KI TETZÊ

Posted on setembro 5, 2015

KI TETZÊ

PARA AS TERCEIRA E QUARTA GERAÇÕES

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Há, com respeito a essa questão, uma contradição fundamental na Torá. Por um lado ouvimos, no trecho conhecido como os Treze Atributos de Misericórdia, as seguintes palavras:

“O Senhor, o Senhor, D-s misericordioso e compassivo, lento para a cólera, e abundante em benignidade e em verdade… Mas ele não deixa impunes os culpados; castiga os filhos e os seus próprios filhos pelo pecado dos pais até a terceira e quarta geração” (Ex. 34:7).

A implicação é clara. As crianças sofrem pelos pecados de seus pais. Por outro lado lemos na parashá desta semana:

Os pais não devem ser condenados à morte por seus filhos, nem os filhos mortos por seus pais; cada um vai morrer por seu próprio pecado (Deut. 24:16).

O livro de Reis registra um evento histórico, quando esse princípio foi decisivo. “Quando Amazias estava bem estabelecido como rei, ele executou os funcionários que tinham assassinado seu pai. No entanto, ele não matou os filhos dos assassinos, pois ele obedeceu a ordem do Senhor conforme escrito por Moisés no Livro da Lei: ‘Os pais não devem ser condenados à morte por seus filhos, nem os filhos mortos por seus pais; cada um vai morrer pelo seu próprio pecado’” (2 Reis 14:5-6).

Existe uma óbvia solução. A primeira declaração refere-se à justiça divina, “nas mãos do céu”. A segunda, em Deuteronômio, refere-se à justiça humana conforme é administrado em um tribunal de direito. Como podem meros mortais decidir em que medida o crime de uma pessoa foi induzido pela influência de outras pessoas? É evidente que o processo judicial deve limitar-se aos fatos observáveis. A pessoa que cometeu o crime é culpada. Aqueles que podem ter influenciado seu caráter não são.

Contudo, a questão não é tão simples, porque nós encontramos Jeremias e Ezequiel, os dois grandes profetas do exílio no século VI AEC, reafirmando o princípio da responsabilidade individual de maneira sólida e notavelmente semelhantes. Jeremias diz:

Naqueles dias, as pessoas deixarão de dizer, “Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se afiaram”. Ao invés disso, todo mundo vai morrer pelo seu próprio pecado; quem quer que coma uvas-azedas, seus próprios dentes serão afiados (Jeremias 31:29-30).

Ezequiel diz:

A palavra do Senhor veio a mim: “O que as pessoas querem dizer citando este provérbio sobre a terra de Israel: ‘Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se afiaram?’ Tão certo quanto eu vivo, diz o Senhor D-s, você não vai mais citar esse provérbio em Israel. Porque todos pertencem a Mim, o pai assim como a criança, ambos igualmente pertencem a mim. Aquele que comete o pecado é o único que vai morrer” (Ezequiel 18:1-4).

Aqui os profetas não estavam falando sobre os procedimentos judiciais e responsabilidade legal. Eles estão falando sobre o julgamento e justiça Divinos. Eles estavam dando esperança ao povo em um dos momentos mais deploráveis na história judaica: a conquista da Babilônia e a destruição do Primeiro Templo. O povo, sentado e chorando junto as águas da Babilônia, poderia ter desistido completamente. Eles estavam sendo julgados pelas falhas de seus antepassados ​​que tinham levado a nação a esta situação desesperada, e seu exílio parecia se estender indefinidamente para o futuro. Ezequiel, em sua visão do vale de ossos secos, ouve D-s relatando que as pessoas estavam dizendo, “Os nossos ossos estão secos, perdemos a esperança”. Ele e Jeremias foram os conselheiros contra o desespero. Se eles voltassem para D-s, D-s voltaria para eles e os traria de volta à sua terra. A culpa de gerações anteriores não seria atrelada a eles.

Mas se era assim, então as palavras de Jeremias e Ezequiel realmente entram em conflito com a ideia de que D-s pune os pecados até a terceira e quarta gerações. Reconhecendo isso, o Talmud faz uma declaração notável:

Disse R. Jose b. Hanina: Nosso Mestre Moisés pronunciou quatro frases [desfavoráveis] sobre Israel, mas quatro profetas vieram e as revogaram… Moisés disse: “O Senhor… castiga os filhos e os seus filhos pelo pecado dos pais até a terceira e quarta gerações”. Veio Ezequiel e declarou: “Aquele que peca é o único que vai morrer”.

Em geral os sábios rejeitaram a ideia de que as crianças poderiam ser punidas, mesmo pelas mãos do céu, por pecados cometidos por seus pais. Como resultado, eles sistematicamente reinterpretaram cada passagem que dava a impressão oposta, de que os filhos estavam de fato sendo punidos pelos pecados de seus pais. A posição geral foi a seguinte:

Então não são os filhos que são mortos pelos pecados cometidos por seus pais? Não está escrito, “Visitando as iniquidades dos pais sobre os filhos?” – Ali a referência é para filhos que seguem os passos de seus pais. (literalmente “apoderar-se dos atos de seus pais em suas mãos”, isto é, comprometem-se, eles mesmos, com os pecados dos pais).

Especificamente, eles explicaram episódios bíblicos em que os filhos foram punidos junto com seus pais dizendo que, nesses casos, os filhos “tinham o poder de protestar / impedir que seus pais pecassem, mas eles não conseguiram fazê-lo”. Como Maimônides diz, quem quer que tenha o poder de impedir alguém de cometer um pecado, mas não o faz, ele é capturado (ou seja punido, responsabilizado) por aquele pecado.

