YTRÔ

Posted on janeiro 25, 2016

YTRÔ

Agradecer Antes de Pensar

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Os Dez Mandamentos constituem o mais famoso código religioso e moral da história. Até recentemente eles adornavam tribunais americanos. Eles ainda adornam a maioria das arcas de sinagogas. Rembrandt deu-lhes sua expressão artística clássica em seu retrato de Moisés, quando quebrou as tábuas ao ver o bezerro de ouro. Uma enorme pintura de Moisés, feita por John Rogers Herbert, retratando a quebra das tábuas da lei, domina a principal sala do comitê principal da Câmara dos Lordes.
As tábuas duplas com os seus dez mandamentos são o símbolo duradouro da lei eterna sob a soberania de D-s.
Vale a pena lembrar, é claro, que os “dez mandamentos” não são Dez Mandamentos. A Torá chama-os de Asseret haDevarim (Ex. 34:28), e a tradição os chama de Asseret haDibrot, que significa “as dez palavras ou dez pronunciamentos”. Podemos entender melhor isso à luz das descobertas documentais no século XX, especialmente os convênios hititas ou “tratados de suserania” que remonta a 1400-1200 AEC (antes da era comum), ou seja, em torno do tempo de Moisés e do êxodo. Esses tratados muitas vezes continham uma declaração dupla das legislações previstas no tratado, primeiro em linhas gerais, em seguida, em detalhe específico. Essa é precisamente a relação entre os “dez pronunciamentos” e os mandamentos detalhados na parashá Mishpatim (Ex. 22-23). Os primeiros são o esboço geral, os princípios básicos da lei.
Normalmente eles são retratados, gráfica e substantivamente, como dois conjuntos de cinco, o primeiro lidando com as relações entre nós e D-s (incluindo honrar nossos pais, já que eles, como D-s, nos trouxeram à existência), o segundo com as relações entre nós e nossos companheiros humanos.
Contudo, também faz sentido vê-los como três grupos de três. Os três primeiros (um D-s, não há outro D-s, não tome o nome de D-s em vão) são sobre D-s, autor e autoridade das leis. O segundo conjunto (manter o Shabat, honrar os pais, não matar) são sobre a criação. Shabat nos lembra o nascimento do universo. Nossos pais nos trouxeram à existência. Assassinato é proibido porque todos nós somos criados à imagem de D-s (Gen. 9:6). O terceiro conjunto (não cometerás adultério, não roube, não farás falso testemunho) são sobre as instituições básicas da sociedade: a santidade do casamento, a integridade da propriedade privada e da aplicação da justiça. Quando se perder qualquer um destes, a liberdade começa a desmoronar.
Essa estrutura serve para enfatizar como é estranho o décimo mandamento: “Não tenhas inveja da casa de seu vizinho. Não tenhas inveja da esposa de seu vizinho, do seu escravo, de sua serva, nem do seu boi, do seu jumento, nem qualquer outra coisa que pertença ao teu próximo”. Pelo menos na superfície esse mandamento é diferente de todas as outras regras que envolvem a fala ou ação (1). Inveja, cobiça, desejar algo que alguém tem, são emoções, não um pensamento, uma palavra ou uma ação. E, certamente, não podemos conter nossas emoções. Elas costumavam ser chamadas de “paixões”, precisamente porque somos passivos em relação a elas. Então, como pode ser proibido invejar? Certamente só faz sentido comandar ou proibir as questões que estão sob nosso controle. De qualquer forma, por que a ocorrência ocasional de inveja é importante se ela não leva a nada nocivo para outras pessoas?
Aqui, parece-me que a Torá está transmitindo uma série de verdades fundamentais que nós esquecemos por nossa conta e risco. Em primeiro lugar, como já foi lembrado pela terapia comportamental cognitiva, o que nós acreditamos afeta o que nós sentimos (2). Os narcisistas, por exemplo, são rápidos em se ofender, porque pensam que as outras pessoas estão falando sobre elas ou desrespeitando-as, enquanto que, frequentemente, outras pessoas não estão interessadas ​​nelas de forma alguma. Sua crença é falsa, mas isso não os impede de sentir raiva e ressentimento.
Em segundo lugar, a inveja é um dos principais impulsionadores da violência na sociedade. Foi o que levou Iago a enganar Othello com trágicas consequências. Mais perto de nós é o que levou Caim a assassinar Abel. Foi o que levou Abraão e depois Isaac a temer por suas vidas quando a fome forçou-os temporariamente a deixar suas casas. Eles acreditavam que, como eles eram casados ​​com mulheres atraentes, o governante local iria matá-los, para que pudessem tomar as suas esposas para seu harém.
