A Dualidade do Tempo Judaico
Ao lado da santidade do lugar e da pessoa está a santidade do tempo, algo que Emor descreve em sua lista enganosamente simples de festas e dias sagrados. (Lev. 23:1-44)
O tempo desempenha um papel enorme no Judaísmo. A primeira coisa que D-s declarou santo foi um dia: o Shabat, no final da Criação. A primeira mitsvá dada ao povo judeu como um todo, antes do Êxodo, foi a ordem de santificar o tempo, determinando e aplicando o calendário judaico. (Ex. 12:1-2) Os Profetas foram as primeiras pessoas na história a ver D-s na história, vendo o próprio tempo como a arena do encontro divino-humano. Praticamente todas as outras religiões e civilizações anteriores e posteriores identificaram D-s, realidade, e a verdade com a atemporalidade.
Isaiah Berlin costumava citar Alexander Herzen, que dizia sobre os eslavos que eles não tinham história, apenas geografia. Os judeus, disse ele, tinham o contrário: muita história, mas muito pouca geografia. Muito tempo, mas pouco espaço.
Portanto, o tempo no Judaísmo é um meio essencial da vida espiritual. Mas há uma característica da abordagem judaica ao tempo que tem recebido menos atenção do que deveria: a dualidade que permeia toda a sua estrutura temporal.
Tomemos, por exemplo, o calendário como um todo. O Cristianismo usa um calendário solar, o Islã um lunar. O Judaísmo usa ambos. Contamos o tempo tanto pelo ciclo mensal da lua quanto pelo ciclo sazonal do sol.
Então considere o dia. Os dias normalmente têm um começo identificável, seja ao anoitecer ou ao amanhecer ou – como no Ocidente – em algum ponto intermediário. Para fins de calendário, o dia judaico começa ao anoitecer (“E foi tarde e foi manhã, um dia”). Mas se olharmos para a estrutura das orações – a oração da manhã instituída por Avraham, a da tarde por Isaac, a da noite por Yaacov – há um sentido em que a adoração do dia começa pela manhã, e não na noite anterior.
Os anos também costumam ter um começo fixo – o “ano novo”. No judaísmo, segundo a Mishná (Rosh Hashaná 1:1), há nada menos que quatro “anos novos”. O primeiro de Ellul é o ano novo do dízimo dos animais. O décimo quinto dia de Shvat (ou, segundo Bet Shammai, o primeiro de Shvat) é o ano novo para as árvores. Estas são datas específicas e subsidiárias, mas as outras duas são mais fundamentais.
De acordo com a Torá, o primeiro mês do ano é Nissan. Este foi o dia em que a terra ficou seca após o Dilúvio. (Gênesis 8:13) [1] Foi o dia em que os israelitas receberam seu primeiro comando como povo. (Ex. 12:2) Um ano depois foi o dia em que o Tabernáculo foi dedicado e inaugurado o serviço dos Sacerdotes. (Ex. 40:2) Mas o festival que chamamos de Ano Novo, Rosh Hashaná, cai seis meses depois.
O próprio tempo sagrado vem em duas formas, como Emor deixa claro. Existe o Shabat e existem as festas, e os dois são anunciados separadamente. O Shabat foi santificado por D-s no início dos tempos para sempre. As festas são santificadas pelo povo judeu, a quem foi dada a autoridade e a responsabilidade de fixar o calendário.
Daí a diferença nas bênçãos que dizemos. No Shabat louvamos a D-s que “santifica o Shabat”. Nas festas louvamos a D-s que santifica “Israel e os tempos santos” – ou seja, é D-s quem santifica Israel, mas Israel quem santifica os tempos santos, determinando em que dias as festas acontecem.
Mesmo dentro das festas existe um ciclo duplo. Um é formado pelas três festas de peregrinação: Pessach, Shavuot e Sucot. Estes são dias que representam os principais momentos históricos no início da era judaica – o Êxodo, a entrega da Torá e os quarenta anos de peregrinação no deserto. São festas de história.
O outro é formado pelo número sete e pelo conceito de santidade: o sétimo dia, o Shabat; o sétimo mês, Tishrei, com suas três festas de Rosh Hashaná, Yom Kipur e Sucot; o sétimo ano, Shemitá; e o Jubileu que marca a conclusão de sete ciclos de sete anos.
