Vestir Para Impresionar
Tetzavê, com sua descrição elaborada das “vestes sagradas” que os sacerdotes e o sumo sacerdote usavam “para glória e esplendor”, parece contrariar alguns valores fundamentais do judaísmo.
As vestes foram feitas para serem vistas. Elas foram destinadas a impressionar os olhos. Mas o judaísmo é uma religião do ouvido mais do que do olho. Ele enfatiza ouvir mais do que ver. Sua palavra-chave é Shemá, que significa: ouvir, escutar, entender e obedecer. O verbo sh-ma é um tema dominante do livro de Devarim, onde aparece nada menos que 92 vezes. A espiritualidade judaica é ouvir mais do que olhar. Essa é a profunda razão pela qual cobrimos nossos olhos quando dizemos Shema Yisrael. Fechamos o mundo da visão e focamos no mundo do som: das palavras, da comunicação e do significado.
A razão pela qual isso acontece tem a ver com a batalha da Torá contra a idolatria. Outros viram deuses no sol, nas estrelas, no rio, no mar, na chuva, na tempestade, no reino animal e na terra. Eles fizeram representações visuais dessas coisas. O judaísmo nega toda essa mentalidade.
D-s não está na natureza, mas está além dela. Ele a criou e a transcende. O Salmo 8 diz: “Quando contemplo Teus céus, obra dos Teus próprios dedos, vejo a lua e as estrelas que criaste, e me pergunto: o que é o ser humano para que dele Te lembres? E o filho do homem, para que o consideres?” A vastidão do espaço é para o salmista não mais do que “obra dos Teus próprios dedos”. A natureza é obra de D-s, mas não é D-s. D-s não pode ser visto.
Em vez disso, ele se revela principalmente em palavras. No Monte Sinai, disse Moshe: “O Senhor falou a vocês do fogo. Vocês ouviram o som das palavras, mas não viram nenhuma imagem; havia somente uma voz”. (Dt 4:12) Elias, em sua grande experiência na montanha, descobriu que D-s não estava no vento, no terremoto ou no fogo, mas no kol demamah dakah, a “voz calma e baixa”.
Claramente, o Mishkan (Tabernáculo), e mais tarde o Mikdash (o Templo), eram exceções. A ênfase deles estava no visual, e um exemplo importante são as vestes sagradas dos sacerdotes e sumo sacerdote, bigdei kodesh.
Isso é muito inesperado. O hebraico para “vestuário”, bgd, também significa “traição”, como na confissão que dizemos nos dias penitenciais: Ashamnu bagadnu: “Somos culpados, traímos”. Em todo o Gênesis, sempre que uma peça de roupa é um elemento-chave na história, ela envolve algum engano ou traição.
Havia as coberturas das folhas de figueira que Adam e Eva fizeram para si depois de comerem o fruto proibido. Jacob usava as roupas de Esaú quando ele recebeu sua bênção por engano. Tamar usava as roupas de uma prostituta para enganar Judá a se deitar com ela. Os irmãos usaram a capa manchada de sangue de Yossef para enganar o pai, pensando que ele havia sido morto por um animal selvagem. A esposa de Potifar usou a capa que Yossef deixara para trás como evidência de sua falsa alegação de que ele tentara estuprá-la. O próprio Yossef aproveitou as suas roupas de vice-rei para esconder sua identidade de seus irmãos quando eles vieram ao Egito para comprar comida. Portanto, é excepcionalmente incomum que a Torá agora se preocupe de maneira positiva com roupas, vestimentas, paramentos.
Roupas têm a ver com a superfície, não com a profundidade; com o exterior, não o interior; com aparência e não com realidade. Ainda mais estranho, portanto, que eles constituam um elemento-chave do serviço dos sacerdotes, dado o fato de que “as pessoas olham para a aparência exterior, mas o Senhor olha para o coração”. (1 Sam. 16: 7)
Igualmente estranho é o fato de que, pela primeira vez, encontramos o conceito de uniforme, ou seja, uma forma padronizada de vestimenta usada não por causa do indivíduo, mas por causa do cargo que ocupa, como Cohen ou Cohen Gadol. Em geral, o judaísmo se concentra na pessoa, não no ofício. Especificamente, não havia uniforme para os Profetas.
Tetzavê também é a primeira vez que encontramos a frase “para glória e esplendor”, descrevendo o efeito e o porquê dos paramentos. Até agora, kavod, “glória”, foi mencionado em relação somente a D-s. Agora, os seres humanos devem compartilhar parte da mesma glória.
Nossa parashá também é a primeira vez que a palavra tiferet aparece. A palavra tem o senso de esplendor e magnificência, mas também significa beleza. Introduz uma dimensão que não havíamos encontrado explicitamente na Torá antes: a estética. Encontramos beleza moral, por exemplo, a bondade de Rivka com o servo de Avraham no poço. Encontramos a beleza física: Sara, Rivka e Rachel são todas descritas como bonitas. Mas o Santuário e seu serviço nos levam pela primeira vez à beleza estética do artesanato e do visual.
Este é um tema contínuo em relação ao Tabernáculo e depois ao Templo. Já o encontramos na história da amarração de Yitzchak no Monte Moriá, que mais tarde se tornaria o local do Templo: “Avraham nomeou o lugar ‘D-s verá’. Por isso se diz hoje: ‘No monte de D-s, ele será visto’”. (Gênesis 22:14) A ênfase no visual é inconfundível. O templo seria sobre ver e ser visto.
