METSORÁ

Posted on abril 14, 2016

METSORÁ

O Poder da Vergonha

Uma parceria da Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema com o escritório do Rabino Jonathan Sacks (The Office of Rabbi Sacks)

Em 20 de Dezembro de 2013 uma jovem mulher, Justine Sacco, estava esperando no aeroporto de Heathrow antes de embarcar em um voo para a África. Para passar o tempo, ela enviou um Tweet de gosto duvidoso sobre os riscos de contrair AIDS. Não houve resposta imediata e ela embarcou no avião desconhecendo a tempestade que estava prestes a enfrentar. No desembarque, onze horas depois, ela descobriu que havia se tornado uma celebridade internacional. Seu Tweet e as respostas a ele tinham “viralizado”. Durante os 11 dias seguintes seu nome foi pesquisado no google mais de um milhão de vezes. Ela foi tachada de racista e demitida de seu trabalho. Da noite para o dia ela havia se tornado uma pária (1).

A nova mídia social trouxe de volta um fenômeno antigo, a humilhação pública. Dois livros recentes, So You’ve Been Publicly Shamed de Jon Ronson, e Is Shame Necessary? de Jennifer Jacquet (2), discutiram isso. Jacquet acredita que é uma coisa boa. Por exemplo, pode ser uma forma de conseguir um comportamento mais responsável pelas empresas públicas. Ronson destaca os perigos. Uma coisa é ser envergonhado pela comunidade da qual você faz parte, outra coisa é ser envergonhado por uma rede global de estranhos que não sabem nada sobre você ou sobre o contexto em que o ato aconteceu. Isso seria mais como um linchamento do que busca por justiça.

De qualquer forma, isso nos dá um caminho para entender o fenômeno desconcertante de tsaraat, a condição longamente tratada na parashá dessa semana e da passada. Ela foi por diversas vezes traduzida como lepra, doença de pele, ou infecção escamosa. No entanto, há problemas desafiadores ​​para identificá-la com qualquer doença conhecida. Em primeiro lugar, os seus sintomas não correspondem à doença de Hansen, também conhecida como lepra. Em segundo lugar, tal como descrito na Torá, ela afeta não somente os seres humanos, mas também as paredes de casas, móveis e roupas. Não há nenhuma condição médica conhecida que possui essa propriedade.

Além disso, a Torá é um livro sobre santidade e conduta correta. Não é um texto médico. Mesmo se fosse, como David Zvi Hoffman assinala em seu comentário, os procedimentos a serem realizados não correspondem àqueles que seriam feitos se tsaraat fosse uma doença contagiosa. Finalmente, tsaraat conforme descrita na Torá é uma condição que não traz doença, mas sim impureza, tumá. Saúde e pureza são coisas completamente diferentes.

Os sábios decodificaram o mistério relacionando a nossa parashá ao relacioná-la às instâncias na Torá onde alguém foi realmente atingido por tsaraat. Um deles aconteceu quando Miriam falou contra seu irmão Moisés (Num. 12:1-15). Outra ocorreu quando Moisés na sarça ardente disse a D-s que os israelitas não iriam acreditar nele. Sua mão tornou-se brevemente “leprosa como a neve” (Ex. 4:7). Os sábios consideraram tsaraat como um castigo para lashon hará, falar mal, falar negativamente ou denegrir outra pessoa.

Isso os ajudou a explicar por que os sintomas de tsaraat – mofo, descoloração – poderiam afetar paredes, móveis, roupas e pele humana. Estes eram uma sequência de avisos ou punições. Primeiro D-s advertia o infrator através do envio de um sinal de decomposição para as paredes de sua casa. Se o infrator se arrependesse, a condição pararia por aí. Se ele não o fizesse, sua mobília seria afetada, depois suas roupas e finalmente sua pele.

Como devemos entender isso? Por que “falar mal” foi considerado um delito tão grave que trouxe a existência esses fenômenos estranhos? E por que era punido dessa maneira e não de outra?