Então será que a ideia de responsabilidade individual chegou tarde ao judaísmo, como alguns estudiosos argumentam? Isso é altamente improvável. Durante a rebelião de Korach, quando D-s ameaçou destruir o povo, Moisés disse: “caso um só homem cometa um pecado, Você vai ficar irritado com toda a congregação?” (Num. 16:22). Quando as pessoas começaram a morrer depois de David ter pecado, instituindo um censo, ele orou a D-s: “Eu pequei. Eu, o pastor, cometi erros. Eles são apenas ovelhas. O que eles fizeram? Deixe sua mão cair sobre mim e minha família”. O princípio da responsabilidade individual é fundamental para o judaísmo como foi para outras culturas no antigo Oriente Próximo.

Em vez disso, o que está em jogo é a profunda compreensão do escopo da responsabilidade que carregamos se levarmos a sério os nossos papéis como pais, vizinhos, pessoas da cidade, os cidadãos e filhos da aliança. Judicialmente somente o criminoso é responsável por seu crime. Mas a Torá dá a entender que também somos guardiões de nossos irmãos. Nós compartilhamos uma responsabilidade coletiva para a saúde moral e espiritual da sociedade. “Todo Israel”, disseram os sábios, “somos responsáveis ​​uns pelos outros”. A responsabilidade legal é uma coisa, e é relativamente fácil de definir. Mas a responsabilidade moral é algo bem maior, e até mesmo mais vago. “Que uma pessoa não diga, ‘Eu não pequei, e se outra pessoa comete um pecado, essa é uma questão entre ele e D-s’. Isso é contrário à Torá”, escreve Maimônides no Sefer ha-Mitzvot.

Isso é particularmente assim quando se trata da relação entre pais e filhos. Abraham foi escolhido, diz a Torá, apenas porque “ele irá instruir seus filhos e a sua família depois dele, para que guardem o caminho do Senhor, fazendo o que é certo e justo”. O dever dos pais de ensinar aos filhos é fundamental para o judaísmo. Isso aparece, em ambos os primeiros dois parágrafos do Shemá, bem como nas várias passagens citadas no relato dos “quatro filhos” da Hagadá. Maimônides considera como um dos mais graves de todos os pecados – tão sério que D-s não nos dá uma oportunidade de nos arrepender. “Aquele que vê seu filho andar em maus caminhos e não o detém”. A razão, diz ele, é que “uma vez que o seu filho está sob a sua autoridade, tivesse ele o detido, o filho teria desistido (de seguir tal caminho)”. Por isso, é contabilizado para o pai como se ele tivesse causado ativamente seu filho a pecar.

Se for assim, começamos a ouvir a verdade desafiadora nos Treze Atributos de Misericórdia. Certamente não somos legalmente responsáveis ​​pelos pecados de nossos pais ou de nossos filhos. Mas em um sentido mais profundo, o que fazemos e como vivemos têm um efeito sobre o futuro para a terceira e quarta gerações.

Raramente esse efeito foi mais devastador do que o descrito em livros recentes por dois dos críticos sociais mais perspicazes da América: Charles Murray do American Enterprise Institute e Robert Putnam de Harvard. Mesmo com abordagens muito diferentes para a política, Murray em Coming Apart e Putnam em Our Kids, ambos emitiram essencialmente a mesma advertência profética de uma catástrofe social no mercado. Para Putnam, “o sonho americano” está “em crise”. Para Murray, a divisão dos Estados Unidos em duas classes com cada vez menor mobilidade entre elas “vai acabar com o que fez da América, a América”.

Seus argumentos sugerem, aproximadamente, que a certa altura, no final de 1950 ou início de 1960, uma série de instituições e códigos morais começaram a se dissolver. O casamento ficou desvalorizado. Famílias começaram a desmoronar. Mais e mais crianças cresceram sem associações estáveis com seus pais biológicos. Novas formas de pobreza infantil começaram a surgir, assim como disfunções sociais, tais como o abuso de drogas e álcool, gravidez na adolescência e criminalidade e desemprego em áreas de baixa renda. Ao longo do tempo, uma classe superior se afastou da beira do abismo, e agora está preparando intensamente os seus filhos para realizações elevadas, enquanto do outro lado os filhos das classes inferiores estão crescendo com pouca esperança para o sucesso educativo, social e ocupacional. O sonho americano de oportunidades para todos está se esgotando.

O que torna esse desenvolvimento tão trágico é que por um momento as pessoas esqueceram a verdade bíblica de que o que fazemos não afeta a nós somente. Vai afetar nossos filhos até a terceira e quarta gerações. Até mesmo o maior libertário dos tempos modernos, John Stuart Mill, foi enfático sobre as responsabilidades da paternidade. Ele escreveu: “O fato em si, de dar origem a existência de um ser humano, é uma das ações mais responsáveis ​​ao alcance da vida humana. Para empreender essa responsabilidade, conceder uma vida que tanto pode ser uma maldição ou uma bênção – ao menos deve ser concedido a esse ser, pelo menos, as chances normais de uma existência desejável. Se não for assim, isso será um crime contra esse ser”.

Se não formos capazes de honrar as nossas responsabilidades como pais, então embora nenhuma lei vá nos responsabilizar, as crianças da sociedade irão pagar o preço. Elas vão sofrer por causa de nossos pecados.

Texto original: “TO THE THIRD AND FOURTH GENERATION” por Rabino Jonathan Sacks.

Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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