Da mesma forma, uma conhecida oração poética sobre Yom Kipur fala sobre Mareih Cohen, “a aparência do Sumo Sacerdote” quando ele oficiou no Templo no mais sagrado dos dias:
Como a imagem de um arco-íris aparecendo no meio das nuvens…
Como uma rosa no coração de um jardim encantador…
Como uma lâmpada piscando entre as venezianas da janela…
Como uma sala cheia de céu azul e púrpura real…
Como um lírio de jardim que penetra no mato…
Como o aparecimento de Órion e Plêiades, visto no sul…
Isso levou ao refrão: “Quão afortunados foram os olhos que viram tudo isso”. Por que, especificamente, em relação ao Tabernáculo e ao Templo, o visual prevaleceu?
A resposta está profundamente ligada ao bezerro de ouro. O que esse pecado mostrou é que as pessoas não podiam se relacionar completamente com um D-s que não lhes dava nenhum sinal permanente e visível de Sua presença e que só podia interagir através do maior dos Profetas. A Torá foi dada a seres humanos comuns, não a anjos ou indivíduos únicos como Moshe. É difícil acreditar em um D-s de todo-lugar-em-geral-mas-nenhum-lugar-em-particular. É difícil sustentar um relacionamento com D-s que só é evidente em milagres e eventos únicos, mas não na vida cotidiana. É difícil se relacionar com D-s quando Ele apenas se manifesta como poder avassalador.
Assim, o Mishkan se tornou o sinal visível da presença contínua de D-s no meio do povo. Aqueles que oficiaram lá não o fizeram por causa de sua grandeza pessoal, como Moshe, mas por causa de nascimento e ofício, sinalizados por suas vestes. O Mishkan representa o reconhecimento do fato de que a espiritualidade humana é sobre emoções, não apenas intelecto; o coração, não apenas a mente. Daí a estética e o visual como uma maneira de inculcar sentimentos de admiração. É assim que Maimônides coloca no Guia para os Perplexos:
A fim de elevar a estima do Templo, aqueles que ministraram nele receberam grande honra; e os Sacerdotes e Levitas foram, portanto, distinguidos dos demais. Foi ordenado que os sacerdotes fossem vestidos adequadamente com belas e boas vestes, “vestes sagradas para a glória e para o esplendor” (Ex. Xxviii. 2)… O templo deveria ser mantido com grande reverência por todos. (Guia, Livro III, cap. 44)
As vestes dos oficiantes e do próprio Santuário / Templo deveriam ter a glória e o esplendor que induziam admiração, como Rainer Maria Rilke colocou nas Duino Elegies: “Pois a beleza nada mais é do que o começo do terror, que ainda somos apenas capazes de suportar”. O objetivo da ênfase nos elementos visuais dos Mishkan e nas grandes vestimentas daqueles que lá ministravam era criar uma atmosfera de reverência, porque apontavam para uma beleza e esplendor além de si mesmos, a saber, o próprio D-s.
Maimônides entendeu o poder emotivo do visual. Em seus Oito Capítulos, o prelúdio de seus comentários sobre o tratado Avot, ele diz: “A alma precisa descansar e fazer o que relaxa os sentidos, como olhar belas decorações e objetos, para que o cansaço seja removido”. Arte e arquitetura podem aliviar a depressão e energizar os sentidos.
Seu foco no visual permite que Maimônides explique uma lei de outra maneira difícil de entender, a saber, que um Cohen com um defeito físico não pode oficiar no Templo. Isso contraria o princípio geral de que Rachmana liba ba’i, “D-s quer o coração”, o espírito interior. A exclusão, diz Maimônides, não tem nada a ver com a natureza da oração ou serviço Divino, mas com as atitudes populares. “A multidão não estima o homem por sua verdadeira forma”, ele escreve e, em vez disso, julga pelas aparências. Isso pode estar errado, mas era um fato que não podia ser ignorado no Santuário, cujo objetivo era trazer a experiência de D-s à terra em uma estrutura física com rotinas regulares realizadas por seres humanos comuns. Seu objetivo era fazer as pessoas sentirem a presença Divina invisível nos fenômenos visíveis.
Assim, há um lugar para a estética e o visual na vida do espírito. Nos tempos modernos, Rav Kook, em particular, esperava uma renovação da arte judaica na terra renascida de Israel. Ele próprio, como já escrevi em outro lugar, amava as pinturas de Rembrandt e disse que elas representavam a luz do primeiro dia da criação. Ele também apoiou, ainda que com cautela, a Academia de Arte Bezalel, um dos primeiros sinais dessa renovação.
Hiddur mitzvá – trazendo beleza para o cumprimento de um comando – remonta ao Mishkan. A grande diferença entre o antigo Israel e a Grécia antiga é que os gregos acreditavam na santidade da beleza, enquanto o judaísmo falava em hadrat kodesh, a beleza da santidade.
Acredito que a beleza tem poder, e no judaísmo sempre teve um propósito espiritual: conscientizar-nos do universo como uma obra de arte, testemunhando o artista supremo, o próprio D-s.
Shabat shalom
Texto original “Dressing to Impress” por Rabino Jonathan Sacks