Foi a antropóloga Ruth Benedict e seu livro sobre a cultura japonesa, O Crisântemo e a Espada, que popularizou uma distinção entre dois tipos de sociedade: culturas da culpa e culturas da vergonha. A Grécia antiga, como o Japão, vivia uma cultura de vergonha. O Judaísmo e as religiões influenciadas por ele (mais obviamente o calvinismo) eram culturas de culpa. As diferenças entre essas culturas são substanciais.

Em culturas de vergonha, o que importa é o julgamento dos outros. Agir moralmente significa estar em conformidade com as funções, regras e expectativas públicas. Você faz o que as outras pessoas esperam que você faça. Você segue as convenções da sociedade. Se você não fizer isso, a sociedade o pune sujeitando-o a vergonha, ridículo, desaprovação, humilhação e ostracismo. Em culturas de culpa o que importa não é o que as outras pessoas pensam, mas o que a voz da consciência lhe diz. Viver moralmente significa agir de acordo com os imperativos morais internalizados: “Você deve” e “Você não deve”. O que importa é o que você sabe ser certo e errado.

Pessoas em culturas de vergonha são dirigidas pelos outros. Elas se preocupam sobre como parecem aos olhos dos outros, ou como diríamos hoje, qual a sua “imagem”. Pessoas em culturas de culpa vivem sob orientação interna. Elas se preocupam com o que sabem sobre si mesmas em momentos de absoluta honestidade. Mesmo se a sua imagem pública não está danificada, se você sabe que cometeu algo errado, isso a fará se sentir desconfortável. Você vai acordar durante a noite, perturbado.

“Oh consciência covarde, como tu me afliges!”, diz Ricardo III de Shakespeare. “Minha consciência tem milhares de línguas diferentes / E cada língua traz várias histórias / E cada história me condena como um vilão”. A vergonha é a humilhação pública. A culpa é a tormenta interior.

O aparecimento de uma cultura de culpa no judaísmo fluiu a partir do seu entendimento da relação entre D-s e a humanidade. No judaísmo não somos atores em um palco, sendo a sociedade a audiência e o juiz. Podemos enganar a sociedade; não podemos enganar a D-s. Toda a pretensão e orgulho, cada máscara e personagem, o cultivo milimétrico da imagem pública são irrelevantes: “O Senhor não olha para as coisas que as pessoas olham. As pessoas olham para a aparência exterior, porém o Senhor olha para o coração” (1 Sam. 16:7). As culturas de vergonha são coletivas e conformistas. Em contraste, o judaísmo, arquetípico da cultura de culpa, enfatiza o indivíduo e seu relacionamento com D-s. O que importa não é se vamos estar de acordo com a cultura da época, mas se vamos fazer o que é bom, justo e correto.

Isso faz com que a lei de tsaraat seja fascinante, porque de acordo com a interpretação dos sábios, constitui um dos raros exemplos na Torá de punição por vergonha, em vez de culpa. O aparecimento de mofo ou descoloração nas paredes de uma casa era um sinal público de delito privado. Era uma maneira de dizer a todos os que viviam ou visitavam aquele lugar, “coisas ruins foram ditas neste lugar”. Pouco a pouco os sinais vinham cada vez mais para perto do culpado, aparecendo ao lado de sua cama ou cadeira, depois em suas roupas e em seguida em sua pele, até que finalmente ele seja diagnosticado como contaminado:

Quando uma pessoa tem a marca da doença contaminada, sua roupa deve ter um rasgo, ele deve ficar sem corte de cabelo, e deve cobrir a cabeça até abaixo de seus lábios. ‘Impuro! Impuro!’ Ele deve clamar. Enquanto ele tem a marca, ele permanecerá impuro. Uma vez que ele é impuro, ele deve permanecer sozinho, e seu lugar será fora do acampamento (Lev. 13:45-46).

Essas são, por excelência, expressões de vergonha. Primeiro é o estigma: as marcas públicas de vergonha ou desonra (as roupas rasgadas, o cabelo despenteado, etc.). Em seguida, vem o ostracismo: a exclusão temporária dos assuntos normais da sociedade. Isso não tem nada a ver com doença e tudo a ver com desaprovação social.