Mais ainda, a inveja se estabeleceu no centro do ódio dos irmãos de José. Eles se ressentiam pelo tratamento especial de seu pai (a José), o manto ricamente bordado que ele usava, e seus sonhos de se tornar o governante de todos eles. Isso é o que os levou a planejar matá-lo e, ao final, vendê-lo como escravo.
Rene Girard, em seu clássico Violência e o Sagrado, diz que a causa mais básica da violência é o desejo mimético, ou seja, o desejo de ter o que alguém tem, que é em última análise, o desejo de ser o que alguém é. A inveja pode levar a quebrar muitos dos outros mandamentos: pode levar as pessoas ao adultério, roubo, falso testemunho e até mesmo assassinato (3).
Os judeus têm razão especial para temer a inveja. Ela certamente desempenhou um papel na existência do antissemitismo ao longo dos séculos. Não-judeus invejaram judeus em sua capacidade de prosperar na adversidade – o estranho fenômeno que observamos na parashá Shemot que “quanto mais eles os afligiram, mais eles cresceram e mais se espalharam”. Eles também, sobretudo, invejavam o seu sentimento de povo eleito (apesar do fato de que praticamente qualquer outra nação na história via-se como escolhida (4)). É absolutamente essencial que nós, como judeus, devamos nos conduzir com uma medida extra de humildade e modéstia.
Assim, a proibição da inveja não é estranha em absoluto. É das mais básicas forças comprometedoras da harmonia social e da ordem, que são o alvo dos Dez Mandamentos como um todo. Não só eles os proíbem; eles também nos ajudam a elevarmo-nos acima dela. São precisamente os três primeiros mandamentos, lembrando-nos da presença de D-s na história e em nossas vidas, e os três segundos, lembrando-nos do fato de termos sido criados, que nos ajudam a nos elevar acima de inveja.
Nós estamos aqui porque D-s queria que estivéssemos. Temos o que D-s queria que nós tivéssemos. Por que, então, devemos buscar o que os outros têm? Se o que mais importa em nossas vidas é como aparecemos aos olhos de D-s, por que deveríamos querer outra coisa simplesmente porque alguém tem? É quando paramos de nos definir em relação a D-s e começamos a nos definir em relação a outras pessoas que a concorrência, contenda, cobiça e inveja entram em nossas mentes, e elas só levam à infelicidade.
Se eu invejo seu carro novo, eu posso ser motivado a comprar um modelo mais caro que nunca teria sido necessário, o que vai me dar satisfação por alguns dias até que eu descubra um outro vizinho que tem um veículo ainda mais caro, e assim vai… Se me satisfizer em ter sucesso com minha própria inveja, eu vou fazê-lo apenas ao custo de provocar a sua, em um ciclo de consumo facilmente percebido que não tem um fim natural. Daí o adesivo no vidro traseiro dos carros:  “Aquele que tem a maioria dos brinquedos quando ele morre, ganha”. A palavra-chave aqui é “brinquedos”, pois esta é a ética do jardim de infância, e que não deveria ter lugar em uma vida madura.
O antídoto para a inveja é a gratidão. “Quem é rico?”, perguntou Ben Zomá, e respondeu: “Aquele que se alegra com o que ele tem”. Há uma bela prática judaica que, feito diariamente, é transformadora. As primeiras palavras que dizemos ao acordar são Modê ani lefanecha, “Eu te agradeço, Rei vivo e eterno”. Agradecemos antes de pensar.
O judaísmo é gratidão com atitude. Quando curados de permitir que a felicidade de outras pessoas diminua a nossa, nós lançamos uma onda de energia positiva que nos permite celebrar o que temos em vez de pensar sobre o que outras pessoas têm, e também celebrar o que somos, em vez de querer ser o que não somos.

NOTAS:
(1) Maimônides mantinha que o primeiro mandamento é acreditar em D-s. Nachmânides, contudo, discordava e defendia que o versículo “Eu sou o Senhor que os trouxe para fora da terra do Egito” não é um mandamento mas um prelúdio aos mandamentos.
(2) Essa tem sido uma longa parte do pensamento judaico. Está no coração da filosofia Chabad consagrada na obra-prima, o Tanya, do R. Shneur Zalman de Liadi. Do mesmo modo Ibn Ezra em seu comentário a este verso diz que nós só cobiçamos o que sentimos estar ao nosso alcance. Não invejamos aqueles que sabemos que jamais poderíamos nos tornar.
(3) O trabalho clássico é Helmut Schoeck, Inveja: a Teoria do Comportamento social, New York: Harcourt, Brace & World, 1969. Veja também Joseph Epstein, Inveja, New York: New York Public Library, 2003.
(4) Veja sobre isso Anthony Smith, Povo Escolhido, Oxford University Press, 2003

Texto original: “TO THANK BEFORE WE THINK” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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