Estes tempos (com exceção de Sucot, que pertence a ambos os ciclos) têm menos a ver com a história do que com o que, na falta de uma palavra melhor, poderíamos chamar de metafísica e jurisprudência, verdades últimas sobre o universo, a condição humana e as leis, tanto naturais quanto morais, sob as quais vivemos.
Cada um é sobre a criação (Shabat, um lembrete disso, Rosh Hashaná, seu aniversário), soberania divina, justiça e julgamento, juntamente com a condição humana de vida, morte, mortalidade. Assim, no Yom Kipur enfrentamos justiça e julgamento. Em Sucot/Shemini Atzeret rezamos pela chuva, celebramos a natureza (reunindo o lulav, o etrog, o hadassim e as aravot, pois o arbat haminim – as quatro espécies – é a única mitsvá que cumprimos com objetos naturais não processados) e lemos o livro de Kohelet, a meditação mais profunda do Tanach sobre a mortalidade.
No sétimo ano e no Jubileu, reconhecemos a propriedade final de D-s sobre a terra de Israel e os Filhos de Israel. Consequentemente, libertamos os escravos, liberamos dívidas, deixamos a terra descansar e devolvemos a maior parte das propriedades aos seus proprietários originais. Tudo isto não tem a ver com as intervenções de D-s na história, mas com o Seu papel como Criador e proprietário do universo.
Uma maneira de ver a diferença entre o primeiro ciclo e o segundo é comparar as orações de Pessach, Shavuot e Sucot com as de Rosh Hashaná e Yom Kipur. A Amidá de Pessach, Shavuot e Sucot começa com a frase “Você nos escolheu entre todos os povos”. A ênfase está na particularidade judaica.
Por outro lado, a Amidá para Rosh Hashaná e Yom Kipur começa falando de “tudo que fizeste, tudo que criaste”. A ênfase está na universalidade: no julgamento que afeta toda a criação, tudo o que vive.
Até mesmo Sucot tem um impulso universalista marcado com as suas setenta bulas de sacrifício representando as “setenta nações”. Segundo Zacarias 14, é a festa que um dia será celebrada por todas as nações.
Por que a dualidade? Porque D-s é ao mesmo tempo o D-s da natureza e da cultura. Ele é o D-s de todos em geral, e do povo da aliança em particular. Ele é o autor tanto da lei científica (causa) quanto da lei ético-religiosa (mandamento).
Encontramos D-s tanto no tempo cíclico, que representa o movimento dos planetas, quanto no tempo histórico-linear, que representa os eventos e a evolução da nação da qual fazemos parte. Esta mesma dualidade dá origem a dois tipos de líderes religiosos: o Profeta e o Sacerdote, e a diferente consciência do tempo que cada um representa.
Desde os antigos gregos, as pessoas têm procurado um único princípio que explicasse tudo, ou o único ponto procurado por Arquimedes para mover o mundo, ou a perspectiva única (o que os filósofos chamam de “a visão do nada”) a partir da qual vemos a verdade, em toda a sua objetividade.
O Judaísmo nos diz que não existe tal ponto. A realidade é mais complicada do que isso. Não existe sequer um único conceito de tempo. Precisamos, no mínimo, de duas perspectivas para podermos ver a realidade em três dimensões, e isso se aplica tanto ao tempo quanto ao espaço. O tempo judaico tem dois ritmos ao mesmo tempo.
O Judaísmo é para o espírito o que a teoria da complementaridade de Niels Bohr é para a física quântica. Na física, a luz é uma onda e uma partícula. No Judaísmo, o tempo é histórico e natural. Inesperado, contra-intuitivo, certamente. Mas glorioso na sua recusa em simplificar a rica complexidade do tempo: o tique-taque do relógio, a planta em crescimento, o corpo envelhecido e a mente cada vez mais profunda.
NOTAS
[1] Embora isso também seja objeto de discussão. Na Gemara Rosh Hashanah 11b (citado por Rashi Bereshit Capítulo 8:13), o Rabino Yehoshua diz que isso ocorreu em Nissan e o Rabino Eliezer conta que aconteceu em Tishrei.
Texto original “The Duality of Jewish Time” por Rabbi Lord Jonathan Sacks zt’l