Isso é o que faz com que a lei de tsaraat seja tão difícil de ser entendida em uma análise inicial: é uma das raras aparições de vergonha pública numa cultura baseada na culpa (3). Aconteceu, porém, não porque a sociedade havia manifestado o seu desagrado, mas porque D-s estava sinalizando que deveria ser assim.

Por que especificamente no caso de lashon hará, “falar mal”? Porque a fala é o que mantém a sociedade unida. Os antropólogos têm argumentado que a linguagem evoluiu entre os seres humanos precisamente para fortalecer os laços entre eles, para que pudessem cooperar em grupos maiores do que qualquer outro animal. O que sustenta a cooperação é a confiança. Isso me permite e encoraja a fazer sacrifícios para o grupo, sabendo que outros podem ser invocados a fazer o mesmo. É precisamente por isso que lashon hará é tão destrutivo. A confiança é minada por lashon hará. Porque faz as pessoas suspeitarem uns dos outros. Ela enfraquece os laços que mantêm o grupo unido. Se não for controlado, o lashon hará vai destruir qualquer grupo que ele ataca: uma família, uma equipe, uma comunidade, até mesmo uma nação. Daí seu caráter singularmente malicioso, porque usa o poder da linguagem para enfraquecer o propósito para o qual a linguagem foi criada, ou seja, para proporcionar a confiança que sustenta o vínculo social.

É por isso que a punição para lashon hará era ficar temporariamente excluído da sociedade pela exposição pública (os sinais que aparecem em paredes, móveis, roupas e pele), a estigmatização e a vergonha (as roupas rasgadas, etc.) e ostracismo (sendo forçados a viver fora do acampamento). É difícil, talvez impossível, punir o fofoqueiro malicioso usando as convenções normais da lei, dos tribunais e o estabelecimento de culpa. Isso pode ser feito no caso de motsi shem rá, calúnia ou difamação, porque estes são casos de fazer uma declaração falsa. Lashon hará é mais sutil. Não é feita pela falsidade, mas por insinuação. Há muitas maneiras de prejudicar a reputação de uma pessoa sem realmente dizer uma mentira. Alguém acusado de lashon hará pode facilmente dizer: “Eu não disse isso, eu não quis dizer isso, e mesmo que eu tenha feito, eu não disse nada que não fosse verdade”. A melhor maneira de lidar com as pessoas que envenenam relacionamentos sem realmente proferir falsidade é nomeando-as, envergonhando-as e evitando-as.

Isso, de acordo com os sábios, é o que tsaraat fazia milagrosamente em tempos antigos. Já não existe na forma descrita na Torá. Mas o uso da Internet e mídias sociais como instrumentos de humilhação pública ilustra o poder e o perigo de uma cultura de vergonha. Apenas raramente a Torá a invoca e, no caso de metsorá, apenas por um ato de D-s, não da sociedade. No entanto, a moral da metsorá permanece. Maledicência, lashon hará, prejudica relacionamentos, corrói o vínculo social e danifica a confiança. Merece ser exposto e envergonhado.
Nunca fale mal dos outros, e fique longe daqueles que o fazem.

NOTAS:
1. Jon Ronson, So You’ve Been Publicly Shamed? London, Picador, 2015, 63-86.
2. Jennifer Jacquet, Is Shame Necessary? New uses for an old tool, London, Allen Lane, 2015.
3. Uma outra, de acordo com Raban Yohanan ben Zakai, era a cerimônia, na qual um escravo que não queria ser libertado depois do cumprimento dos seis anos de serviços, tinha a sua orelha furada no umbral de uma porta (Ex. 20:6). Veja Rashi ad loc., e Kidushin 22b.

Texto original: “THE POWER OF SHAME” por Rabino Jonathan Sacks.
Tradução Rachel Klinger Azulay para a Sinagoga Edmond J. Safra – Ipanema

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