS:
1- Veja George Lakoff e Mark Johnson, Metaphors We Live By, University of Chicago Press, 1980.
2- Isso aparece nas páginas de abertura de seu trabalho, Kol Nevuá.
3- Para deixar claro, o Zohar usa um termo visual, ta chazi, “Venha e veja”. Existe um amplo parentesco entre o misticismo judaico e o pensamento platônico ou neoplatônico. Para ambos, conhecimento é uma forma de visão profunda.
4- Para deixar claro, muitos dos grandes filósofos judeus medievais fizeram exatamente isso. Eles o fizeram sob a influência dos pensamentos neoplatônico e neoaristotélico, em si mediados pelos grandes filósofos do Islã. A exceção foi Judá Halevi em O Kuzari.
5- Veja Adam Philips, Equals, London, Faber and Faber, 2002, xii. Veja também Salman Akhtar, Listening to Others: Developmental and Clinical Aspects of Empathy and Attunement. Lanham: Jason Aronson, 2007.
6- Note que há uma diferença entre empatia e simpatia. Dizer “estou te ouvindo” é uma maneira de indicar – sinceramente ou não – que eu estou atento aos seus sentimentos, não que eu necessariamente concorde com eles ou com você.
7- I Reis 19.
Texto original: “THE SPIRITUALITY OF LISTENING” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay

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